É que eles são... argentinos

por Redação

Olhar para o corpo vizinho é o primeiro passo para conhecer o próprio

Comecei a me dar conta da existência deles quando tinha uns seis anos. No verão vinham em hordas, invadiam o Rio de Janeiro guiando carros de marcas desconhecidas. Falavam uma língua esquisita que, para aumentar o meu fascínio, conseguia entender. Tinham um jeito diferente de se vestir, combinando cafonice vulgar a uma elegância clássica. Os homens cheiravam a perfume Lancaster e as mulheres tinham bundas secas. Sem entender por quê, eu os achava ridículos; mas os admirava, ao mesmo tempo. Um dia, ao me ver estarrecido encarando uma família deles na praia de Copacabana, minha mãe explicou o mistério: “Filho”, ela me declarou em tom solene, “eles são argentinos”. “Eles são argentinos”… “Eles são argentinos”... “Eles são argentinos”... Por semanas a frase se repetia na minha cabeça sem parar. “Eles são argentinos”... Como alguém podia assim “ser argentino”? O que significava exatamente “ser argentino”? Pra que e por que eles ‘eram argentinos’? As dúvidas cederam lugar ao ódio cego quando eles, “os argentinos”, roubaram a Copa do Mundo de 1978, descaradamente subornando a seleção do Peru. E em 1982, com o coração ainda cheio de rancor, torci pela Inglaterra na Guerra das Malvinas. Arrogância, desonestidade, prepotência, os gols do Maradona, as costeletas do presidente Menem… Nunca faltaram razoes para detestá-los. Nem a devoção profunda que sentia por Jorge Luis Borges e Astor Piazzolla serviam de contrapeso ao profundo asco e antipatia.


Vamos dar um pulinho no fundo do poço
A ignorância é irmã mais velha do preconceito. Só agora, aos quarenta e cinco anos, fui conhecer o antro do inimigo. E, como um cabra-macho que um belo dia se surpreende gostando de dar o cu, andando pelas ruas da maravilhosa Buenos Aires, senti uma vontade irresistível de ser argentino. Sempre fui um argentino enrustido. Hoje, liberado e convertido, assumo e celebro minha argentinice em publico. Ele é essencial, este “outro” oposto que nos conta quem somos: a grama mais verde do vizinho define nossa relação com a própria grama. A Inglaterra e a França são isso, uma para a outra. O Rio é isso para São Paulo. O Brasil dá as costas, não presta a devida atenção à Argentina. Uma pena. Eles são sempre mais extremos. É melhor ou pior ser extremo? Perón era um Getúlio Vargas turbinado e a ditadura militar deles foi muito mais mais cruel do que a nossa. A Argentina já esteve muitas vezes no fundo do poço. O fundo do poço é um lugar escuro, desconhecido e cheio de dor. O Brasil nunca vai ao fundo de seu poço, não sabe se encarar como país. Por um lado, isso é ótimo, não queremos sangue nem dor. De outro, esta incapacidade de se olhar de frente é uma desgraça nacional. Nossa frota de carros blindados, as grades que enjaulam nossos prédios e a brutalidade das nossas ruas são prova de que, para a sociedade brasileira, o poço é muito profundo. Vivemos com medo de tocá-lo – e de nunca mais voltar.

Henrique Goldman, 45, é cineasta – e, claro, fã do cinema argentino

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