Retratos de uma vida

por Redação

A cearense Telma Saraiva passou a juventude pintando as mulheres dos seus sonhos. Sem saber, inventou o photoshop

 
Muito antes de Cindy Sherman*, uma das mais respeitadas fotógrafas da segunda metade do século 20, começar a se fotografar em 1977, em Nova York, Telma Saraiva já espalhara sua extensa obra pelas casas do sertão do Cariri, interior do Ceará. Telma era especialista em fotopintura, uma técnica quase extinta hoje, que fazia muito sucesso na década de 40. Funcionava assim: uma foto simples era ampliada em preto-e-branco e retocada com tinta a óleo, deixando a pessoa mais bonita e acrescentando acessórios ao figurino (como ternos, jóias, maquiagem e vestidos). Os novos detalhes emprestavam certo prestígio ao personagem. Essas fotopinturas faziam muito sucesso nos anos 20, 30, 40, 50 e até 60. Ainda hoje, em cidades do interior, é comum encontrar esses retratos nas paredes das casas de família.



O trabalho de Telma, apesar de seguir a mesma lógica e técnica de seus colegas de ofício, era completamente diferente, inusitado e um tanto quanto pop para a época. Ela pintava auto-retratos baseados em cenas fantasiosas inspiradas em filmes e artistas de Hollywood, conhecidos das salas de cinema do Crato (cidade onde nasceu e vive até hoje). Seu pai, um homem curioso e cinéfilo, mandava a filha assistir a filmes para treinar a leitura rápida. A cearense também colecionava fotos de artistas famosos, recortadas da revista A Cena Muda e de embalagens como as do sabonete Lever, populares na época. Ela produzia cenários, figurinos e maquiagem para as sessões de foto. Depois, retocava as imagens com estilo ultrarealista e acabamento perfeito, sem trair a veracidade dos traços. Sua obra, até então nunca mostrada, foi descoberta recentemente pelo fotógrafo alemão Titus Riedl e ganhou exposição no Centro Cultural Dragão do Mar, em Fortaleza, e na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, em 2006. A seguir, Tpm bate um papo com Telma por telefone.

Tpm. Quem criava suas roupas inspiradas nas atrizes de cinema? Telma Saraiva. Eram feitas por mim mesma, arranjos que eu montava na hora, com alfinetes, só para fazer a foto.

De onde surgiu a idéia de pintar os retratos? Na época, eu colecionava uma revista chamada A Cena Muda e um dia, numa das edições, vi um anúncio de uma tinta americana própria para fotografia. Então, pedi para meu irmão escrever uma carta em inglês e encomendar as tintas. Logo que chegaram, comecei a pintar retratos.

Quantos anos você tinha? Eu devia ter uns 16, ainda estava no colégio. Comecei pintando fotos de colegas da escola.

Com quem você aprendeu a se maquiar? Desenvolvia minhas maquiagens inspirada nas fotos das atrizes que via. Ninguém me ensinou, aprendi sozinha, até porque depois podia fazer o retoque no retrato com tinta a óleo. Hoje em dia, as maquiagens têm muito mais qualidade do que as de antigamente, têm mais tecnologia, tiram imperfeições da pele, como espinhas. Antigamente eu fazia esses retoques na pintura.

Falando em beleza, o que a mulher ganhou ou perdeu da sua época para a atual? Na minha época, as mulheres eram muito bonitas e já usavam bastante maquiagem. Porém, tinham uma beleza totalmente diferente umas das outras e elas gostavam disso. Hoje, as moças belíssimas têm a vantagem de ter acesso às melhores maquiagens e tru­ques, mas elas são totalmente iguais, perderam a excentricidade.

Existe algum ritual que você mantém desde aquela época? A única coisa que faço é usar uma boa base, um blush e um batom bonito, que combine com a roupa que estou usando. E o curvex, muito usado no meu tempo e que está voltando. Nos anos 60, os olhos estavam sempre bem delineados.

Que personagem incorporaria hoje? Escolheria uma espanhola, por causa da maquiagem forte e marcante, da roupa bonita com muitos detalhes de renda e do próprio leque.

*Cindy Sherman se fotografava como atriz de filmes B, no papel da dona de casa, da prostituta etc. Usava sua imagem para comentar fatos do mundo moderno, como o papel da mulher na sociedade
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