Quem sou eu mesmo?

por Rosane Queiróz
Tpm #95

Fernanda Baumhardt só deu sentido à vida quando aprendeu o que é fazer a diferença

 

Fernanda estava no topo. Era novembro de 2006 e nove meses antes havia se mudado com o namorado para a charmosa Venice Beach, na Califórnia. Morava a quatro quadras do mar, ondas perfeitas para surfar. Levava uma vida de seriado. Aos 38 anos, ganhava US$ 15 mil por mês como gerente de vendas de publicidade digital do canal CNN, em Los Angeles. Imersa em seu cotidiano de trabalho, nas horas de folga se jogava nas compras (chegava a gastar US$ 6 mil por mês em roupas) e em restaurantes badalados. Até que começou a sentir uma pontinha de incômodo e a desconfiar de que não estava feliz com essa vida. “Era como se tivesse me perdido de mim mesma. Sentia um vazio absurdo”, conta a gaúcha de Porto Alegre, aos goles de chimarrão, em sua casa na Vila Madalena, em São Paulo, onde fica de férias vez ou outra.

Na sala, retratos dela rodeada por crianças negras chamam a atenção. “Estive na África ano passado fazendo um documentário sobre variações climáticas”, diz, mudando de assunto. Para entender a conexão Califórnia-África, voltemos à ensolarada Venice, onde uma crise pessoal motivou a mudança. Crise que começou com a hostilidade dos colegas americanos, já que a moça era funcionária exemplar e única estrangeira da equipe. No ano em que ficou na CNN, faturou US$ 2 milhões para o canal e US$ 180 mil de comissões.

Vendo que Fernanda andava estressada, uma amiga brasileira, advogada em Los Angeles, a convidou para ir a um centro budista. “Fiquei repetindo mantras e senti uma paz incrível”, lembra ela, que passou a frequentar as reuniões da linha budista Nichiren Daishonin. Conceitos como desapego e impermanência eram coerentes com as coisas que já sentia, mas não reconhecia. “O budismo fez florescer o desejo de fazer algo pelo coletivo”, diz. Foi também nos mantras que Fernanda se apoiou no fim da união com o analista de comércio exterior André Pizzato, quando ele resolveu voltar ao Brasil. Sem visto de trabalho, André fazia bicos. E nem o amor nem a vida confortável o fizeram ficar. “Só senti dor parecida quando meu pai morreu”, desabafa Fernanda.

Foi então que resolveu passar o aniversário de 38 anos em Sedona, “reduto espiritual” no Arizona, conhecido por seus inúmeros centros de ioga e spas holísticos. Lá, Fernanda participou de um retiro num lugar chamado Angel’s Valley, e o questionamento explodiu. “Refleti sobre quem era a verdadeira Fernanda. Desconfiei de que ela não era tão ambiciosa, que tinha outra missão além de fazer dinheiro para empresários de Wall Street”, lembra.

Um detalhe relevante: a mãe de Fernanda, Jane Mocellin, é psicóloga e trabalha em missões humanitárias da ONU. Sua função é avaliar as condições psicológicas de sobreviventes de guerras ou catástrofes, como tsunamis. “Nunca vou esquecer o dia em que ela me ligou, do Sudão, em missão pela Unicef para ajudar a soltar crianças raptadas pela militância rebelde. Ela estava numa vila remota, tomando banho de caneca. E eu, toda executiva, vestia terninhos de grife...” Dias depois, Jane ligou para dizer que as crianças haviam sido soltas. E a vontade da filha era sair contando para os amigos que sua mãe, ela sim, tinha feito algo de importante pelo mundo. “Enquanto isso, eu, do outro lado do oceano, vendendo publicidade... Não suportava mais aquilo”, conta.

Pé na África

No dia em que se despediu do trabalho, Fernanda nem sequer sabia o que faria da vida. Uma das hipóteses era atuar como voluntária numa ONG da Índia, ensinando inglês para crianças. Até que uma amiga comentou que ia para Amsterdã fazer mestrado em gestão ambiental. “Senti que era o meu caminho. Sempre fui ligada à ecologia e poderia me aprofundar em uma causa global”, conta.

“O hotel era precário. Tive medo de pegar malária ou de ser estuprada, num país em que 40% da população é infectada pela Aids”

Lá o desapego budista foi testado na prática. Não dava mais para gastar US$ 6 mil por mês em roupa. A Pathfinder deu lugar a uma bicicleta. E, na rotina de universitária, Fernanda, enfim, encontrou uma missão “passional”. Para desenvolver sua tese, sobre como o planeta tem se adaptado às mudanças climáticas, ela desembarcou no Maláui, um dos países mais pobres da África, em julho de 2008. Como pesquisadora independente, usou o apoio logístico da Cruz Vermelha e bancou os cerca de US$ 7 mil, entre passagem, hospedagem, transporte e uma tradutora. Da mãe, ouviu: “Maláui não!”. A filha só foi entender quando viu a paisagem do avião: “Era uma terra árida, com aldeias distantes, um cenário que só tinha visto em documentários do Discovery”, comenta.

 

Depois de 150 quilômetros de estrada de terra até a vila Mphunga, onde começaria a pesquisa, bateu o pânico. “O hotel era precário. Tive medo de pegar malária ou de ser estuprada, num país em que 40% da população é infectada pela Aids.” À luz do sol e nos dias seguintes, tudo pareceu menos perigoso. “Dormia ouvindo os hipopótamos”, lembra.

No trabalho de campo e nas vilas Mphunga, Kasache, Pemba, Mwanza e Maganga, ensinou a molecada a usar a filmadora para que registrassem seus depoimentos. Ia mostrando os vídeos nas comunidades seguintes que visitava. Assim, criou um intercâmbio inédito de experiências sobre técnicas de irrigação, por exemplo.

Com o documentário editado pelos próprios personagens, 75 espectadores se reuniram para assistir. Só que não havia como levantar o laptop para que todos pudessem ver. Alguém, então, saiu e voltou com um balde vermelho, que serviu de apoio.Ali, nasceu o nome do filme: Hope on a Red Bucket. “Foi simbólico, porque eles usam o balde para buscar água no poço, para tirar a água das enchentes das casas. Ao vê-los orgulhosos, senti que havia tomado a decisão certa”, diz.

Outra dimensão
A história de Fernanda poderia terminar aqui, com final feliz, se alguns meses depois ela não estivesse escrevendo a seguinte carta: “Caso eu passe para outra dimensão, gostaria de ter meu corpo cremado em cerimônia budista. As cinzas, caso haja oportunidade, atirar no mar de Fernando de Noronha, ao nascer do sol”. Era o começo de uma carta-testamento, elaborada depois de descobrir um câncer de mama em dezembro de 2008. Ela teve de retirar as duas mamas. “Minha tristeza maior era saber que talvez não completasse minha missão de vida”, conta.

O momento mais crítico foi saber que talvez não fosse possível reconstituir as mamas na mesma cirurgia. “O meu lado feminino não queria aceitar, mesmo que temporariamente, não ter seio algum.” Mas a colocação das próteses foi um sucesso e Fernanda passou ainda por 28 sessões de radioterapia. Ao lado de seu ex, agora atual, André, ela conclui: “O câncer veio para me fazer ver que, antes de ajudar o mundo, preciso estar saudável. Faltava abrir espaço para o amor, a família, os amigos. Perdi as mamas, mas ganhei meu coração de volta”.

“O câncer me fez ver que, antes de ajudar o mundo, preciso estar saudável. Perdi as mamas, mas ganhei meu coração de volta”

André se encontrou profissionalmente. E Fernanda passou 2009 com ele, na Europa, terminando o mestrado. Seu documentário recebeu o prêmio Images and Voices of Hope, dedicado a profissionais que fazem a diferença com o uso de ferramentas de comunicação. Ela também se envolveu com o Earth Charter International, movimento que no Brasil se chama A Carta da Terra, uma declaração de valores éticos ligados ao meio ambiente. Agora, quer focar sua energia na Amazônia: “Penso em usar o vídeo para disseminar histórias das comunidades que estão ajudando a manter a floresta de pé”, planeja.

As amigas de Fernanda vivem questionando: “‘Você acha que vai salvar o planeta?’, me perguntam. Não sei. Estou fazendo a minha parte. Se isso multiplicar, vou deitar a cabeça no travesseiro contente, porque meu trabalho fez algum sentido, não apenas para mim”, resume a gaúcha, que continua firme com seus propósitos e suas práticas budistas. “O budismo é minha âncora, meu norte. Sem ele eu não teria o desapego necessário para colocar o material em segundo, terceiro, quarto plano. Mais do que fazer parte da minha vida, o budismo é minha vida. E para isso as práticas precisam ser diárias e constantes.” Todo dia, de manhã e de noite, Fernanda se senta pra meditar.

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