por Redação

”Eu poderia muito bem hoje estar num avião indo para qualquer lugar do mundo, estar curtindo, e esquecer daquilo que está lá atrás, das minhas origens e das pessoas que tanto precisam de ajuda”, diz o ex-jogador, criador da Fundação Cafu

Cafu

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Um dos homenageados no Trip Transformadores deste ano, Marcos Evangelista de Morais, o Cafu, é quem mais vestiu a cobiçada camisa amarelinha na história do futebol brasileiro. Jogou em três finais de Copa do mundo e, na última, em 2002, levantou a taça como capitão da seleção. Foi nesse momento, auge máximo de sua carreira, que Cafu revelou-se transformador. 

Em meio à formalidade da cerimônia, declarou a plenos pulmões seu amor à esposa Regina e fez questão de homenagear suas origens: no peito da camiseta que usava, em letras manuscritas, escreveu: "100% Jardim Irene", bairro da periferia de São Paulo em que o jogador cresceu. “Queria mostrar para as crianças e para os meus amigos do Jardim Irene que, mesmo longe, eu pensava neles. Eu nunca iria fugir das minhas origens”, explica.

Era a coroação de uma ação iniciada um ano antes, quando criou no seu bairro a Fundação Cafu, nascida do seu desejo de contribuir para a transformação do bairro e criação de oportunidades para crianças e jovens da região. “Acho que na época em que eu morava aqui, se nós tivéssemos uma fundação dessa, eu não teria perdido tantos amigos da maneira como perdi. Nós não tínhamos oportunidade e a falta de oportunidade faz com que você faça besteira”, comenta.

A sede foi construída em 2004. Desde então, realiza atividades culturais e esportivas, de reforço escolar, de geração de renda e de formação profissional. O capitão do penta frequentemente acompanha pessoalmente muitas das atividades. “Eu poderia muito bem hoje estar sentado num barco ou estar num avião indo para qualquer lugar do mundo, estar curtindo, e esquecer daquilo que está lá atrás, das minhas origens e das pessoas que tanto precisam de ajuda”, pondera.

Leia a seguir a conversa que o ex-jogador teve com a Trip:

O que o bairro Jardim Irene representa para você?
Jardim Irene significa tudo para mim. Foi onde começou minha história, onde dei meus primeiros passos. Do Jardim Irene eu saí para conquistar os gramados e as estradas do mundo. É um bairro de periferia, como a maioria de vocês conhece. E vocês sabem que as periferias só mudam de nome, o que tem nelas é sempre a mesma coisa: um monte de pessoas procurando oportunidade, procurando um local onde possam expressar toda sua inteligência, procurando o que fazer. O Jardim Irene era dessa maneira. Eu nasci e fui criado aqui, morei por 22 anos, sabia quais eram as dificuldades do nosso bairro.

Quando começou o projeto da Fundação Cafu?
Nós começamos a construção em 2000, e terminamos em 2002. Por incrível que pareça, “casou” com a Copa do Mundo de 2002, em que o Brasil foi campeão. Então, muita gente acha que eu construí a fundação porque o Brasil foi campeão. Está enganado. A Fundação Cafu já estava sendo construída . Tivemos a felicidade de sermos campeões do mundo, com muita competência,  e isso deu um up muito grande para a fundação. Foi fantástico. No ano em que o Brasil conseguiu conquistar o pentacampeonato mundial, tive uma outra felicidade na vida que foi inaugurar a Fundação Cafu. 

Fale um pouco sobre suas recordações da infância.
Minhas memórias de criança são as brincadeiras. Jogar bolinha de gude, correr atrás de pipa, ir à escola, pegar o ônibus lotado, ir aos treinamentos. As lembranças daquela época estão nítidas até hoje na minha memória. Tudo o que eu faço, aonde eu vou, eu sempre tenho boas lembranças do período que passei aqui no Jardim Irene. 

Essas boas lembranças que te levaram a criar a fundação?                                                                       Eu sabia o que as crianças daqui precisavam para que pudessem ter uma igualdade dentro da sociedade, e por isso nós montamos a Fundação Cafu.  Para dar esperança à essas crianças, para mostrar para elas que do mesmo lugar que eu saí, outras podem sair. Não precisa ser exclusivamente pelo futebol. Tanto é que aqui na fundação nós não pregamos o futebol. A nossa missão é a inclusão social, fazer com que as crianças se incluam na socieade de uma outra maneira, através da educação, dos estudos, e, de repente, até do esporte, tendo conhecimentos que nós não tivemos na nossa época. 

Queria, também, mostrar para as crianças e para os meus amigos do Jardim Irene que, mesmo longe, eu pensava neles. Mesmo longe eu nunca iria fugir das minhas origens. Mostrar para eles que Deus me deu a oportunidade de ter uma outra condição de vida. E que essa condição de vida outros poderiam ter também se trabalhassem e seguissem o caminho certo. 

Acho que na época em que eu morava aqui, se nós tivéssemos uma fundação dessa, em que você pudesse vir, ter aula de inglês, reforço de português, pudesse ter uma biblioteca, uma brinquedoteca, curso de cabeleireiro, quadra poliesportiva, eu não teria perdido tantos amigos da maneira como perdi. Porque, realmente, nós não tínhamos oportunidade, e a falta de oportunidade faz com que você faça besteira. 

Você se lembra de algum momento específico em que pensou em fazer besteira?
Todo dia tinha um momento chave, e uma situação chave. A gente passava por isso todo santo dia, todo final de semana. Todo momento tinha uma situação que fazia com que você ou mudasse de ideia ou ia para o lado errado.

Você acha que o seu caminho foi diferente por quê?
Porque eu quis um caminho diferente. E é difícil você focar e querer alguma coisa numa sociedade que não te dá oportunidade. Então, nós estamos dando essa oportunidade para essas crianças. Amanhã ou depois elas não vão poder falar que não tiveram oportunidades. Coisa que nós poderíamos ter falado [que não tiveram oportunidades], mas nem por isso eu fui para o outro lado. Eu segui o caminho certo e esse caminho fez com que eu me transformasse em quem sou. 

E como é ter vivido duas realidades tão antagônicas, da periferia para o alto nível de vida na Europa? 
Eu vi e vivi dois mundos.  Eu vi o mundo de uma periferia, cheia de esperança, cheia de gente com boa vontade de fazer alguma coisa, mas não tendo oportunidade. E vi o mundo do lado de lá, com um monte de gente com muita condição de fazer as coisas, de dar esperança para outras pessoas, mas com menos boa vontade. Então, eu vivi dois extremos. Por isso eu consigo me adaptar e viver bem tanto no Jardim Irene, quanto em qualquer outro lugar do mundo que eu vá. Hoje eu posso  tomar café num copo de massa de tomate sem constrangimento, como também posso tomar café numa xícara de porcelana alemã. Para mim não vai ter diferença nenhuma: gosto vai ser o mesmo.

Do que você mais sentia falta nos primeiros anos morando fora do Brasil?
Eu sentia falta de um pouco de tudo. Dos meus parentes, dos meus amigos, do calor humano brasileiro, de você colocar o chinelo e no final de semana entrar na casa do seu amigo para tomar uma cervejinha gelada sem precisar colocar um relógio, um brinco, um colar de ouro, ou uma roupa de marca. Acho que essas coisas acabam marcando e realmente fazem falta para quem é de origem humilde e não liga para nada. 

"Eu vivi dois extremos. Hoje eu posso  tomar café num copo de massa de tomate sem constrangimento, como também posso tomar café numa xícara de porcelana alemã. Para mim não vai ter diferença nenhuma: gosto vai ser o mesmo."

Se você pudesse mandar um recado para a sociedade, qual seria?
Ah, a gente tem vontade de falar tanta coisa, mas às vezes você é obrigado até a engolir seco e não falar. A vontade que eu tenho é falar para as pessoas que tem, realmente, condições de ajudar as instuições e as fundações, que ajudem. Porque o trabalho é sério, é árduo, mas é gratificante. Eu poderia muito bem hoje estar sentado num barco ou estar num avião indo para qualquer lugar do mundo, numa ilha, e estar curtindo, e esquecer daquilo que está lá atrás, das minhas origens e das pessoas que tanto precisam de ajuda. Então, vocês que tem condições de ajudar, ajudem, porque só vai te fazer bem, eu tenho certeza disso. 

E a Fundação Cafu está aqui, aberta para que vocês possam nos ajudar a dar sequência no nosso trabalho, a ajudar 750 crianças do bairro Jardim Irene. É um trabalho legal,  e eu espero contar com a ajuda de todos vocês. Tem muita gente trabalhando, mas muito mais ainda pode ser feito. Eu sou um cara otimista, e espero que daqui a dez anos nosso país possa ter uma reviravolta e as pessoas possam se conscientizar que o nosso futuro está na mão dessas crianças. E se não dermos educação a elas, vamos ter um país desordenado.     

Saiba mais sobre a Fundação Cafu.

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