Nós atravessamos desertos juntos e estávamos ali, vivos. Eu a amava

Com a sacola de meus pertences nas mãos, dei uma última olhada naquela prisão. Os pavilhões pareciam fera de ferro, como pesados guindastes, se elevava sobre minha cabeça. Fábricas de sofrimento, fornalha a cremar vidas em fumaça e gases cinzentos.

Prometi para mim que seria a última visão daqueles bicos de pedras e tocos de rocha expostos. Olhei para a fronte, definitivamente. Lá estava ela, a amada. Ela viera, como não podia deixar de ser. Estava lá na frente, encostada no carro, me esperando. Estendi em varais brancos, úmida paixão de toda dor lavada. Andei mais um pouco olhando-a. De repente, um choque.

Aquela mulher suportara todas as pressões. Cegos de tão acesos, meus olhos mergulharam nas dores possíveis. Sofrera comigo muitos anos. Dera tudo de si. Amor, companheirismo, amizade e um tesão único, absoluto. Jamais desejei tanto uma mulher, e a cada dia. E como era bela sua dignidade! Linda em sua integridade de esposa, companheira e mãe. As lágrimas encheram minha cara de agradecimento à Deus, por tamanha grandeza em minha vida. Eu, que nada fiz por merecer.

Fui caminhando, tão molhado de amor que colava na pele. Exibia um sorriso sem voz, cheio de gestos de braços soltos e me via feliz. Como uma árvore derrubada pelo vento, me levantei, lambi de seiva minhas raízes e me replantei em sua frente. Ah! Como eu a amava! Aquela hora chegava inteira, iluminada.

Nossas lágrimas se misturaram num abraço, sequer conseguimos nos beijar. Eu queria sair. Escapar daqueles anéis de ferro que parecia querer nos alcançar. Fugir daquele vento feroz, daquela planta carnívora, bruta de boca aberta. Meu coração se expandia nas areias compactas do calçamento. A porta da cadeia, dura como um dinossauro, ainda podia nos devorar. 

Paixão exposta

No carro, ela acelerou nervosamente. Os pneus cantaram e ela se desculpou. Olhei para a estrada e me senti como um fantasma a arrastar minhas correntes. Ouvi o ranger das grades naquelas minhas últimas horas mortas. Me despedi de toda aquela dor que em tentáculos queimava como gás ardente.

Repentinamente, ela freou com toda vontade. Fui para frente e para trás. O cinto de segurança evitou que enfiasse a cara no pára-brisas. Meus pensamentos despedaçaram-se. Ela estacionou ao acostamento e eu olhei espantado.

Aquela mulher tão firme e segura estava trêmula. Chorava. Batia com as mãos ao volante. Não conseguia acreditar. Abracei-a e a trouxe para o peito. Senti suas lágrimas molharam meu peito.

Lembrei-me da escuridão de meus passos. De queda em queda andei a buscar-me, sem o saber. Não deu tréguas a mim mesmo, não me dei descanso e nem fim. De selvagens cactos duros e obscuros astros agonizantes fiz meus caminhos. Como podia encontrar a doçura que a fizesse entender que era real? Que eu estava ali sim e era inteiramente seu?

Nós atravessamos desertos juntos e estávamos ali, vivos. Eu a amava, mesmo que rude e obscuro, em travões de ternura e cativos desejos. Havíamos envelhecidos. Estávamos maduros, e eu a lembrava moça, linda em sua vitalidade e plenitude. Para mim, cada uma daquelas ruguinhas, eram sinais da mais profunda beleza. Enchi a boca com minha língua e a garganta de todo o ar. Meu pau ficou duro como ferro.

Era louco. Em meio a uma crise da companheira, que já se serenava aos poucos, se aninhando em meu peito, minha paixão ficava exposta. Minha boca cheia de saliva, como um cão. Eu a queria, ali e agora. Sabia que ficaria inteiramente forte quando transpassasse aquela mulher. Nasceria de novo, cego e mudo. Apesar do carinho de sussurros sórdidos que tudo ia tomando rumo, não éramos mais crianças.

Ela ligou novamente o carro, enquanto eu a apalpava como os olhos. Sim - agora, efetivamente, nós estávamos livres.

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