por Redação

”A arte ainda é pensada como algo elitista. O que me motiva é a ideia de que a arte é para todos”, diz a socióloga e jornalista, presidente da Fundação Iochpe

 

Socióloga e jornalista, e uma das homenageadas no Trip Transformadores deste ano, Evelyn Ioschpe é presidente da Fundação Iochpe, cujo foco são projetos de educação e qualificação profissional de jovens. Engajada em construir pontes entre empresas e terceiro setor – constituído por organizações sem fins lucrativos e não-governamentais que tem como objetivo gerar serviços de caráter público - também foi cofundadora e presidente do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), marco do investimento social privado. 

Com formação em Museum Education, Evelyn é casada com Ivoncy Ioschpe, presidente do conselho da Iochpe-Maxion, empresa de porte global, especializada em peças automotivas e ferroviárias, que instituiu sua fundação. Nela, Evelyn está à frente de programas como o Formare, em que o ensino técnico profissionalizante é realizado dentro da própria fábrica, tendo funcionários voluntários como professores. 

“Com o Formare, fomos a primeira fundação a implantar uma franquia social. Buscamos fazer com que qualquer fábrica, qualquer empreendimento, pudesse ter uma escola Formare. E não foi fácil, porque as franquias visam lucro, e nós precisávamos desenvolver um modelo que não visasse lucro, mas visasse multiplicação: o lucro é o lucro social”, explica.

Criado em 1988, hoje o programa é reconhecido pelo MEC e não se restringe ao ambiente da Iochpe-Maxxion, sendo aplicado em mais de 50 empresas, da Nívea à Duratex, e já formou mais de 10 mil alunos. 

A outra iniciativa da Fundação é o Instituto Arte na Escola, voltado para a melhoria do ensino de arte do ensino público, por meio da formação de professores. “De alguma forma, a arte ainda é pensada como algo elitista, ou que pertence às classes altas. Se tem alguma coisa que me motiva é a ideia de que a arte é para todos”, conta. Através de parcerias com universidades de todo o país, a iniciativa já beneficiou 13 mil professores.

“O professor de arte tem a inquietação de fazer a diferença na vida do aluno, e normalmente ele é aquele professor que o aluno lembra. Porque não existe um professor de arte médio: ou ele é bom, ou é ruim e não existe. Ele pode ser o disparador de conhecimentos muito significativos. Hoje nós temos pesquisas que afirmam o quanto o aprendizado das várias disciplinas é acelerado pelo aprendizado de artes.”

 

"A arte é um bem da humanidade, produzido pela humanidade, para ser usufruído por todos. Todos têm que estar aparelhados para poderem usufruir, da melhor forma possível, de todas as formas de arte."

 

Leia a seguir a conversa que Evelyn teve com a Trip.

Em que momento você pensou que tinha que fazer algo pelas outras pessoas ao redor?                                
Eu sou filha de judeus que sairam da Alemanha por causa do nazismo. Meu pai foi uma pessoa muito ativa e trabalhava em uma organização humanitária para ajudar judeus a fugir do nazismo. Cresci com a ideia de que pessoas ajudam pessoas. Evidentemente, fui muito marcada por essa herança. 

Fale um pouco sobre a sua ligação com a arte.                                                                                                              
Eu tenho uma ligação com a arte que vem da vida toda. Em casa nós tínhamos um ambiente de muita apreciação pela arte. Ouvíamos música clássica, erudita, e meu pai era amigo de um pintor que foi um professor muito importante aqui no Sul. Mais tarde eu tive a sorte de, no colégio, ser exposta a uma excelente professora de arte, que fez muita diferença na minha vida. Ela tinha uma visão que hoje é muita contemporânea nesse ensino. Ela levava os alunos para os museus e para o que já existia de galerias na época, para fazer apreciação crítica de arte. Era o colégio Aplicação, da faculdade de filosofia da federal do Rio Grande do Sul [UFRGS]

E por que você veio morar em São Paulo?
Eu vim morar em São Paulo já adulta. Fiz minha formação toda em Porto Alegre, casei, tive meus filhos e os criei lá. Vim para São Paulo no meu segundo casamento, com meus filhos já saindo de casa, numa nova etapa. A fundação nasce em Porto Alegre e vem para São Paulo também nessa época. 

Conte sobre o início da Fundação Iochpe.
A fundação começou fazendo um programa de arte e educação. Ela foi instituída pela Iochpe-Maxion, em 1989. E, naquele primeiro momento, nós não sabíamos exatamente ao que iríamos nos dedicar. Mas a empresa tinha uma tradição de mecenato, tanto em teatro quanto nas artes visuais e na música. Então, a primeira ideia foi fazer com que a fundação se voltasse inteiramente à educação. “Essa é a questão que vai fazer a diferença no futuro do Brasil”, pensamos, isso lá atrás, em 1989. “Para casar as vocações, vamos começar com arte e educação, e depois vamos migrar para outras áreas”. Nós começamos dessa forma, com um programa que chamamos de Arte na Escola, que se revelou tão promissor que nunca deixamos essa área para ir para outras. Nós agregamos outras áreas, mas ficamos sempre em arte e educação. 

Hoje em dia você só trabalha com atividades sociais? 
Sim, a minha energia está toda dedicada a Fundação Iochpe. Hoje tenho bastante tempo ocupado, também, por conselhos de organizações de arte e pelo terceiro setor. As pessoas, às vezes, confundem os nossos projetos. Tudo é Fundação Iochpe. Mas o Arte na Escola é uma coisa e o Formare é outro projeto completamente diferente. 

O que você fazia antes começar a trabalhar com o terceiro setor?
Naquele momento de escolher uma profissão, quando a gente entra na faculdade e não sabe muito bem o que vai fazer, eu decidi ir para a sociologia e para o jornalismo. Fiz as duas faculdade no Rio Grande do Sul, com muito interesse pelos dois campos, mas não sabendo bem o que eu ia fazer com eles. Em sociologia, logo quando entrei na faculdade, trabalhei como bolsista em vários projetos de pesquisa. E também comecei a trabalhar em jornal. Eu fazia a área cultural e, com 18 anos, tinha uma coluna minha com crônicas do cotidiano. Como naquela época a militância feminista era muito importante, [a coluna] tinha essa marca. Era no maior jornal do Rio Grande do Sul na época, o Correio do Povo, e depois eu me transferi para o Zero Hora, que hoje é o maior jornal do estado, sempre cobrindo cultura e produzindo um tipo de jornalismo ligado à literatura. 

O trabalho escrevendo em jornais te satisfazia?
Nas crônicas eu tinha a oportunidade de exercer certa militância, já que eram crônicas de opinião, e, de alguma forma, elas foram a base do meu trabalho de hoje. Elas não estavam ligadas ao terceiro setor, propriamente, mas tinham um viés feminista, e um viés social. E, ao mesmo tempo, na sociologia eu tava trabalhando em projetos de pesquisa na área de habitação, fazendo investigações na área sociológica. Então, as duas coisas se completavam para a minha visão de mundo. Depois, trabalhando na imprensa, me envolvi com uma associação de artistas plásticos, que era a militância dos artistas, e eu me apresentei como voluntária para fazer o jornalzinho deles e passei a ficar um pouco mais por dentro da vida desses artistas. 

Nessa época, eles me pediram para assumir o Museu de Arte do Estado, que tinha uma ingerência política muito forte, e a comunidade artística tinha desejo de que fosse gerido de uma forma não política, voltado para o desenvolvimento cultural. Fui convidada pelo secretário de cultura da época. Eu achei um desafio muito interessante, e topei. E me empenhei em transformar aquele museu, em fazer com que uma casa linda, mas absolutamente parada no tempo, se transformasse numa instituição museológica e fosse inserida no circuito brasileiro de instituições culturais. 

Trabalhei muito, e foi um período interessante da minha vida, onde me apaixonei pela questão das artes visuais e, sobretudo, pela educação por  meio da arte. Porque eu me dei conta do custo das instituições culturais para a máquina do Estado. Para realmente funcionar com qualidade, as instiuições culturais precisam de orçamentos respeitáveis. E me dei conta de que tudo só tinha sentido na medida em que as crianças pudessem ter acesso aos museus. E os programas educacionais eram muito incipientes na época, década de 80. Praticamente não havia, no Sul, programa de arte e educação, só em São Paulo já tinham alguns museus de mais qualidade. Eu me empenhei em gerar esses programas, e foi quando eu entrei mais fundo nessa área. Foi no final dessa gestão que começou a se esboçar a ideia da Fundação Iochpe e do Arte na Escola.

 

“De alguma forma, a arte ainda é pensada como algo elitista, ou que pertence às classes altas. Se tem alguma coisa que me motiva é a ideia de que a arte é para todos”

 

E, para você, como a arte pode influenciar na vida de uma pessoa?
Eu acho que as pessoas não se dão conta de o quanto a arte permeia a vida. De alguma forma, a arte ainda é pensada como algo elitista, ou que pertence às classes altas. Se tem alguma coisa que me motiva é a ideia de que a arte é para todos. De que a arte é um bem da humanidade, produzido pela humanidade, para ser usufruído por todos. Todos têm que estar aparelhados, na verdade, para poderem usufruir, da melhor forma possível, de todas as formas de arte. As pessoas não se dão conta que desde que elas acordam pela manhã e ligam o rádio, elas estão recebendo música, popular, erudita. Quando você sai à rua, o impacto da imagem visual é cada vez mais importante. Hoje você tem um bombardeio de imagem visual que não necessariamente é codificada; então, tem que estar aparelhado para isso.

Pensando nisso, quais são os principais objetivos do Arte na Escola?
O Arte na Escola está calcado em levar a arte para todas escolas brasileiras. Através de convênios com as universidades, visa capacitar professores das redes locais e, principalmente, das redes públicas, com materiais que nós fornecemos, num programa que nós supervisionamos.  Nós temos 47 universidades parceiras em todo Brasil que mantêm grupos de estudos que fazem um trabalho de capacitação contínua do professor, que é no que acreditamos: através da capacitação continuada iremos fazer a diferença na educação.E aí estamos falando não só no fazer artístico, mas também no contextualização e na apreciação artística. São três vertentes que se combinam para que uma criança possa entrar no mundo da arte. 

O desenvolvimento do Arte na Escola te dá uma sensação de realização?
São mais de 20 anos desde que iniciamos o projeto, e ele tem crescido de uma forma exponencial. Nós começamos com uma universidade, depois com outra, gerando materiais de ensino, comprando vídeos, fazendo materiais didáticos que acompanham esse vídeos, produzindo livros, enfim. E hoje eu vejo com muita alegria a melhoria que o ensino de arte tomou no Brasil. Foram muitas as coisas que aconteceram, mas vejo que o Arte na Escola teve um papel importante nisso. E eu digo isso porque não é uma obra minha, é uma obra dessa rede enorme de professores, universitários, escola pública, escola privada, que são engajados. 

O professor de arte tem a inquietação de fazer a diferença na vida do aluno, e normalmente ele é aquele professor que o aluno lembra. Ou ele não existe, né? [risos]. Porque não existe um professor de arte médio: ou ele é bom, ou é ruim e não existe. Ele pode ser o disparador de conhecimentos muito significativos. Hoje nós temos pesquisas que afirmam o quanto o aprendizado das várias disciplinas é acelerado pelo aprendizado de artes. Em matemática e português temos um avanço muito significativo pelo avanço do ensino da arte. E temos, também, uma questão que é muito importante no Brasil que é a evasão escolar. Temos índices bem claros de que a arte diminui a evasão escolar. E isso me traz muita alegria.  

Você falou sobre o impacto que o projeto tem nos professores e alunos. E qual é o impacto em você?          A criação do material didático, para mim, é um momento mágico. É o que mais me interessa, o que mais me mobiliza. Pensar que você está criando um material que vai chegar nas mãos de milhares de crianças e que precisa ter, então, uma qualidade e um respeito para que isso realmente faça a diferença, mobiliza demais a minha imaginação e a minha inteligência. São os momentos que eu mais gosto dentro do Arte na Escola. 

Você foi tocada pelo poder transformador da arte. Quer que outras pessoas também sintam isso?              Eu tive uma experiência bem particular,  que foi um momento muito poderoso, e acho que tem a ver até com o tipo de material que a gente produz. Na casa dos meus pais havia muitas reproduções de impressionistas. E eu convivi com aqueles impressionistas a minha vida inteira, e não sei se sabia exatamente o que era um Renoir, o que era um Monet, ou um Manet. Com 17 anos eu ganhei uma bolsa para estudar nos Estados Unidos, e passei um ano lá. E, nesse momento, o mundo das artes, foi o maior deslumbramento, porque eu não conhecia museus do porte dos museus americanos. E, por sorte, a minha “mãe” americana era artista plástica. Ela identificou em mim esse desejo de conhecer as artes e me fez parceira dela para visitar coleções de arte. Ela me proporcionou uma visita a Washington para conhecer a National Gallery of Art, que é um desses museus capitais.

E eu lembro muito claramente do momento em que me defrontei com o quadro original da reprodução do Monet que eu tinha em casa. Eu fiquei arrepiada! Era como se eu tivesse reencontrando um parente, um familiar, uma pessoa muito, muito íntima. E eu me dei conta da importância daquilo. Daquele objeto estar no museu, de milhões de pessoas poderem visitar, de ter reproduções que pudessem ir para escolas, para casa das pessoas. Eu me dei conta de que aquela obra-prima da humanidade chegou até mim e que eu tive a oportunidade de me encontrar pessoalmente com aquele quadro. Foi muito revelador. E eu nunca esqueci essa emoção.

Eu também sempre tive essa visão da criança que nasceu num lugar que não tinha muitos museus. Então, os museus tinham que ir até a sala de aula, porque a criança não poderia ir até ele. Vejo as professoras do Arte na Escola que pegam suas mochilas, levando os livros e o material, vão da capital para o interior, em grupos de estudos nas pequenas cidades e quando elas chegam na escola é uma alegria. Então, através do trabalho delas a arte está chegando e dando essa alegria que eu tive na minha juventude. De alguma forma é um ciclo que se completa. 

"Lembro muito claramente do momento em que me defrontei com o quadro original da reprodução do Monet que eu tinha em casa. Fiquei arrepiada! Era como se tivesse reencontrando um parente, um familiar, uma pessoa muito, muito íntima. E me dei conta da importância daquilo"

O que significa para você atuar no terceiro setor e como acha que outros pessoas deveria atuar?
Todas as pessoas que têm vocação para o terceiro setor são as que se dão conta de que a vida delas pode transformar a vida de outras pessoas. Quando nós fomos criar a fundação, a visão que tínhamos era de que se havia um trabalho profissional sendo feito, não podíamos mais pensar em atender diretamente a uma determinada população, mas tínhamos que desenhar uma maneira da nossa ação ser multiplicadora. Ao criarmos a Fundação Iochpe, encontramos dentro da empresa uma iniciativa que era uma escolinha técnica para jovens pobres. A ideia: que jovens da periferia pudessem aprender uma profissão. E aquilo tinha sido modelado de uma forma que a escola funcionava dentro da fábrica. E o desafio que me foi colocado era colocar uma escola dessa em cada unidade das fábricas da Iochpe-Maxion. E então eu fui entender os pressupostos educacionais do modelo que viria ser o de franquia social. Fomos a primeira fundação a implantar uma franquia social. Nós trabalhamos dois anos desenvolvendo o que seria o modelo, e buscamos fazer com que qualquer fábrica, qualquer empreendimento, pudesse ter uma escola. E não foi fácil, porque as franquias visam lucro; e nós precisávamos desenvolver um modelo que não visasse lucro, mas multiplicação. Que usasse os mesmos princípios, mas com outros resultados: o lucro é o lucro social. Fomos muito felizes nesse desenvolvimento e hoje nós temos 90 escolas distribuídas em todo Brasil, muitas concentradas no estado de São Paulo onde está o maior parque fabril; e em terminalidades bastante diferentes: mecânica, hotelaria, elétrica, enfim, muitas profissões que são customizadas para aquela fábrica em particular. 

Entrar para o terceiro setor foi onde eu consegui, na verdade, expressar o meu desejo de mudança, de dar minha contribuição. Queremos ajudar a formar indivíduos mais conscientes, que tenham uma visão mais sólida e mais crítica, para que possam ser cidadãos mais plenos e mais participantes.

"A visão que tínhamos era de que se havia um trabalho profissional sendo feito, não podíamos mais pensar em atender diretamente a uma determinada população, mas tínhamos que desenhar uma maneira da nossa ação ser multiplicadora"
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