por Luiz Alberto Mendes

                             COMPAIXÃO

 

Nada do que fazemos pode estar isento de nós. No que lembramos, estamos também. Recordo cada uma das celas em que estive. E cada vez que o tempo as afastam na memória, ficam menores, mais lotadas e mais sinistras. Quanto mais envelheço, mais toma conta de mim a compaixão pelo ser humano. Principalmente por todos aqueles tocados pela violência geral. Não só pelas vítimas, mas também pelos causadores, nas prisões, cemitérios e particularmente por aqueles que os amam. 

Prisão é idéia que se esgotou no tempo. Mas, como nada se criou para substituir, parece, por enquanto, um mal necessário. Em que se pese as penas alternativas e outros pequenos avanços. Tomara que seja por pouco tempo; haveremos de inventar algo melhor. Embora saibamos que, a médio e longo prazo, só a educação resolvera. 

As estatísticas indicam que o índice de reincidência daqueles que saem da prisão é de 75%. Não há uma só lei que obrigue o Estado a fornecer condições de reintegração social ao egressos de seus cárceres. Nos Estados Unidos, país de primeiro mundo, pleno emprego e justiça social, as leis são radicais. Por lá, delinque ou rouba quem quer e não quem precisa, segundo o pensamento reinante. Então, na terceira condenação, seja pelo que for, a pena é de prisão perpétua. Reincidentes e profissionais do crime por lá vivem presos até a morte.

Há também uma inteligência penal por lá que por aqui não se vê. Réus em primeiras condenações começam a cumprir suas sentenças em regime que chamaríamos aqui de semi aberto. Ou sejam: evitam encarcerar. Conhecem a cultura criminal desenvolvida nas prisões. Sabem o quanto o jovem, que ainda não tem a auto-crítica consolidada, é vulnerável a ela. Encarcerar é quase condenar ao crime para o resto da vida. Poucos foram aqueles que conseguiram escapar à cultura criminal reinante nas prisões. 

A minha compaixão tem a ver com tudo isso. Pesa na alma ver jovens com suas vidas destruídas pelo descaso e abandono das leis e da sociedade. Não defendo o crime, penso que tanto quem ataca quanto quem é atacado são vítimas da violência construída por todos nós. A violência nos rouba o que há de melhor na coexistência: o significado da vida do outro para nós. Não sei julgar culpas alheias. As minhas carrego-as com a dignidade que conquistei a duras penas. Mas quem não errou, quem não erra, quem tem certeza de que nunca errará? Falamos aqui de coisas graves que, mor das vezes, ninguém descobre.

Eu provo, com minha vida, que qualquer pessoa pode fazer melhor sua vida. Ao tempo em que também provo que, quando se vira as costas para um garoto da rua e segura a bolsa ou o bolso com medo, também se esta cometendo violência. Não pagar salário digno aos empregados é violência, e das mais graves, pois atinge a família toda, particularmente as crianças. Em vez de ser paternalista com as crianças, seria mais inteligente pagar um salário digno aos pais. Assim eles não se matariam de trabalhar e teriam mais tempo para educar seus filhos. Conheço muita gente com dois ou até três empregos, ganhando somente para suprir necessidades familiares.

Faz mais de 10 anos que estou aqui fora. Atesto que é inteiramente possível viver em acordo com as regras sociais. É claro que não consigo viver como as pessoas que sentam à frente da televisão para assistir novela ou futebol, depois de um dia de trabalho. Não me iludo pensando que possa vir a ser visto como comum ou igual. Minha história não permite; preconceito sempre haverá. Claro que as ameaças sociais também não me fazem medo. Não temo o que possam fazer em represaria às minhas palavras. Não temo a morte, embora tenha medo da dor que ela possa causar. Mas aprendi a lidar com a dor e não creio que morrer seja assim tão mais sofrido que viver sem dignidade.

Viver aqui fora legalmente não é missão impossível. E se eu posso, depois de estar preso por mais de 30 anos, conviver em paz com as pessoas, porque os demais que estão presos não conseguiriam? O que posso eu ter de melhor? Absolutamente nada. O que é necessário? Estímulo, incentivo, acesso à cultura, à educação e ao trabalho dignamente remunerado. Mas, principalmente, a confirmação de que serão aceitos aqui fora. Quem lhes poderá dar essa certeza? Eu? Você? É exatamente por isso que tenho compaixão das pessoas aprisionadas.

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Luiz Mendes

19/09/2014.        

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