Capítulo 24: Viu como ainda tinha faíscas nessas lenhas?

por Milly Lacombe

O que significa ficar? O que significa ir embora? No último capítulo da história de desamor de Otávio e Marina, escrita por Milly Lacombe, a Lua espelha um pouco de nós

Perdeu os primeiros capítulos desta história? Leia aqui.

Quarentena, dia 56

– Bom dia. Dormiu até tarde, hein? Fiz panquecas pra você

– Panquecas? Uau. Como assim?

– Receita da internet. Posso te servir?

– De café primeiro, por favor

– Tá. Toma aqui. Pega pela alça que tá quente

– Brigada

– Como você dormiu?

– Muito bem. E você?

– Extremamente bem. Que noite, né?

– Foi sim. Foi bom

– Bom? Foi maravilhoso

– Foi, tem razão

– Viu como ainda tinha faíscas nessas lenhas?

– Eu não duvidava disso

– Será que não?

– Não. Nunca duvidei

– Seja como for, foi ótimo fazer amor com você outra vez

– Foi, foi sim. Foi muito bom mesmo. Estava com saudade do seu corpo encostado no meu

– Tô feliz. Tô muito feliz hoje

– Que bom

– E você?

– Também

– Precisa trabalhar isso aí porque ela não tá imprimindo felicidade, não

– Eu preciso te dizer uma coisa

– Ai, caralho. O que foi? Te chupei mal?

– Não. Você me chupou maravilhosamente bem, Otávio

– O que é então?

– Eu tô de saída

– De onde? De onde você tá de saída?

– Daqui

– Como assim?

– Eu tô indo para uma casa perto de Petrópolis

– Eu não tô entendendo nada. Que casa? De quem? Com quem?

– Uma casa que aluguei de uma amiga da Joana

– Eu perdi alguma coisa?

– Não, não perdeu. Eu ia te dizer isso ontem, mas aí rolou a dança e depois o sexo e não deu mais

– E a dança e o sexo não te fizeram mudar de ideia?

– Não, não fizeram

– Tudo isso é mágoa por causa da traição?

– Não, não é

– É vingança porque disse que não sabia se te amava mais?

– Claro que não, Otávio

– O que é então?

– É uma vontade de me ver de longe

– Mas você vai levar você com você. Como você vai se ver de longe?

– Lembra aquilo que a gente falou das nossas metades?

– Das nossas melhores metades?

– Isso

– Lembro

– Sabe qual é minha melhor metade?

– Não

– Você

– Se eu sou sua melhor metade, pra onde você vai? Fica aqui com sua melhor metade

– Exatamente por isso eu preciso ir. Minha melhor metade não pode ser outra pessoa. Minha melhor metade tem que ser alguma parte de mim. Eu não posso recorrer a você por sensibilidade e por poesia. Não posso me fechar nessa minha integridade narcísica e egoica porque sei que você é o alívio lírico dela

– Eu não tô entendendo. A gente teve uma noite linda, cheia de paixão, de entrega, de gozo, e agora isso?

– É. Agora isso. Eu sinto muito. Eu preciso ir embora

– Mas o apartamento é seu

– Não, Otávio. Não é verdade isso. Ele é nosso. É sua casa também

– Cara, que maluquice. Quando você decidiu isso?

– Quando eu fiquei pensando nas coisas que você me disse sobre minha melhor metade. Eu não me vejo assim. Eu me vejo dura e insensível. Eu me vejo emocionalmente inacessível. Eu me vejo distante. E eu não quero ser essa pessoa, sabe? Eu não quero ser a Marina-palestrinha, a que caga todas as regras, a que se fecha no trabalho. Não quero mais viver para que meus pais me vejam, para que eles superem a morte da Raquel. Talvez eles nunca superem e não tem nada que eu possa fazer a respeito. Eu preciso me achar, me ver sozinha, me ver com essa poesia que você me vê. E acho que agora me bateu uma coragem de encarar eu mesma no espelho

– É porque eu quero ter filho? Eu não quero mais. Eu paro de te encher com isso, juro

– Não é, Otávio. E o fato de eu não querer parir um filho não quer necessariamente dizer que eu não possa conversar sobre adotar, sabe? A gente nem nunca levou a conversa pra esse lugar e esse me parece ser o lugar onde talvez a gente consiga se encontrar um dia, se for o caso. Mas esse assunto fica pra depois

– Como eu vou ficar aqui sozinho?

– Otávio, meu amor. Você tem quase 52 anos. Você vai ficar bem acompanhado aqui nesse apartamento. É o melhor que a gente pode fazer

– Por quem? O melhor por quem?

– Por nós dois e pelo nosso relacionamento

– Quem disse isso?

– Eu disse isso

– Você disse que as pessoas desistiam muito facilmente umas das outras, isso sim você disse. E agora você tá desistindo

– Eu não estou desistindo, Otávio. Não estou mesmo. Eu te amo. Se eu tinha alguma dúvida disso, eu não tenho mais

– Se ama fica então, Marina

– Eu não posso ficar. Ficar seria me aceitar pela metade. Me aceitar com tantas limitações. Ficar seria apenas adiar o fim. Ficar seria ter visto o abismo pra onde você apontou, porque você apontou para um abismo quando quis sair de casa, sabia? Foi o que você fez e eu hoje te agradeço por isso. O que tô dizendo é que ficar seria ter visto esse abismo e, em vez de dar meia volta e me salvar, sair correndo em direção a ele

– Mas eu não quero me perder de você

– Nem eu de você. Eu não quero mesmo. Apesar de você ser um cafajeste, você é um cafajeste em desconstrução e como eu não tenho mesmo uma veia sapatão, diante do que temos por aí em matéria de masculinidade você é um bom partido. Além do que, Otávio, eu realmente te amo

– Que bom escutar isso…

– Que bom te ver sorrindo. Mas a vida pede coragem pra gente, e essa é aquela situação em que a gente mistura coragem e esperança. Se tem uma coisa que esse vírus vai deixar como lição é a gente viver um dia depois do outro porque o futuro não tá dado. E também a gente olhar para as relações com o cuidado que elas merecem porque a gente já não estava fazendo isso – com quase nenhuma relação das nossas vidas porque ninguém mais tem tempo, ninguém mais tem paciência. Ô vírus tinhoso esse, que tá deixando pelo caminho tanta comoção, tanta dor e tanta possibilidade pra transformação. É o que eu quero fazer com a nossa relação; eu quero que, se a gente decidir continuar, a gente tenha mobilizado outros afetos. É aquela tal história, meu amor: pra construir mais alto precisa cavar mais fundo. Então vamos encarar assim. Um dia de cada vez. Um dia vivido com os recursos que temos para ele. Sem exigir demais da gente, mas também sem paranoia, sem desespero, sem projeções que podem nunca se realizar e causam só ansiedade quando se infiltram em nossas cabeças. Tudo passa. Tudo, absolutamente tudo, passa. Mas, como a gente não tem como saber quando as coisas passam, a gente vive um dia de cada vez. E outra coisa: nada certo acontece na hora errada, Otávio. E nada que é certo deixa de acontecer. Vamos confiar nisso?

– Quando você vai?

– Hoje

– Hoje?

– É. Hoje. Teve um relaxamento na quarentena, certamente vai deixar de ter já já porque as pessoas estão morrendo às milhares, e eu quero ir enquanto posso e antes que eu mude de ideia

– Você vai quebrar a quarentena! Justo você que nem deixou o encanador vir

– Eu não vou quebrar nenhuma regra. Vou entrar no carro aqui na garagem, não preciso nem parar para colocar gasolina porque o tanque tá praticamente cheio, e vou sair do carro lá na casa

– Eu tô completamente atônito

– Eu sei. Passa. Eu estava assim quando você me disse que ia para a casa do Marcelo

– O filho dele não estava com sintomas

– Oi? Do que você tá falando?

– Eu voltei pra casa naquela noite dizendo que o filho do Marcelo estava com sintomas do vírus e que por isso eu não podia ficar na casa dele, lembra? Era mentira.

– E por que você fez isso?

– Porque eu não queria ter saído. Eu me arrependi dez minutos depois de sair. Bateu um pânico…

– E você aceitou passar dez dias trancado num quarto mesmo assim?

– Era melhor isso do que confessar uma mentira ridícula

– Meu Deus, Otávio

– Eu não queria que a gente tivesse dado nesse lugar

– Nem eu, mas acho que a gente não deu em nenhum lugar. Tudo é uma travessia. Não tem nada que esteja parado, não tem um fim, não tem um lugar apenas. Talvez nem a morte seja um fim, sabe? Tudo continua, tudo vai se transformando. Lembra que a gente falou que os grandes eventos não eram aqueles que determinavam o destino das coisas? Eu acho isso. Nossa história é feita de cada uma das nossas conversas, não de uma traição. É feita de cada um de nossos beijos, não de um aborto. É feita de cada partida e de cada chegada. De cada jantar junto, de cada brinde, de cada gozo. A gente tem muita história, Otávio. Vamos confiar na nossa história

– E agora?

– Agora a gente dá um passo de cada vez. Eu vou comer essa panqueca e acabar de arrumar minha mala. Obrigada pelo café da manhã, Otávio. E outra coisa, antes que eu me esqueça: apesar dos perrengues, você foi um ótimo parceiro de quarentena

– De nada? Desculpa? Obrigada? Não sei o que dizer

– Então não diz nada. Tá tudo bem em não ter o que dizer. A gente já disse muito. Vamos deixar agora o silêncio e a distância dizerem alguma coisa.

Eram quase três da tarde quando Marina saiu do apartamento arrastando uma mala de médio porte. Otávio foi até a porta e os dois se beijaram. Um beijo rápido, um abraço demorado. Otávio estava chorando, Marina estava tremendo. Quando duas pessoas se separam, a gente normalmente não leva em consideração que existiu um momento em que os corpos de fato seguiram caminhos diferentes. A ideia de uma separação é sempre uma ideia abstrata, que raramente trata da concretude daquele segundo em que cada qual seguiu um caminho.

Quando a porta do elevador finalmente fechou, lenta e dolorosamente, Otávio voltou para a sala. Sentou no chão, apoiou as costas no sofá, deixou a cabeça cair e chorou mais alto. Lá fora as maritacas cantavam e o sol brilhava forte. Ele não podia ver, mas a poucos quilômetros dali, no Vidigal, o vírus se espalhava com uma velocidade assustadora. Também a poucos quilômetros dali, tartarugas gigantes nadavam tranquilas nas águas da Baía de Guanabara. As areias estavam mais brancas e o céu mais azul. A vida em todo o seu horror e em todo o seu esplendor; a vida em toda a sua injustiça social e em todo o seu improvável equilíbrio poético.

Marina dirigia pela serra com o vidro semi-aberto. O sol estava baixando e as cores da estrada tinham para ela uma beleza inédita. Ela fazia o percurso chorando, mas não era exatamente tristeza porque não ficamos apenas tristes quando um evento rompe a rotina dizendo de alguma forma que veio para não deixar pedra sobre pedra. Essas ocasiões, embora assustem, também carregam uma certa curiosidade. O que vem pela frente? O que a vida reserva? Como vai ser o próximo capítulo? A curiosidade deixava Marina excitada. Ela podia ver e ouvir macacos passeando pelas árvores da serra e se perguntou se eles estavam sempre ali ou se tinham voltado agora, quando a presença humana diminuiu.

Era engraçado como podia se sentir ao mesmo tempo tão devastada e confiante; tão dilacerada e curiosa. Talvez a língua portuguesa devesse ter mais palavras para comunicar emoções. Lembrou de ter visto uma palestra uma vez em que uma bióloga explicava que algumas emoções e sensações passam a existir apenas quando são nomeadas. A tristeza, por exemplo, era celebrada no século 19 como a felicidade é celebrada hoje. E o tédio só passou a existir como sensação quando foi finalmente nomeado, assim como a saudade de casa.

Uma pessoa que se sente combinadamente devastada e confiante estaria então se sentindo desfiante? Marina riu e pensou que Otávio concordaria com ela. Mas agora ela estava sozinha e teria que encontrar um jeito de rir dela mesma. Notou que a trilha aleatória do Spotify começou a tocar Like a Rolling Stone. Ela sempre gostou da letra que fala da ideia de alguém que se vê na situação de ter que se reconstruir. How does it feel? To be without a home, like a complete unknown, like a rolling stone? Miss lonely. How does it feel to be on your own? Aumentou o volume, abriu totalmente a janela e pisou mais fundo no acelerador.

Otávio parou de chorar e viu que estava quase anoitecendo. Pensou que Marina já deveria estar em Petrópolis. Lembrou que não tinha comido nada o dia inteiro e sentiu fome. Com dificuldade, ergueu o corpo do chão e foi até a janela. Que pôr do sol magnífico devia ter sido aquele que ele tinha perdido. Que pena, pensou. Se não estivesse de cabeça baixa teria visto. O que comeria? Foi até a geladeira e conferiu os ingredientes. Fez uma lista do que tinha e entrou no Google para ver o que poderia cozinhar com aquilo. Achou algumas receitas possíveis e decidiu que faria a primeira delas, que parecia ser a mais difícil. O que poderia dar errado? Nada, pensou. Mesmo se ficasse muito ruim ele seria a única testemunha.

Colocou Sujeito de Sorte na caixa de som e cantou com Belchior: Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte. Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte. E tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado. E assim já não posso sofrer no ano passado.Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro! Enquanto cantava, se serviu de uma dose de uísque, colocou uma pedra de gelo no copo e foi até a janela ver o céu que já estava totalmente escuro.

Olhou para cima e notou que era uma dessas noites sem luar, uma dessas noites em que a Lua se esvazia e sai de cena. Um céu sem seu elemento mais bonito, protagonista cuja beleza não pode ser separada das suas cicatrizes, marcas e buracos. Uma beleza feita de detritos, de restos, de sobras do que um dia foi parte da Terra. Otávio tinha fixação pela Lua e era capaz de passar horas olhando para ela. O que ele talvez nunca tivesse notado é que é justamente quando a protagonista se ausenta que as estrelas vão para o centro do palco. É quando a Lua não se faz notar, quando a Lua não está ali, que algumas estrelas brilham ainda mais fortes e soberanas. E então a Lua volta, porque ela sempre volta, e uma das bilhões de estrelas dessa vastidão cósmica, sabendo da exuberância que a Lua tem, empresta a ela um pouco do seu brilho. Otávio ergueu o copo para a noite lá fora, brindou a ele e à Marina – em português mesmo, porque já não lembrava mais como se brindava em russo –, fechou a janela e foi picar o alho.

E aqui termina a quarentena de Otávio e Marina. Perdeu algum capítulo desta história? Leia aqui.

Créditos

Imagem principal: Manhã Ortiz

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