Adote um esquiador

por Ana Maria Peres
Trip #183

Três brasileiros que mal falam o português vão defender o País nas Olimpíadas de Inverno

Os três atletas que aparecem nestas fotos são brasileiros, mas mal falam o português. Nos primeiros anos de vida, foram adotados e cresceram na neve, um em cada canto da Europa. Hoje são os melhores esquiadores a defender nosso país nas competições internacionais. Com vocês, Anna Breigutu, Maya Harrisson e Jhonatan Longui, nossas promessas para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2010 em Vancouver

Para ativar sua memória, é preciso concentração. Um apagão se instalou na mente de Anna Breigutu, 18, em relação à infância no Brasil. Os seis anos vividos em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, onde nasceu, foram transformados em duas únicas lembranças: o dia em que seus pais adotivos apareceram e a viagem que fez com eles pelo Pantanal. “Lembro apenas que morava num orfanato grande, com dez casas. Um dia, meus pais entraram lá. Entendi que teria de esperar quase dois meses para sair com eles. Mas ganhei um urso de pelúcia de presente, que me ajudou a dormir melhor”, conta a menina. Passada a espera, o novo núcleo se embrenhou no Pantanal, durante uma semana. “No fim da viagem, peguei um vírus que me causou epilepsia, algo raro de acontecer. Meus pais me levaram a um médico que morava numa fazenda. Passamos uma semana lá, pois eles também tiveram problemas de saúde. Aquele homem nos curou. Isso é tudo o que recordo daquela época.”

Anna saiu do calor mato-grossense para as baixas temperaturas da Noruega. “Quando desci do avião, estava tão frio que dava para soprar a neblina.” Contudo, quatro dias após a chegada em Oslo, já estava deslizando na neve, em sua primeira aula de esqui cross-country, esporte popular na região. “Meu pai saltava de esqui, e minha mãe é ótima esquiadora também.” No mesmo ano, ainda antes de dominar a língua norueguesa e se acostumar com o frio, passou a praticar o esqui alpino. “Era só por diversão. Comecei a treinar sério com 10 anos.” Filha de um empresário e de uma aeromoça, na adolescência se transferiu com a família para Hemsedal, uma das melhores regiões de esqui da Escandinávia, também na Noruega. Trocar a capital do país por uma vila de 1.800 habitantes foi outra prova dura. “Na escola, fazia parte das pessoas não populares. Aguentei desaforos e ausência de vida social por um bom tempo. Até hoje, meus melhores amigos estão em Oslo, onde moro atualmente.”

Virou especialista em provas de velocidade, como downhill e super G. Já que se destacar entre norueguesas na neve não é fácil, há dois anos Anna se filiou à FIS, a Federação Internacional de Esqui, para competir pelo Brasil. Aos 17, foi a primeira brasileira na história do esporte a entrar para o seleto grupo de atletas da elite mundial que esquiou abaixo dos 100 pontos FIS. “Na pontuação do esqui alpino, menos é mais”, explica Stefano Arnhold, presidente da Confederação Brasileira de Esportes de Neve. “Anna é recordista brasileira de super G [prova de velocidade que incorpora características do downhill e do slalom gigante], marca que conquistou em novembro de 2006. Tem futuro”, garante ele. Em agosto deste ano, ganhou novamente a prova de Super G no 24ª Campeonato Brasileiro de Esqui Alpino, em Valle Nevado, Chile. A garota não acha estranho o fato de competir por um país cuja língua esqueceu. “Me envolvi completamente na cultura nórdica, simplesmente aconteceu. Mas competir pelo Brasil é cool”, diz ela, que não troca uma feijoada por prato algum.

“Me envolvi completamente na cultura nórdica. Mas competir pelo Brasil é cool”, afirma Anna

Furacão em Chamonix
A suíço-brasileira Maya Harrisson, 17, é um furacão. Discursa rápido e passa de um assunto a outro em dois tempos. Seu inglês com sotaque francês deixa a repórter um tanto perdida ao telefone. A intensidade e a fúria da atleta têm provocado ótimos resultados: durante o Brasileiro no Chile, venceu a modalidade slalom gigante e conseguiu a melhor pontuação da história do esqui nacional (detalhe: entre homens e mulheres), 35.48 pontos FIS. No mesmo mês, em agosto, havia quebrado o próprio recorde na etapa argentina da Copa Sul-Americana, em Ushuaia. “Ela vem quebrando recordes atrás de recordes. É a maior promessa no feminino para os Jogos Olímpicos de Vancouver de 2010”, aposta Arnhold, da Confederação Brasileira.

Maya nasceu no Rio de Janeiro e foi adotada com 1 ano de idade. Chegou a Genebra, na Suíça, no dia de seu primeiro aniversário. “O processo de adoção foi bastante complicado, tivemos de lutar bastante”, desabafa sua mãe, a médica ítalo-suíça Letizia Toscani. “Quando a encontramos, ela estava desnutrida, com a saúde péssima. Para piorar, na época havia um escândalo de tráfico de órgãos na Itália, era uma tremenda desconfiança. O juiz faltava às audiências, sofri muito com a espera.” Por fim, Letizia e seu marido suíço-canadense, que é sociólogo e trabalha na ONU, conseguiram levar a menina para uma realidade oposta. Com mais dois irmãos, Maya passou a viver entre a capital suíça e a casa de campo da família em Megève, na França, próximo a Mont Blanc, a mais alta montanha da Europa ocidental. Foi nessa área que começou a esquiar, aos 3 anos. “Adorei desde o início. Moramos na França um tempo e participei das primeiras provas lá, quando tinha 6 anos.”

Em 2007, Maya competiu pela primeira vez representando o Brasil, no Chile, associada à Federação Internacional de Esqui. Desde então, só pode se inscrever pelo país de origem. “As pessoas estranharam no começo. ‘Por que competir pelo Brasil?’’’, queriam saber. “Pergunta estúpida, não?”, reflete. No entanto, Maya voltou uma única vez depois da partida, 16 anos depois. Quando esteve na América do Sul, há três meses, passou uma semana em São Paulo, na casa da atleta Isabella Monti. “Fiz algumas aulas de português.” Mas não conseguiu visitar o Rio. “Foi muito rápido, mas pretendo voltar. Há pessoas que me aconselham a procurar minha mãe biológica, mas acho que ela está em outra, deve estar casada e ter outros filhos.” Quase enlouqueceu para levar os estudos e os treinos simultaneamente, quando descobriu uma escola especial para esquiadores em Chamonix, na França, com programa curricular adaptado aos treinos e rotina regradíssima, com hora para dormir. Agora está em paz, à espera da lista dos classificados para Vancouver, que sai em dezembro.

Paitrocínio italiano
“Todos os dias, penso como teria sido minha vida no Brasil. O problema é que, como não tem neve, não sei que tipo de trabalho poderia encontrar”, divaga Jhonatan Longhi, 21. Filho adotivo de um casal de italianos – seu pai é engenheiro de software; sua mãe, professora de matemática –, o menino deixou o Brasil aos 3, junto com sua irmã de sangue, Karina. Nascido em Americana, São Paulo, nada sabe sobre sua vida antes da Itália. “Nós não conversamos sobre isso em casa. Mas tenho uma ligação com o Brasil. Às vezes, me sinto mais brasileiro do que italiano. É uma sensação esquisita.” Jhonny, como é chamado, provavelmente não vai gostar da abertura dessa matéria. Na verdade, ele fala, sim, a língua materna – pelo menos, tenta com afinco. “É muito difícil aprender português, por isso estudo. Afinal, estou competindo pelo Brasil.” Não apenas competindo, é bom dizer, mas ganhando absurdamente: detentor de três dos cinco recordes brasileiros possíveis e primeiro atleta do Brasil a esquiar abaixo dos 50 pontos FIS, ele se destaca em todas as modalidades do esqui alpino. Durante o último campeonato brasileiro, no Chile, levou o primeiro lugar nas provas de slalom especial, slalom gigante e super G. Em 2004, já havia vencido em três categorias. O país nunca teve um competidor nesse nível aos 21 anos.

“Às vezes, sinto que sou mais brasileiro do que italiano. É esquisito”, diz Jhonathan

Jhonny mora numa vila na região de Piemonte, cercada por montanhas e lagos, onde costuma nadar no verão. Aprendeu a esquiar no Alpe di Mera-Monte Rosa, perto de sua casa, aos 4 anos. “É um lugar lindo, tive uma vida muito afortunada, em todos os sentidos. Comecei a praticar com meu pai, depois entrei num clube de esqui. Achava muito frio, mas depois de minha primeira vitória fiquei apaixonado.” O pai, Lorenzo Longui, foi também o responsável pela ideia de Jhonatan competir pelo Brasil, depois que o atleta ganhou algumas provas regionais na Itália. Hoje, ele já tem o índice para disputar as Olimpíadas de Vancouver e está de olho nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, na Rússia. “Embora receba incentivo do Comitê Olímpico e da Confederação Brasileira, meu maior patrocinador ainda é meu pai. Preciso mesmo encontrar patrocínio brasileiro, que me ajude com o próximo programa de preparação técnica e física”, avisa ele, que largou o curso de veterinária no segundo ano para se dedicar full time ao esporte.

 

Boa praça, o ragazzo mostra nítido afeto pelo país onde nasceu. Já visitou o Brasil várias vezes com a família. Na última estada, há três anos, passou por Recife, Porto de Galinhas, Fortaleza, São Paulo e Rio de Janeiro – de uma só vez, em 30 dias. “Quero voltar ao Rio em breve, ir à praia e comer pão de queijo”, afirma, em consonância com a amiga Maya Harrisson. “Pretendo viajar no próximo verão, mas ainda não achei alguém para me hospedar aí”, brinca. Ao ser indagado se já sofreu preconceito por ser negro em seu meio, responde que sim. “Há gente ignorante por toda parte, mas os italianos são pessoas boas, na grande maioria. Não fico mais triste. Sou mais forte.”

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