Questão de bom-senso

O coro a favor da regulamentação da maconha começa a crescer

Depois de décadas de repressão e uma política de Guerra às Drogas extremamente malsucedida, a maconha ainda é uma das bases de sustentação financeira do tráfico. considerada por autoridades no assunto como menos ameaçadora à saúde do que qualquer outra droga, a reflexão sobre essa planta pede sobriedade: repensar o sentido da proibição é um caminho defendido por lideranças de diferentes setores da sociedade. Diante da realidade, o coro que pede a regulamentação do consumo começa a crescer

 

Não são necessários estudos para saber que a proibição da maconha afeta a memória. Principalmente a de longo prazo... Quem se recorda, por exemplo, de que o primeiro registro escrito da Cannabis veio da China, há mais de 4 mil anos, citada em um livro de plantas medicinais? Quem tem lembrança de que, muito mais do que droga ou fármaco, ela foi utilizada para a produção de fibra, tecido, papel, alimento, óleo e combustível? Nossos livros de história não registram que velas e cordas das naus que descobriram a América eram feitas de cânhamo (o nome da maconha para uso “não psicoativo”). A Constituição americana foi escrita em um papel da mesma fibra. A lista segue em muitos exemplos.

Raríssimo caso entre as drogas, legais e ilegais, nunca houve um registro de overdose por conta de maconha. Nenhum. Mas um estudo, da escola de medicina de Harvard, conseguiu supor qual seria a dose letal de THC. Anote: 40 kg da planta absorvidos em 15 min matariam um adulto no ato. Ou seja, impossível. O médico que conduziu a pesquisa, doutor Lester Greenspoon, ao se dar conta da toxicidade virtualmente nula da molécula, deu o seguinte parecer: “Do ponto de vista dos órgãos, o THC é uma substância inofensiva”. Mas a análise científica não funciona no mundo real. Por aqui, fora do laboratório, a maconha mata, e muito.

Em menos de cem anos de proibição a maconha já esteve por trás de milhares, ou melhor, de incontáveis mortes. Não como substância, mas como commodity para organizações criminosas. Tornou-se a base de uma pirâmide financeira que compra armas, policiais, políticos. Deixou de ser matéria-prima para tornar-se um depósito de preconceitos. Entre usuários apaixonados e repressores convictos, a planta hoje chega ao público contaminada por concepções enganosas, como se a própria ideia de maconha fosse malhada.

É uma longa história a de como ela foi proibida, mas a sentença irrecorrível foi dada na ONU, há 50 anos. As nações fizeram um pacto: erradicar as drogas do mundo. Entre elas a maconha, que já era proibida nos EUA e em muitos países. Mas foi naquela assembleia a primeira vez na história em que ela foi considerada, oficialmente, sem valor medicinal, sem valor industrial. Uma milenar relação da planta com os humanos foi simplesmente banida por um papel assinado por diplomatas.

Um estudo aprofundado, chamado Cannabis Policy, conduzido por economistas ligados a comissões dos efeitos geopolíticos do mercado de drogas, da mesma ONU, chegou a uma estimativa assustadora: a maconha pode ser responsável por 80% do comércio ilegal de drogas no mundo. É complicado confirmar a precisão desse número, já que, proibido, é um mercado sem chance de auditoria. Mas é uma estimativa que é corroborada por outra. São números que variam muito de país para país, mas cerca de 90% dos usuários de drogas no mundo usam apenas a maconha.

Com a proibição, deixou de ser uma versátil planta para se tornar um fantasma na vida de famílias e governos. Um fantasma que se torna real quando a maconha é vendida pelas mesmas mãos que oferecem crack, armas e altos riscos. E que assombra a própria democracia quando é descrita através de moralismo e demagogia para uma sociedade assustada. Um fantasma que assusta inclusive pessoas esclarecidas sobre o assunto, e que fogem ao debate por medo. Ou conveniência.

Esta edição da Trip chega em um momento em que o debate sobre a questão da maconha atinge um ponto crítico. Violenta repressão na marcha que pedia a legalização em São Paulo, tolerância aos manifestantes em outros Estados. Um ex-presidente da República lança um filme sobre política de drogas e luta por uma reforma global nas leis. E defende abertamente a regulamentação da maconha no país.

A ele, junta-se um coro até hoje improvável: juízes, policiais, deputados, artistas, esportistas... Todos reconhecendo o fracasso de uma política repressiva. E a urgente necessidade de um debate sem a carga de antigos preconceitos e hipocrisia. Mas carregado de informações e bom-senso.


A Trip não tem a pretensão de apontar qual o melhor caminho para um mercado regulado de maconha no Brasil. Temos apenas o dever, como jornalistas interessados na evolução da consciência pública, de dar nossa contribuição ao debate. São muitas as razões que nos levaram a reconhecer a pertinência da discussão. E tentamos demonstrar com reportagens, entrevistas e estatísticas nas páginas desta edição de número 200 por que acreditamos que existe hoje um espaço inédito para uma discussão mais racional, razoável e realista sobre tudo o que toca a vida em sociedade.

Aqui, alguns brasileiros, do esporte, da moda, da política, da medicina, de ONGs, do Bope... dão o seu recado. Explicam, em lousas e depoimentos, por que acreditam que a proibição inflexível da maconha não funciona. E, pior, causa mais males colaterais à sociedade do que no corpo e na mente de quem usa. Não se trata de gostar ou não da maconha. Mas de eliminar a hipocrisia e a ignorância da agenda nacional.

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