Paola Carosella: La cocinera

por Natacha Cortêz
Trip #249

Seu jeito firme e doce todo mundo vê no MasterChef. O que não aparece é uma história cheia de dor e superação. Aqui, os anos ralando com chefs autoritários, a faca no pescoço e as jornadas insanas

Cozinha foi a redenção de Paola Carosella. Quem vê a jurada mais sensível do MasterChef na TV ou quem conhece a culinária sem frescura de seus restaurantes não imagina como a escolha do seu ofício foi, na verdade, uma saída para um tremendo vazio emocional.

Essa história começa na Argentina dos anos 80. Paola se dividia entre a escola e as tardes solitárias em um apartamento pequeno na zona norte de Buenos Aires. Enquanto aguardava a mãe, que tinha dois empregos e fazia faculdade de Direito, a menina começou a imitar receitas que via, veja só, em um programa de televisão. Com a mesa posta, imersa em sentimento profundo de medo e abandono, apenas esperava. "A cada minuto de atraso da minha mãe, me faltava o ar”, conta, emocionada. "Eu ficava sentada no chão, com um olho na mesa posta e outro na porta."

Nunca mais saiu da cozinha. Trabalhou na sua Buenos Aires natal e também em Paris, Nova York e São Paulo, onde está há 14 anos. Ao longo da trajetória como cozinheira (ela gosta de ser chamada exatamente assim), encarou encoxada, faca no pescoço, jornadas insanas e o ego inflado de mestres como Francis Mallmann, o chef argentino que a levou para comandar a cozinha do restaurante paulistano Figueira Rubaiyat.

Paola gosta de chamar o MasterChef de “talent show”, e não de reality show. Para ela, o programa é muito mais que entretenimento. “O MasterChef fala em respeitar a comida até o último pedacinho e da importância dos ingredientes frescos”, destaca. Paola acredita que refletir sobre isso pode mudar a percepção que os brasileiros têm sobre alimentação. Depois de duas temporadas, o programa líder de audiência na Band (no ar às terças às 22h30) ganhou versão Júnior em outubro e já virou polêmica. Paola escolheu o Twitter para se manifestar sobre a revolta contra a cultura do estupro que se seguiu à estreia do programa: “Pedofilia é crime. Denuncie. Denuncie. Denuncie. Denuncie. Denuncie. Denuncie. Denuncie. Disque 100. Grite. Acenda a luz na cara deles”, publicou.

Aos 43 anos, ela está apaixonada. Seu namorado, o fotógrafo irlandês Jason Lowe, mora em Londres. Os dois trabalham juntos no primeiro livro dela com receitas, sem data para ser lançado. Encontram-se uma vez por mês. Parece ruim? Não para ela. "Estar perto o tempo inteiro deve ser insuportável", diz, à moda Paola. Ela divide seu tempo entre o programa de TV, os cuidados com a filha Francesca, 4 anos (do relacionamento com um arquiteto argentino que vive em São Paulo), e a cozinha dos restaurantes Arturito e La Guapa.

Depois de 24 anos metida entre facas e panelas, hoje prefere se dedicar a pensar sobre o ciclo de produção e consumo de alimentos. Na entrevista a seguir, a jurada do MasterChef fala sobre solidão, trabalho duro, mão na bunda de garçonete, crianças mimadas e como a simplicidade se tornou o principal ingrediente da sua vida.

Você enfrentou preconceitos na gastronomia por ser mulher? A cozinha era um ambiente de intolerâncias. E não as vivi apenas por ser mulher. Aos 20, fiz um estágio na França, em um restaurante de hotel. O meu francês era precário e meus companheiros de cozinha tinham zero intenção de me entender. Eram perversos. Certa vez, um deles não gostou de uma correção que fiz, colocou uma faca na minha garganta e disse: "Sua filha da mãe, se você continuar dizendo o que devo fazer, te corto a jugular".

Já sofreu assédio? A forma como me posicionei impediu que fosse muito assediada [sexualmente]. Eu mandava calar a boca, me defendia. Mas assédio existe, de todo tipo: moral, físico. Lembro de uma vez na França, no Le Grand Véfour, onde o setor de pâtisserie era muito estreito. A cada vez que o chef passava, encostava em mim por trás. Até que perguntei: "O senhor consegue parar?". Se contar abusos como trabalhar 14 horas por dia sem parar e sem receber hora extra, então trabalhei a vida inteira sob assédio.

O que mudou da Paola do começo da carreira para a de hoje? As dificuldades da infância me ensinaram a lidar com as frustrações. Ter falado pra mim mesma “eu vou conseguir, eu vou cozinhar” fez com que me contratassem em muitos restaurantes, me fez ser o braço direito de Francis Mallmann [chef argentino reconhecido mundialmente], depois chef do Figueira Rubaiyat, em São Paulo.

Quais são suas origens, onde você nasceu e cresceu? Nasci em 1972, em Buenos Aires. Sou filha de um italiano com uma argentina. Meus avós foram para a Argentina após a Segunda Guerra. Cresci em uma casa simples, mas enorme. Havia um porão, onde se guardava vinho, azeite e vinagre feitos ali. No quintal, tinha um pomar e uma horta. Nos fundos, coelhos, galinhas e uma cadela de caça.

Existe um cheiro que marcou essa época, uma memória olfativa? O do molho de tomate da minha vó, com pedaços de galinha ou coelho. Levava horas pra ficar pronto. As primeiras lembranças de cozinha e do que ela representa aconteceram ali. Mas tenho outra lembrança mais intensa, que é a de quando comecei a cozinhar.


Quando foi isso? Meus pais se separaram quando eu era bebê. Até os 2 anos, morei nesta casa dos meus avós maternos. Depois, me mudei para um apartamento na zona norte da cidade. Minha mãe tinha 20 anos e decidiu estudar direito. Até os 11 anos, eu tinha babá. Depois, ficava sozinha. À medida que fui crescendo, a solidão foi pegando mais forte. Sem querer, comecei a definir minha profissão. A cozinha era meu refúgio.

Onde sua mãe estava? Ela era telefonista em um escritório de advocacia pela manhã e secretária em outro à tarde. À noite, ia à faculdade. Nunca sabia a que horas ela voltaria. O que fazia para esperá-la era cozinhar. Tentava copiar as receitas de um programa chamado Utilíssima. [Paola chora.]

O que você cozinhava? Não lembro. Como foi uma época terrível, bloqueei da memória. Só me lembro de pôr a mesa e esperar. Cada vez que ouvia o barulho do elevador, ia correndo ver se era ela.

Vocês eram próximas? Amo profundamente minha mãe, e ela fez tudo pra que eu pudesse ter a melhor vida possível. Mas não éramos próximas. Ela vivia deprimida, trancada em seu quarto. Focou no trabalho e se tornou uma advogada bem-sucedida.

E seu pai? Era um fofo, sensível, porém, um homem muito triste, foi diagnosticado maníaco-depressivo antes do meu nascimento. Só fui apresentada a ele aos 5 anos. Ele aparecia quando podia e sumia quando estava deprimido. Parte da vida dele foi dentro de manicômios do Estado. Ele se suicidou em 2001.

Você não tinha amigos na adolescência? Eu fazia parte de um grupo de quatro meninos nerds. Deixei as meninas de lado; elas andavam de minissaias e cabelos penteados – a conversa era chata. Com eles era mais divertido. Nunca gostei de escola. Eu era enorme, me sentia diferente e sempre me achei muito feia.

O que aconteceu quando a escola terminou? Disse à minha mãe que queria ser cozinheira. Com 18 anos tive meu primeiro emprego. Ela pagava US$ 100 por mês para que me deixassem trabalhar em um restaurante que servia fondue e raclete.

O Rubaiyat foi seu primeiro emprego no Brasil. Como foi trabalhar lá? As únicas mulheres além de mim eram a faxineira e cinco garçonetes uruguaias superbonitas que o Francis Mallmann trouxe como enfeite. Elas foram embora dias depois, porque não conseguiram lidar com a mão dos clientes e dos garçons na bunda delas.  

Como você começou a trabalhar com Francis Mallmann? Minha mãe era a advogada de Francis. Foi ela quem sugeriu que eu levasse um currículo. Profissionalmente, adoro, admiro e sinto saudades do Francis. Mas, pessoalmente, o nível de arrogância dele é difícil. A única coisa que lhe importa é seu próprio umbigo.

Quem você mais admira na cozinha hoje? Ignacio Mattos, um uruguaio chef em Nova York. Não conheço ninguém que cozinhe como ele.

E no Brasil? Não tenho conhecimento de alguém que realmente me surpreenda na cozinha brasileira. A cozinha brasileira tomou os ingredientes locais como tendência. Você gosta deles? Gosto de comer os ingredientes brasileiros. Porém, não gosto de comida pretensiosa, usar o tucupi só porque é tendência. Não preciso de gelatina de tucupi.

Por que você decidiu ficar no Brasil? Quando meu contrato terminou com o Rubaiyat, a Argentina passava por uma crise econômica muito séria. Meus pais já eram falecidos [a mãe faleceu em um acidente em 1999]. Queria abrir o meu próprio restaurante e achei que São Paulo podia ser um bom lugar. Vendi a casa da minha mãe, o carro e investi todo o dinheiro para conseguir o visto de investidora estrangeira: US$ 160 mil. Com isso, abri o Julia Cocina, que deu errado por divergências entre os sócios. Passei oito meses chorando. Viajei pela América Latina e, na volta, abri o Arturito.

Qual é a importância do MasterChef? Em um mundo onde tudo é rotulado como gourmet, existe um programa no Brasil em que três chefs reconhecidos dizem: "Gourmet não me interessa". Isso é forte! São três chefs dizendo que seria ótimo se plantássemos nosso próprio alimento. Se tem algo hoje que está em um nível de alerta, é o que estamos comendo e como isso afeta a nós e ao mundo.

Você tem um projeto com pequenos produtores em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo. Como funciona? Estamos no começo, mas queremos transformar o lugar num polo de produção orgânica para abastecer os restaurantes de São Paulo.

Como você foi parar na televisão? A empresa dona do formato do MasterChef, Eyeworks, fez um casting com vários chefs. Fizemos entrevistas, gravamos vídeos. Quando o convite apareceu, fiquei reticente. Não ambicionava estar na TV.

Você permitiria que sua filha participasse do MasterChef Júnior? Eu teria que ter uma filha de 8 anos pra saber. Francesca tem 4. Mas tem algo no programa de que eu gosto especialmente: as crianças têm que lidar com frustração. E a vida é isso, a vida é cruel. Sofremos repressões aos 4, aos 15, aos 29, aos 43.

Seu namorado, Jason, mora em Londres. Como é o relacionamento à distância? Nos vemos mais ou menos uma vez por mês. Agora temos uma casa juntos e ele vai passar mais tempo aqui. Não acredito no casamento como é imposto. Acho que esse modelo é pra pouquíssimos e iluminados. E não sou uma dessas pessoas. Entretanto, acredito no amor e na união de pessoas que se escolhem porque querem, não porque precisam. E, sim, eu gostaria que esse relacionamento durasse a vida toda.

Você está rica? Não! Não tenho casa própria, dirijo um Peugeot 2007. Vou te falar o nível da minha riqueza: pago uma escola cara pra minha filha e um aluguel nos Jardins [bairro paulistano de elite]. Mas não tenho poupança. Nenhum dos meus restaurantes é em imóvel próprio.

O que falta pra você? Aonde ainda quer chegar? A muitos lugares! À boa carne, ao orgânico acessível e ao incentivo do governo ao pequeno produtor. Quero lançar meu livro, tocar o projeto de Parelheiros, fazer o MasterChef, cuidar da minha filha. Mas não gostaria de abrir mais restaurantes. Agora, quero olhar pra trás: ter certeza de onde vem tudo aquilo que consumo.

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