Maurício Ianês conta como foi o retiro que fez com Marina Abramovic

por Lia Hama
Trip #242

Cinco dias sem comer, sem falar e ficando nu em frente aos colegas. A pedido da Trip, o performer Maurício Ianês abriu seu diário sobre o workshop que a artista sérvia deu num sítio perto de São Paulo

Antes de abrir a maior retrospectiva de sua obra na América do Sul, a artista sérvia Marina Abramovic realizou um workshop para 17 artistas brasileiros num sítio em Juquitiba, a 1 hora e meia de São Paulo. Durante cinco dias em meio à natureza, Ayrson Heráclito, Fernando Ribeiro, Maikon K, Marco Paulo Rolla, Maurício Ianês, Paula Garcia, Rubiane Maia e os integrantes do Grupo EmpreZa foram convidados a permanecer em silêncio, jejuar (as únicas "refeições" foram 21 amêndoas no terceiro e no quarto dias), contar grãos de arroz por 8 horas seguidas e nadar pelados, de olhos vendados, num lago gelado.

O objetivo da oficina Cleaning the House era preparar os artistas para suas performances ao longo dos dois meses da exposição Terra comunal – Marina Abramovic + MAI, em cartaz até 10 de maio no Sesc Pompeia, em São Paulo. A ideia, segundo Marina, "é limpar corpos e mentes e trabalhar os limites de cada um". A pedido da Trip, Maurício Ianês abriu o diário que escreveu no retiro. Conhecido pelas performances de forte interação com o público, como quando dependeu de estranhos para se vestir e se alimentar na Bienal de São Paulo de 2008, Ianês apresenta no Sesc Pompeia O vínculo, trabalho em que se coloca à disposição dos visitantes para ações conjuntas. A seguir, trechos de seu diário.

PRIMEIRO DIA
Acordei com frio. Nadamos nus no lago, e eu quase tive uma crise de pânico, achando que fosse me afogar. Respirei fundo e tentei superar o medo. É horrível como, de uns tempos para cá, tenho tido crises de pânico na água. Logo eu, que sempre gostei de ficar na água, principalmente submerso.

Babidu [integrante do Grupo EmpreZa] entrou na sala comum, onde esperávamos o chá ficar pronto. Parou, olhou para todos, respirou fundo. Neste momento tive certeza de que ele ia falar "bom dia!". Mas ele apenas suspirou. Não sei que horas são – devem ser 9h30 porque a Tati me deu o meu remédio para pressão não faz muito tempo, e eu comecei a sentir os primeiros sinais de fome. Fizemos exercícios de respiração, alongamento e práticas com sons.

Depois houve uma caminhada lenta. Descansamos e fomos para o sweat lodge. Meditei bastante lá dentro, coisa que não faço há tempos, desde que abandonei os rituais judaicos, e a partir de um certo momento decidi me entregar àquele misticismo. No fim, foi uma boa experiência. Se não nos entregarmos às experiências que se abrem para nós, não saberemos quais podem ser os resultados delas. E agora este sou eu, bancando o místico de botequim.

SEGUNDO DIA
Quando acordei ainda estava escuro. Escovei os dentes e voltei para a cama até a Marina tocar o gongo. Hoje é o segundo dia em que vamos ficar sem comer. Até agora não senti muita fome. A água e o chá devem ajudar a dar uma sensação mais agradável. Yom Kippur é pior, porque não podemos beber, escovar os dentes etc. Acordei feliz.

Pela manhã, Marina pediu que nadássemos oito vezes a extensão do lago. Antes de entrarmos, ela disse: "Enjoy life". Pois foi isso que aconteceu. Eu não tive medo, e me senti feliz por estar aqui, feliz pelas minhas escolhas, e forte. De vez em quando tenho vontade de fumar.

A partir do meio-dia começamos o exercício de separação e contagem de arroz e lentilhas. Foi um processo difícil. Eu passei por vários estados mentais. No início fiquei tranquilo. Aos poucos fui me concentrando, mas alguém riu e tudo foi por água abaixo. Depois, com um movimento errado das mãos, misturei muitos grãos. Eu estava preocupado se teríamos que de fato contar todos os grãos, mas aí pensei que, como a pousada estava sem energia elétrica, em breve teríamos que parar, com o anoitecer. No entanto, quando começou a escurecer, velas foram acesas. Com a noite, vieram os mosquitos. Todos ficamos nervosos e desconcentrados com o ruído e as picadas. Então pensei que esta é a situação ideal para treinar a concentração: os cachorros latiam, os mosquitos zuniam e nos picavam, os outros artistas batiam na mesa na tentativa de matá-los.

Neste momento alcancei um estado de concentração maior. Só percebi o estado mental em que estava quando a Marina chegou para nos avisar que haviam se passado 8 horas desde o início da contagem. Quando tirei meus olhos do arroz, eu mal conseguia piscar. Sentia meus olhos arregalados. Quando encerramos, fiz a conta final (mais de 10 mil grãos de arroz, mais de 5 mil grãos de lentilha, mas não me lembro do número exato) e fui dormir.

TERCEIRO DIA
Acordei bem cedo, antes de todos, e resolvi me vestir e vir para o deck central. Fiquei ali sozinho olhando o lago por um bom tempo, até que chegaram a Marcela e o Thiago, do EmpreZa. Então chegou o Paulo, e em seguida a Marina. Ela me abraçou e disse estar com muita fome. Curiosamente, eu não estou com fome.

Nadamos no lago, 12 voltas. A Marina me pediu ajuda para sair, eu a ajudei e então ela me perguntou se eu já tinha ido à bica. Fomos juntos. O lugar é uma delícia, uma fonte de água que cai com força. Sentamos juntos nas pedras, deixamos a água massagear nossas costas, e então ela me falou que ia sair. Terminei meu banho e saí. Passei muito óleo de amêndoas no meu corpo. Estou com muita vontade de fumar. Sem fome, mas com vontade de fumar. Além disso, talvez o que mais me deixe nervoso é ficar sem ler.

(O texto continua após a foto)

Depois do lago e dos exercícios matinais, sentamos em duplas, uma pessoa na frente da outra, em silêncio. A ideia é ficar olhando um nos olhos do outro. Exatamente como a minha performance Permanecendo em silêncio, e como a Marina no MoMA. Eu me sentei com a Aishá, do grupo EmpreZa. As duplas foram sorteadas. Logo no início, Aishá começou a derramar lágrimas, e assim ficou durante todo o exercício, que durou 1 hora. Eu fiquei emocionado, mas não demonstrei.

No último dia do workshop, vamos ter conversas individuais com a Marina, sobre nosso trabalho, sobre o dela, tirar nossas dúvidas. Tenho tentado organizar minhas ideias para essa conversa, porque não acredito muito no que ela faz hoje. A ideia de um superartista, que quando faz uma ação ou performance se coloca acima do mundo, superior ao "homem comum", e cria uma rea-lidade alternativa é o exato oposto do que penso da minha prática. Eu a admiro pelos seus trabalhos, principalmente os do início, e acho fantástico o que ela fez como artista para a história da arte, da performance. Além disso, acho que mesmo que ela pessoalmente não me pareça uma individualista radical, o seu trabalho acaba vendendo isso. Ao vender fotos e vídeos que são como souvenirs da figura que criou, há uma veia capitalista que me desagrada bastante.

QUARTO DIA
Depois do lago e dos exercícios matinais, fiquei deitado, olhando as árvores pela janela do quarto e conversando comigo mesmo. Não ouvi o gongo, e quando saí do quarto, todos já estavam fazendo o exercício de sentar com os olhos vendados.

Encontrei a Lynsey [uma das curadoras da exposição da Marina], que me deu uma cadeira e uma venda. Senteime entre as árvores e vendei meus olhos. Percebi que estava no meio de uma nuvem de mosquitos. Meus pés pegavam fogo por causa das picadas. A ansiedade causada pela confusão entre sonho e realidade, os mosquitos e a fome se transformaram em uma tortura.

Fizemos o exercício das cores. Primeiro fiquei olhando para uma folha de cartolina vermelha, depois para uma amarela e em seguida para uma azul. Ao olhar para o vermelho, senti muita fome e o meu estômago começou a doer, se contraindo. Pensei o tempo inteiro em comida: falafel, berinjela assada, comida chinesa. Tive vontade de fumar. Logo que me sentei à frente do amarelo, a cor estava vibrante, como que emanando luz. Comecei a ver círculos concêntricos que se contraíam na folha amarela, como um sol entrópico. Bocejei várias vezes. Depois comemos 21 amêndoas que ficaram de molho na água à noite. Eu amo amêndoas, mas nunca as amei tanto.

À noite fomos a uma tenda parecida com a dos índios norte-americanos, onde no centro havia uma grande fogueira. Marina se colocou de pé, explicou o porquê daquilo – gritar como um animal em direção ao fogo, colocando nossas angústias, medos, frustrações e tristezas para fora. O fogo as queimaria e nos daria de volta energia. Então ela demonstrou: tirou as roupas e se colocou de quatro, olhando para a fogueira e começou a gritar, uivar, urrar. Se quando ela explicou o que faríamos senti um certo desdém e um pouco de vergonha, ao ouvi-la gritar percebi que de fato ela estava pondo sua sujeira para fora. Pude ouvir e quase ver a sua dor e fiquei emocionado. Os sons eram inacreditáveis.

Uma a uma, as pessoas foram fazendo o mesmo e toda aquela dor me sensibilizou muito. Quando chegou a hora de Lynsey gritar para o fogo, desabei. Vi muita, muita dor em seu rosto e ouvi sofrimento nos seus gritos. Daí para frente eu não parei de chorar. Quando chegou a minha vez, estava emocionado e tímido. Tirei a roupa e me senti infeliz e envergonhado. A idade e vários quilos a mais às vezes me deixam constrangido. 

Finalmente fiquei nu e me coloquei de quatro, olhando para o fogo. Respirei fundo e comecei a urrar. Gritei muito, mas acho que não por muito tempo. Engasguei várias vezes, tossi e quase chorei. Ao voltar para o meu lugar estava tremendo. Pensei na minha mãe a maior parte do tempo. Na minha mãe e em todos que perdi. Nos meus desejos frustrados, no meu trabalho, no mundo.

QUINTO DIA
Quinto dia em silêncio jejuando. Serão aproximadamente 110, 112 horas em jejum exceto pelas amêndoas no terceiro e no quarto dias. Mais uma vez acordei muito cedo. Dormi mal porque as várias picadas de mosquito que levei queimaram como fogo a noite toda, e eu as cocei sem parar.

Novamente nos reunimos no deck. Marina propôs que nadássemos com os olhos vendados, pelo tempo que quiséssemos. Entrei na água, vendei meus olhos e comecei a flutuar e nadar de costas. Tive a impressão de que estava indo mais para o lado direito que para o esquerdo. Me esforcei para endireitar o nado, mas não consegui. Decidi parar. Foi quando percebi que na verdade eu estava completamente tonto, tinha a impressão de que tudo (que eu não via) estava girando. Parei e comecei a nadar de frente. Para mim, que sou sempre bastante perdido em termos de direção, foi uma experiência estranha, mas interessante. Novamente fui até a bica, e esperamos ser chamados para os exercícios de Lynsey. Depois, o dia foi passando, anoitecendo. Até a hora de ir.

Vai lá O Vínculo, com Maurício Ianês. De terça a sábado, das 13h às 21h, e domingos e feriados, das 13h às 19h, na exposição Terra comunal – Marina Abramovic + MAI, até 10/5. Galpão do Sesc Pompeia, R. Clélia, 93, São Paulo, SP. Grátis

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