por Guilherme Werneck
Trip #169

Aos 84 anos, o americano que ajudou Roberto Marinho a construir o império Globo conta tudo

 
Luciano Huck estava em Angra quando Boni, ex-manda-chuva da Globo, o visitou e levou junto um simpático senhor norte-americano. Esse senhor é Joseph Wallach, um nome não muito conhecido fora do pequeno círculo dos que sabem a fundo a história da televisão e a da Rede Globo em especial. Depois de muita conversa, Luciano não teve dúvida: Joe Wallach – que aportou no Brasil em 1965 por conta do polêmico acordo da Rede Globo com o grupo norte-americano Time-Life – tinha de ser entrevistado. E deu a letra à Trip. Pouco antes de embarcar para Los Angeles, nos Estados Unidos, para fazer esta entrevista, Luciano me disse: “Pode perguntar o que quiser, Joe sabe tudo de televisão e conhece a história da TV no Brasil como poucos”.

Joe Wallach me recebe em sua casa em Beverly Hills. Com um sorriso no rosto, dispara: “Veio do Brasil só para ouvir as histórias de um velho?”. Aos 84 anos, ele não aparenta a idade que tem. Provavelmente por conta dos exercícios diários, das partidas de golfe ou das aulas de história que freqüenta na UCLA (Universidade da Califórnia, em Los Angeles) “com os jovens”.

É meio-dia em Los Angeles, começo de verão. Sentamos numa mesa ao lado da piscina e começamos a remexer a memória de Joe para tentar reconstruir uma história com a qual deparamos quase cotidianamente, mas sobre a qual refletimos pouco: a construção da principal rede de televisão do país. Uma história à qual ele ainda se sente ligado, o que transparece em sua defesa constante da Globo. Na realidade, papel de se esperar de um homem que participou ativamente da formação da TV, mas quase sempre longe dos holofotes, em sua sala de onde controlava o setor mais importante para uma operação de sucesso: o caixa. Mas nem sempre Joe Wallach conseguiu fugir dos holofotes. A Globo nasceu de um acordo com o grupo de mídia norte-americano Time-Life, que investiu US$ 6 milhões para a criação da emissora no Rio de Janeiro, em abril de 1965. Em julho do mesmo ano, Wallach, empregado da Time-Life em uma estação de TV em San Diego, na Califórnia, é mandado ao país, como contratado do grupo norte-americano, para gerenciar a parte financeira e montar a operação da Globo no país.

Ainda em 1965, o então governador do Rio Carlos Lacerda denuncia que o acordo feria o artigo 160 da Constituição brasileira, que impedia estrangeiros de serem proprietários ou dirigirem empresas jornalísticas e de radiodifusão. Em outubro desse ano, é instalada em Brasília uma CPI para investigar se a Globo poderia levar adiante esse acordo, que, segundo a emissora, era apenas um contrato de assistência técnica e outro de financiamento. Ou, como defendeu Roberto Marinho em seu depoimento à CPI, em 1966: “Um contrato de financiamento aleatório, uma vez que não dá nenhum direito de direção ou de propriedade a uma empresa, apenas participando o fi nanciador dessa empresa dos seus lucros e prejuízos”.

Uma das primeiras pedreiras que Joe enfrentou no Brasil foi justamente essa CPI, que, no fim das contas, como tantas outras na história recente do país, deixou tudo como estava. “Mas foi muito duro, tive de depor, em português, durante cinco horas.” Não seria a única na vida desse neto de judeus russos, nascido em Nova York, veterano da Segunda Guerra Mundial e com coração brasileiro. “Meus melhores amigos estão lá, temos toda uma vida juntos.”

Para ajudar a desvendar a história oculta do nascimento da Globo, a Trip convidou dois jornalistas especializados em televisão para fazer perguntas a Wallach: Eugênio Bucci, ex-presidente da Radiobrás, e Paulo Markun, diretor presidente da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura.

Hoje Joe acompanha o Brasil a distância, pela internet e pela Globo Internacional, quer saber se o governo Lula é realmente tudo isso que dizem nos Estados Unidos e o que este repórter acha do “nosso candidato” Barack Obama. Veterano de guerra que é, lamenta a invasão do Iraque e espera que um dia os Estados-nações acabem, “não na minha vida, mas na sua”.

Casado pela segunda vez, Joe é pai de três fi lhos e o decano de uma família que chama de “multicultural e multirracial”, já que uma de suas fi lhas é casada com o pianista brasileiro radicado nos Estados Unidos Oscar Castro Neves e outra delas teve uma fi lha com Sly Stone, líder do cultuado Sly and the Family Stone.

À beira da piscina, numa casa com o maior aparelho de televisão que este repórter já viu na vida fora de feiras de tecnologia, Joe contou, com sua voz pausada, alternando inglês e português (para matar um pouco as saudades do Brasil), os casos de um homem que sabia demais.

Você esteve na Segunda Guerra?
Quando tinha 19 anos, em 1943, fui treinado e me tornei oficial em infantaria. Aos 21 anos, estava no exército e fui mandado para a guerra na Bélgica, em 1944. Estive em Ardennes, na batalha do Bulge, com neve, muito frio.

Foi ferido?
Sim, fui parar num hospital na Bélgica e fiquei em serviço limitado. Depois, me tornei tenente na Polícia Militar por um tempo. Quando a guerra terminou na Europa, eu ainda estava lá. A guerra no Japão continuava, mas eu não precisei ir ao Oriente.

Foi uma experiência formadora na sua vida?
Ah, sim. Na verdade, eu me casei durante a guerra, em Paris. Fui mandado para Grenoble [França] para estreitar as relações entre americanos e franceses, num curso de seis semanas. Como eu era o único do meu batalhão que tinha feito faculdade, me forçaram a ir e lá conheci minha esposa. Ela era do exército polonês. Ela não sabia inglês nem eu polonês. Falávamos um francês todo quebrado.

“Me casei durante a guerra, em Paris. Minha esposa era do exército polonês, ela não falava inglês nem eu polonês, nos comunicávamos num francês todo quebrado”

Quando começou a trabalhar em comunicações?
Muito mais tarde. Trabalhei em diversas empresas na costa leste. Mas a minha esposa começou a ter asma e resolvemos mudar para a Califórnia. Arrumei um emprego na televisão, numa pequena estação em San Diego. Era assistente do gerente e logo me tornei gerente. A Time-Life comprou a estação nessa época e me incorporou.

Como era a televisão nessa época, nos Estados Unidos?
Operávamos uma estação pequena, muito como se faz no interior. Boa parte da programação vinha da rede. Não éramos realmente uma rede nessa época, a Time-Life tinha seis estações no país todo. Nós só produzíamos o jornal local e alguns programas. Em 1965, você foi direto de San Diego para o Brasil.

 

Como foi chegar ao Brasil, numa época de convulsão social, um ano depois do golpe militar?
Quais eram as suas expectativas? Me pediram para ir ao Brasil por um ano. Achava que seria uma grande experiência para a minha família e pra mim. E foi.

Já tinha filhos?
Tinha filhos crescidos. Meu filho, inclusive, começou a PUC no Rio, como calouro. Fui sozinho num primeiro momento, minha família ficou aqui. Adorei o Brasil. Adorei as pessoas.

Quando a Time-Life o mandou para o Brasil, você tinha alguma idéia de quem era o Roberto Marinho, a Globo, e de como era a mídia no Brasil?
Só soube quando cheguei. Foi tudo muito rápido. A Globo era só uma estação no Rio de Janeiro. Nós tínhamos 700 pessoas, 70 eram da orquestra. Eu achava bem estranho o jeito como ela operava. Mas a TV Rio estava em primeiro lugar na época, nós estávamos em quarto, passando uns programas americanos dublados em português, coisas ridículas como A família Buscapé. Roberto Marinho havia comprado a TV Paulista, em São Paulo, um ano antes, mas ninguém tinha ido lá. Fui o primeiro a ir a São Paulo. Sem ninguém saber, fui lá para visitá-la.

“Um acordo como o da globo com a Time-Life não é feito pensando no interesse nacional. São empresas pensando em como ganhar dinheiro e poder”

Foi nessa ida que você encontrou o Walter Clark?
O que aconteceu foi o seguinte: fui ver a estação. Não estava funcionando. O gerente era o Rubens Amaral, que vinha do rádio. Era o homem de confiança do Roberto Marinho, mas não entendia nada de televisão. A emissora estava morta, sem nenhuma audiência. A única coisa que tinha era o Silvio Santos, que ficava no ar do meio-dia até as oito da noite, e tinha alguma audiência. Nosso sinal não cobria toda a cidade. Eu estava totalmente desencorajado, pensando: “Bom, isso não vai funcionar, vou voltar e dizer à Time-Life que essa coisa toda não vai dar certo”. Daí, em São Paulo, fui apresentado ao Roberto Montoro, porque eu estava procurando por alguém de vendas. O Montoro disse: eu posso vender, mas queria trazer um menino comigo para trabalhar em vendas no Rio. Era Walter Clark.

Walter Clark era muito jovem quando você o contratou. Você sentiu que ele tinha o talento para tocar a TV?
Oh, yes. Ele tinha 27 anos, era muito jovem, parecia ter 21. Mas era um estrategista brilhante e conhecia programação muito bem. Sabia que ele era bom e foi assim que começou. Os dois [Montoro e Clark] começaram em dezembro de 1965. Quatro meses depois, nós tentamos levar o Boni para trabalhar conosco, mas ele estava na TV Tupi, a maior rede da época, fazendo o programa do Moacyr Franco, ganhando muito dinheiro. Walter tentou convencê-lo a vir trabalhar conosco, nós oferecemos metade do que ele ganhava, e o Boni ficou na TV Tupi. Só dois anos depois, em 1967, ele foi trabalhar conosco.

Quando Roberto Marinho decidiu ir para a televisão, ele comprou uma briga com Assis Chateaubriand e houve uma grande campanha contra o dono da Globo feita pelos diários associados. Como você se sentia em relação a isso, sendo estrangeiro e não conhecendo direito o jeito brasileiro de fazer política?
Eu fiquei muito chocado. Porque Chateaubriand tinha muitos jornais no Rio e Roberto Marinho tinha só o Globo. Foi muito difícil. Depois me chamaram para ir a Brasília depor numa CPI. João Calmon, que era nosso concorrente [ex-senador e ex-diretor-geral dos diários associados], estava na CPI. Fiquei lá por cinco horas. O Calmon me interrogou por duas dessas cinco horas.

O que eles queriam saber?
Djalma Marinho, que era o relator, queria saber da minha influência na Rede Globo. Me acusou de estar mandando na TV, de estar levando dinheiro para o Brasil e de ser o homem que mandava na Rede Globo.

Mas, nesse começo, você não mandava na Globo de fato?
H á relatos de que o Roberto Marinho nem ficava na TV e era bem mais ligado ao jornal. Ele era ligado ao jornal, mas ia todos os dias até a TV lá pelas seis da tarde. Rubens Amaral era o diretor-geral, e ele que mandava com o Roberto Marinho.

E a história, que está no livro notícias do planalto, do jornalista Mario Sérgio Conti, de que quando o Roberto Marinho ia à Globo ele ficava na sua sala?
Na minha sala, não! Muita gente escreve muita coisa como história. Tinha uma sala pequeninha, mas o Rubens Amaral tinha uma sala grande. E ele ficava lá. Depois, Rubens Amaral foi demitido, e Walter Clark tomou conta da emissora. A sala do Rubens Amaral ficou para o Roberto Marinho, e o Walter tinha outra sala grande. Todo dia nos reuníamos eu, Roberto Marinho e Walter.

Eugênio bucci: há hoje no Brasil uma polêmica em torno da fusão entre as empresas de telecomunicação Brasil Telecom e Oi. Para que a fusão seja efetivada, regras do setor terão de ser alteradas, o que já está em curso. Alguns argumentam que é do interesse nacional ter uma grande empresa de telecomunicação para concorrer com as gigantes estrangeiras, o que justificaria esforços do próprio governo para mudar a regra. Fazendo um paralelo histórico, o acordo entre Globo e Time-Life também teve sua legalidade questionada e chegou a ser alvo de uma CPI. O acordo Globo–Time-Life atendeu ao interesse nacional ou apenas ao das empresas envolvidas? O acordo foi legal ou não? Que tipo de manobra junto ao poder foi necessário para a aprovação? A história empresarial de sucesso da Globo justifica aquele acordo?
Justifica, sim. Porque, sabe como são os negócios hoje, o mundo é diferente. Tudo é mais internacional. A Globo ganhou com o acordo. A Time-Life pôs, mais do que qualquer outra coisa, dinheiro. Dinheiro e um pouco de assistência técnica, mas não muito. Eu penso que normalmente esse tipo de acordo não é feito pensando no interesse nacional. É sempre uma companhia pensando como eles podem entrar para ganhar poder ou dinheiro. Esse é o pensamento. Sobre o interesse nacional, aí o governo pode impedir certas coisas, entende?

Mas não teve também transferência de tecnologia, uma assistência técnica mais profunda, de ensinar a fazer televisão mesmo?
Na parte técnica, de transmissão, sim. Mas na parte do know-how não. Era só eu, mais ninguém.

Mas você já tinha todo o knowhow de televisão, não?
Tinha. E acho que minha contribuição era mais de organizar as pessoas que tinham talento. O sucesso da Globo foi feito por causa da aglutinação de tantos talentos dentro de uma organização e de eles terem ficados juntos, sem brigar. Porque a qualquer momento podia explodir, como os outros canais. Isto foi o que nós criamos: a coordenação de todo o talento.

Que manobras a Globo fez para conseguir fazer vingar o acordo com a Time-Life?
O acordo feito foi de locação. A Time-Life pagou para comprar prédios e instalações, e aí a Globo pagou um aluguel baseado no lucro, que nunca aconteceu. Porque a Globo nunca tinha lucro, então nunca deu nada [risos]. Mas foi baseado em 45% do lucro.

É verdade que o que foi pago à Time-Life foi apenas o investimento feito e sem juros?
Pagamos menos que se fossem cobrados juros, e em quatro anos! Eles puseram de US$ 5 a 6 milhões. Nós pagamos a eles US$ 6,85 milhões. Demos US$ 500 mil à vista e o resto durante quatro anos.

Foi um jeito de acabar com a polêmica que te levou à CPI?
Sim, porque depois nós podíamos expandir e criar a rede. Antes nossa atuação havia sido limitada só ao Rio e a São Paulo.

 

Por que você decidiu ficar no Brasil depois do fim do acordo com a Time-Life?
Dr. Roberto disse: “Joe, eu compro a parte da Time-Life se você ficar e vou fazer sua vida aqui”. Ele não queria que eu voltasse. Em Nova York estavam começando a HBO e fui convidado a vir para cá, mas preferi ficar com Roberto. Aí eu me naturalizei brasileiro.

Tem dupla cidadania?
Agora, sim, mas na época renunciei à cidadania americana, em 1971 ou 1972. Fiquei apenas brasileiro até há poucos anos, quando o governo do Brasil passou a permitir a dupla cidadania.

E qual foi a estratégia para a Globo sair da posição de quarto lugar no Rio e rapidamente se transformar na emissora líder do Brasil?
Bom, aconteceu em duas fases. Na primeira fase, era o Walter Clark sozinho. Houve uma grande enchente no Rio em janeiro de 1966. Walter parou a estação completamente. Colocou as câmeras no pátio, na rua Von Martius [na Gávea], e mostrou as pessoas lá no morro, as casinhas caindo, aquela água toda, porque lá perto virou um rio e nós não pudemos sair da estação por três dias. Nessa época ninguém fazia externa, e o povo começou a assistir. Walter tinha pedido assistência para os coitados nas favelas, daí as pessoas começaram a chegar à Globo com roupas e mantimentos. E nós, no teatro, cheios de roupas e comidas. Daí o povo começou a sentir simpatia pela Globo, e a audiência começou a subir.

Mesmo mantendo os enlatados?
Não, Walter mudou a programação. Cancelei muita coisa com os americanos. Tínhamos muitos filmes. Começou com a sessão de cinema às dez da noite, com Célia Biar e um gato que Walter criou. Depois ele fez uma novela no pátio da Globo. A primeira que pusemos no ar, às 21h30, com Carlos Alberto e Yoná Magalhães.

E deu para enfrentar a concorrência na época?
O que aconteceu foi que, no início, Walter comprou da Record o programa de Roberto e Erasmo Carlos, mas foi com a novela Eu compro essa mulher que chegamos ao primeiro lugar de audiência. E tudo feito no pátio. A novela se passava num barco. Ele montou um navio lá no pátio de Von Martius e fi lmávamos lá.

E quando São Paulo foi integrada aos planos da Globo?
Montoro ficou lutando como gerente-geral de São Paulo, mas, no começo, não tinha microondas [tecnologia que permitiu a formação da rede], era tudo totalmente separado. Os programas que o Montoro criou não deram em nada. Outro problema era que o sinal em São Paulo era muito fraco e o governo militar não nos deixou importar um transmissor. No começo, tudo era ao vivo. Mas compramos um videoteipe e gravamos Eu compro essa mulher. Também começamos com o Chacrinha, que levamos da TV Excelsior. Ele fazia dois programas no Rio por semana, pegava a ponte aérea e fazia outro programa em São Paulo. Mas a TV Paulista era último lugar em audiência. Levamos cinco anos para chegar ao primeiro lugar em São Paulo. E foi o Boni que fez isso.

Como?
Quando ele chegou, em 1967, foi a São Paulo e viu as coisas todas. Houve uma briga entre ele e Montoro, que foi demitido, e ele começou a trabalhar em São Paulo. Boni era um homem muito forte. Walter era carismático, estrategista, mas não era forte. Ele queria que Boni tomasse conta da programação, porque sabia que ele resolveria as coisas.

A saída da Excelsior do mercado, com a licença cassada pelos militares em 1970, ajudou a Globo em São Paulo?
Ajudou, sim. Era um concorrente a menos. Em São Paulo, a Record fazia musicais e a Excelsior, novelas. Mas, quando o Mario Simonsen morreu [em 1965], a Excelsior começou a ruir. No Rio, entrou o Edson Leite, que era um maluco e fazia tudo sem sucesso. Não foram os militares, foi o fracasso administrativo da Excelsior que a matou.

A Tupi também?
Em qualquer momento, nos primeiros cinco anos da Globo, de 65 a 70, a Tupi podia nos matar, porque tinha estações em todo o país, mas eles brigaram entre si quando o Chateaubriand morreu. Aí cada um fazia o que queria. Não foram organizados. Eram feudos. Essa é a razão pela qual os Diários Associados foram à lona.

Voltando à atuação do Boni em São Paulo, o que foi feito para a TV Paulista sair do último lugar?
Com o Boni, nós estávamos até produzindo uma grande telenovela em São Paulo, A cabana do pai Tomás, quando houve um grande incêndio. Nossa estação foi ao chão, em 1969. Isso nos forçou a levar tudo ao Rio. Boni contratou Janete Clair, Tarcísio Meira e Gloria Menezes. A primeira novela com eles foi Sangue e areia. E aí, quando passou em São Paulo, a audiência começou a subir. Resolvemos também a questão do sinal, com um transmissor no pico do Jaraguá.

“Roberto Marinho não gostava dos militares, mas ele sempre dançou conforme a música. Ele não era de esquerda, era bastante de centro em suas crenças”

Esse transmissor ficava na torre da Bandeirantes?
Sim, alugaram espaço na torre deles. E os terroristas [militantes contrários ao regime militar] que realmente incendiaram nossos estúdios, os da Record e os da Bandeirantes, queriam pegar o transmissor, mas não conseguiram.

Falando em terroristas, como era a sua relação política com o governo militar?
A relação era completamente com o Roberto Marinho. Eu era a pessoa entre Boni e Walter Clark, e afi nado com Roberto Marinho. Veja, eu tinha também a Time-Life, que estava lá fora, era o homem deles, mas estava mais ligado ao pessoal de dentro. Depois do incêndio, a Time-Life queria sair do negócio porque não estava ganhando nenhum dinheiro. Como solução, fi zemos um negócio em que o Roberto comprou a parte da Time-Life em 1970.

E como era a relação da Globo com a ditadura?
Roberto Marinho não era favorável ao governo, mas a quem ele mais gostava. De certo modo, penso que ele era um homem democrático. Não era da esquerda, era bastante de centro em suas crenças. Ele não gostava dos militares, mas sempre dançou conforme a música. Sabe, se eles estão tocando determinada música, para se manter vivo, você vai lá e dialoga com eles. Mas ele mesmo sempre esteve no meio do caminho.

O governo militar, ao investir na infra-estrutura de comunicação, acabou ajudando a Rede Globo a formar a sua rede, não?
Muita gente disse isso, mas eu vou contar a minha percepção. Primeiro sobre o conteúdo da programação. Você sabe que os artistas, o pessoal da televisão, eram liberais, eram mais à esquerda. Não gostavam nada dos militares. As novelas, tudo que eles escreveram, começando com o Dias Gomes, mas também o nosso jornalismo, estavam tentando mostrar a realidade. Os militares queriam censurar. Tínhamos de mandar todos os roteiros para Brasília e tentaram entrar no jornalismo. Aí houve muita briga entre Roberto Marinho e os militares, ele não cedia. Não existia nenhum acordo entre eles. Pelo contrário. Eles diziam: “Nós vamos tirar a Globo do ar”. E a Globo dizia: “Vocês nos tiram do ar, e o povo vai saber que vocês nos tiraram”. Foi constante esse embate com a ditadura. Nós tentávamos fazer a programação, e eles não queriam. Até parte de nossos jornalistas foi presa.

Sim, mas e a questão da estrutura?
O governo, o Ministério das Telecomunicações, queria ampliar a telefonia e criou a Embratel. O governo gastou dinheiro nos telefones. Apenas 20 pessoas de cada 100 tinham acesso ao telefone no Brasil. Então eles criaram a transmissão por microondas para a telefonia. Paralelamente, as microondas podiam ser usadas para transmitir as ondas da TV. Eles não fi zeram nada para nós. Quando você lê que o governo ajudou, não é verdade, ajudou coisa nenhuma. Aliás, a Embratel nos cobrou uma fortuna para usar aquele sistema. Mas lógico que, com a chegada do microondas pelo país, aí nós começamos a implementar a rede. Nos anos 70, de 72 a 76, eu e o Boni rodamos o Estado de São Paulo e construímos mais ou menos 400 pequenos lugares [retransmissores] em cidades para receber a televisão. Como não tinha satélite, foi tudo através de microondas. Nós íamos a cada prefeito e construíamos pequenos prédios para receber aquelas microondas. Foi um trabalho muito intenso durante alguns anos.

Quando esse processo termina, a Globo já é líder em audiência em todo o país. Essa liderança vem apenas da programação, do gênio de Walter Clark?
Não só de Walter. Ele foi o gênio do início, mas foi Boni que implantou tudo. Walter fi cou mais na parte de homem público, de ser a cara da Rede Globo. Ele aprendeu como falar. Ele não falava muito no início.

Tinha essa fama de que ele era também um mulherengo...
Claro. Ele era um mulherengo, mas eram todos. Em televisão era assim.

E você também teve o seu lado mulherengo no Rio?
Eu não! Nunca! Lembre que eu era quadrado. Era 15 anos mais velho que todos. E Roberto Marinho tinha 19 a mais do que eu. Eu nunca saí com mulheres da TV. Se eu saísse com artistas, isso ia me desmoralizar. Mas não era o caso dos outros.

Mas você se separou no Brasil. Como foi a fase de solteiro?
Foi boa, saí com namoradas. Eu me separei em janeiro de 73, fiquei solteiro por 15 anos até casar com minha mulher maravilhosa e linda [nos Estados Unidos].

E fazia muita farra no Rio?
Sim, morava com uma, com outra. Mas não com gente da TV, porque eu não queria perder a moral. Mas com mulheres maravilhosas, lindas, cultas. Não vou dizer quem são.

“Eu era 15 anos mais velho que todo mundo, quadrado. Nunca saí com mulheres da TV. Se saísse, ia me desmoralizar. Mas não era o caso dos outros”

E a saída do Walter Clark da Globo em 1977? Há quem diga que foi obra do Boni. Como você viu essa saída?
Não foi o Boni. Foi o próprio Walter. Por dois motivos: Walter era frágil. Como ele não enfrentava nenhuma difi culdade com as pessoas, delegou isso para outro. E começou a beber. Bebia muito. Saía para o almoço e voltava às quatro da tarde, às vezes mais tarde, bêbado. A bebida tomou conta dele. E Walter bebendo foi muito inconveniente. Roberto Marinho não gostava disso, pedia para ele parar de beber. E também Walter, com o carisma que tinha, estava querendo aparecer muito. E Roberto Marinho não gostava. Porque, enfim, ele era o dono. A gota d’água foi em Brasília. Quando Roberto Marinho quis mostrar aos militares, que estavam preocupados com a idade dele, que ele tinha um bom grupo de profissionais, nós fomos até lá, no governo Geisel, num jantar. Walter fi cou completamente bêbado na frente dos generais, do Frota, do Figueiredo; o Geisel não estava lá. Ele falou coisas muito duras contra as mulheres dos generais, bobagens e outras coisas. Puseram ele no carro e o mandaram para o hotel. Foi naquele momento que Roberto Marinho decidiu que Walter tinha de ir embora. Boni não tinha nada a ver, ele nem estava em Brasília quando tudo isso aconteceu.

Aí o Boni vira o número um da Rede Globo?
Sim, vira o número um.

E instituiu o famoso padrão Globo de qualidade...
É um padrão maravilhoso. Quando você olha para a América Latina, eles passam novelas aqui, quando você vê uma da Globo é outra coisa... Boni instituiu isso [batendo na mesa], qualidade sempre em primeiro lugar.

Vocês são muito próximos até hoje?
Somos muito amigos. Somos irmãos.

Tem saudades da comida dele?
Oh, e do vinho dele [risos]. Ele era incrível. Ele não era assim [gourmet]. Nós brigávamos muito no início. Porque eu queria uma coisa e ele outra. E ele era muito forte. Porque criação e administração são duas coisas que vão juntas na televisão, com o mesmo poder. Aí, dá choque. No início houve muito choque, mas depois passamos a pensar como um.

Paulo Markun: a Globo é a Hollywood brasileira?
É mesmo, primeiro em televisão e agora em cinema. Hollywood tem duas coisas: o cinema e a produção para a televisão. As redes não produzem programas, eles são feitos por Warner, Sony, Fox etc. A Globo faz tudo isso, não é só distribuidor, mas também produz. E também entrou nos filmes. A parte cinematográfica do Brasil subiu muito.

E quando você saiu da Globo?
Eu saí em 80, porque estava sozinho. Tinha me separado havia alguns anos. Meus três filhos estavam crescidos. Eles casaram com brasileiros, mas tinham ido embora para os Estados Unidos. Eu tinha duas netas na época e queria ser o mentor delas. E também minha saúde não ia bem. Comecei a ter problemas no coração, depois descobri que era a minha cabeça. Eu tentei ir antes, mas Roberto Marinho dizia não, não. Ele ficou um pouco magoado quando eu saí, mas depois passou.

O que fez na volta aos Estados Unidos?
Fiquei aqui cinco anos e criei a Telemundo [rede de TV latina]. Depois, ajudei a Rede Globo um pouco na Itália, o que não deu certo. Aí voltei para o Brasil e comecei a Globosat. Fiz a Globosat do zero. Em 1990.

Por que decidiu fazer um canal latino nos Estados Unidos?
Quando eu estava aqui, aposentado, sem fazer nada, vi que, em Los Angeles, só havia uma estação e nos Estados Unidos uma rede em castelhano, a Televisa, dos mexicanos. Hoje, 40% da população de Los Angeles é de hispânicos, naquela época era menos, isso foi em 1985. Aí eu peguei um canal aqui, um financista, e desenvolvi sozinho o canal.

E o começo da Globosat, como foi?
A Abril começou antes, aí nós entramos. Boni e eu éramos sócios. Em cinco meses coloquei no ar quatro canais: Multishow, Telecine, GNT e SporTV. No bairro do Rio Comprido, um lugar muito ruim. Mas a parte mais difícil, na época, era a questão do cabo. Eu sabia que cabo não era para o Brasil porque era muito caro, então comecei com satélite, com parabólica em cima dos prédios.

Entrevistei o Boni recentemente e ele disse que uma das pragas no Brasil hoje é a parabólica. Você concorda com isso?
Hoje em dia? Parabólica é bom para quem não mora nas cidades grandes, e agora com a antena pequena ela concorre bem, é um dos caminhos. Cabo é difícil, a parte mais importante é que o brasileiro não tem poder aquisitivo para pagar a mensalidade. Por isso a TV por assinatura não avançou.

Como você enxerga a hegemonia da Globo na TV brasileira? É saudável?
Para ter qualidade é preciso gastar dinheiro. O bolo de anunciante é limitado, e você precisa, para produzir com qualidade, ter uma boa fatia desse bolo, senão a qualidade vai sofrer. A Globo, porque tem padrão de qualidade e audiência, tem o dinheiro para gastar. O capítulo de uma novela está custando muito. Mas a Globo está tendo concorrência agora, pela TV Record, por quê? Porque o bispo, que tem a igreja com tanto dinheiro entrando, está infl acionando o mercado com esse dinheiro, fazendo a mesma coisa que a Globo.

Acha que a TV aberta sofre por não ter uma programação boa?
A da Rede Globo, em comparação com o que se vê nos outros países, inclusive aqui, é muito boa. Na qualidade e na inovação... A prova é que a TV no Brasil mata o cinema, porque é de graça e para o povão.

Acha que a televisão no Brasil ser uma concessão pública é algo que deve acabar?
Isso irá desaparecer. Com tantas outras formas de ter acesso à informação, como o celular. Veja você e os jovens, o futuro é a internet, a televisão vai perder a força. É um mundo diferente, onde há esperança e muito confl ito, já que cada país tem seus interesses. Mas eu acredito, e é uma crença maluca de um velho, que a idéia de um país como uma nação está em declínio. Nós vamos ver mais e mais organizações se tornarem importantes, isso acontece com o meio ambiente, com os Médicos sem Fronteiras. Eles fazem a diferença, e esse tipo de organização mundial vai tomar o lugar das nações. Não é algo que eu vá ver na minha vida, mas acho que você verá na sua.

Como a internet muda a TV?
Mudou tudo, TV, cinema, fi lmes. Um BBB fatura tanto quanto um fi lme, isso sem falar dos videogames. A televisão está mudando completamente aqui e vai mudar lá também por causa da internet. Não sei se a Globo faz isso, mas aqui, se você perder um capítulo de uma novela, eles deixam na internet por três dias para você poder ver depois. E, com o celular, tudo vai mudar. Notícias e esporte, você vai ver no telefone. Hoje eu estou fora, velho, mas vejo que a Globo Internacional é uma força. Você assiste aqui às novelas no mesmo dia. Eu tenho internet e vejo tudo, jornal, novela, tudo.

“O homem brasileiro fala coisas um para o outro que nenhum americano falaria; só as americanas falam como os homens brasileiros”

E como vê a TV hoje?
A televisão aqui está mais ou menos. Hoje o que vende, o mais popular, é o American idol. É música, né? Vem da Inglaterra e todo mundo vai copiar. Copia aqui, copia ali.

O que acha dos reality shows, do Big Brother?
Big Brother já passou, mas lá no Brasil é um fenômeno. Aqui as pessoas já estão em outra. São programas mais baratos, o custo é muito menor do que produzir séries, e dá audiência! No cabo estão produzindo coisas mais avançadas, como Weeds, Entourage. Mais pra frente, não é? Com linguagem cinematográfica.

Ainda pensa em projetos de TV?
Estou estudando montar um canal hispânico só de novelas, 24 horas por dia. Como o American Movie Classics, mas só de telenovelas, só com aquelas produzidas antes dos anos 90, para não concorrer com os atuais. Um terço será de novelas brasileiras.

Quais são as suas preferidas?
Eu saí do Brasil em 1980. Então eu vou falar Bandeira 2, Gabriela... Não dá, ninguém mais sabe o que foram essas novelas.

Num artigo sobre as telenovelas brasileiras, a professora Silvia Helena Simões Borelli afirma que a telenovela brasileira é muito complexa para o público hispânico. Concorda com essa tese?
Ela tem razão, a cultura brasileira é diferente da cultura mexicana. No Brasil, a cultura é mais sofisticada. O povo que vem para cá é realmente mais simples. Nossa empregada, por exemplo, veio da Guatemala a Los Angeles a pé! São pessoas do campo. Tem exceções. O clone, quando apareceu, foi diferente. Mas eles adoram os cenários, as roupas.

Quem são seus grandes amigos brasileiros?
Tarcísio e Gloria são muito meus amigos, toda aquela velha guarda. Eu dava festa de Natal em casa. Convidava todos os artistas, Sonia Braga, Jô Soares, aí vinham 100 pessoas. Aqui tenho amigos, muitos conhecidos, mas não tenho amizades como tinha no Brasil. Lá nós temos uma história que nunca vai sumir. Ninguém tira as nossas memórias, quem nós somos. O homem brasileiro fala coisas um para o outro que o homem americano jamais falaria. Só as mulheres americanas falam como os homens brasileiros. Eles contam tudo [risos]! Por isso que eu adoro os meus amigos de lá. Eles contam: “Quando meu pai estava saindo com outra mulher, minha mãe não sabia; depois que papai morreu, ela casou e saiu com outro homem quando ela estava casada”. Aquelas histórias! Uma vez estávamos em sete homens e perguntamos o que você prefere ser: aquele que é mais amado ou o que ama mais? Aí fi camos três horas discutindo isso. Quatro a favor de amar e três de ser amado. Quando eu vou ver isso aqui nos Estados Unidos? Nunca [risos]!

Então sente muita falta dos amigos brasileiros?
Muita falta, são amigos de coração. Armando Nogueira, que está doente, Boni, meu querido, um homem fabuloso. Mas são velhos... Daniel Filho, um verdadeiro gênio, quem sabe mais de cinema internacional que ele? O próprio Chico Anysio, o que ele podia ter sido se nascesse aqui nos Estados Unidos?

Hoje como é a sua vida, a TV ainda mexe com você?
Mexe muito, mas minha paixão hoje é história. Vou à faculdade, à Ucla, e estudo a história de todos os países do mundo. Como a China era há 2 mil anos. A Índia, o Brasil. Vou lá com os alunos, estudo as culturas. Isso é o principal. Outra coisa é que eu jogo golfe e faço muita ginástica, todos os dias.

Agradecimento: Luciano Huck

 

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