Beleza, interior

Trip vai ao campo para provar que o sertanejo é, na verdade, a música popular brasileira

Há gerações que o Brasil se comove, paquera e se embriaga embalado pela música sertaneja. Enquanto novas duplas conquistam espaço entre a elite das metrópoles, o interior segue fiel ao romantismo rural. Trip vai ao campo para provar que o sertanejo é, na verdade, a música popular brasileira

A Roseanne explica, sorrindo, por que não se encontra homem bom em rodeio: "Aqui eles só querem saber de mulher pra...". Ela estaca por meio segundo, nem isso, no instante em que a luz se apaga na arena. "AAAAAAHHHHHHH", prossegue em vultosos decibéis. Ela e uma multidão feminina que, naquela virada de domingo para segunda, seguraram paciente o fôlego para berrar sem dó pelas duas horas seguintes. Roseanne ignora o repórter, toma folêgo e retoma o coletivo discurso: "AAAAAAAAH ...". Um uníssono e agudo coro que quase abafa o elaborado solo de violão de aço que um bem-apessoado sujeito de cabelos meio loiros dedilha no centro do palco. "Viiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiictoooooooooooor!" é a súplica sem objetivo das moças que se alinham na corda de proteção defronte ao palco. "Léeeeeeeeeeeooooooo" é o desesperado brado de outras. Uma mulher de lúbricas e fartas curvas escala uma torre de luz e, no alto, ignora os bombeiros que tentam puxá-la pelo pé ou pela calça de lycra. Levantando o top, exibe o busto e canta para o céu, assim como todos, homens inclusos, na arena: "Você tenta provar que tudo em nós morreu/ Borboletas sempre voltam/ E o seu jardim sou eu". E mais gritos.

Viiiiiictoooooor e Léeeeeeeeeeo, no caso, são a dupla que, hoje, mais vende disco no Brasil - Victor & Léo. O leitor da Trip que não passou o último ano em órbita há de saber quem são. O CD Borboletas, e o mais recente Ao vivo e em cores, emplacaram sucessivos topos de paradas de sucesso, ocuparam muitos blocos de programas de domingo, capas de revista e infinitos palcos pelo Brasil. A agenda dos dois, desde 2007, inclui de 20 a 25 shows por mês. Esse domingo em Cotia, no encerramento da festa de peão da cidade no interior de São Paulo, foi uma procissão de políticos e autoridades e seus canastrões discursos, uma longa noite em que peões domaram cavalos e bois bravos ao som de hits anacrônicos de dance music, pagode, axé music e pop nacional. Nada daquilo teria segurado aquelas 20 mil pessoas na arquibancada não fosse o romantismo descarado da música sertaneja que estava prometida para o domingão.

Sertanejo, pero no mucho. Ao menos de acordo com a assessoria da dupla, que prefere não rotulá-la assim. Preferem ser chamados de românticos. E de fato são... As letras são única e exclusivamente sobre crises amorosas, saudades do amor perdido ou celebrando uma paixão em pleno desabrochar. As roupas e roupagens nada da roça, a maior sutileza nos arranjos, a grudenta rima que Victor compõe com natural fluência pop. Mas o vibrato no gogó de Léo, a segunda voz, aquele imapeável sentimentalismo de metáforas rasas e eficazes não negam. É sertanejo sim... E o passado não os absolve. Por quase quatro anos, ainda desconhecidos das massas, Victor & Léo suavam as camisas xadrez como dupla residente no Villa Country em São Paulo.

 

"Foi no Villa Country que nasceu a cena que colocou novas duplas nos holofotes nacionais"

O mundo é um Villa
O Villa é uma bem-sucedida megacasa noturna dedicada ao estilo de vida country/sertanejo. Há oito anos não há balada fraca por ali. De 2 mil a 8 mil pessoas por noite, dois palcos em simultâneos shows, um bar enorme, um restaurante de carnes e um pavilhão extra que abre em dias de apresentação de duplas mais famosas. O Villa Country raramente aparece em destaque nos guias da cidade, coluna social alguma frequenta e, apesar dos 2 km de diferença, parece haver uma distância intransponível entre o culturalmente incensado público da baixa rua Augusta e a fila diária do Villa Country. E foi exatamente ali, no Villa, que nasceu uma cena, uma subcultura da música sertaneja, que colocou novas duplas nos holofotes nacionais (como Jorge & Mateus, Fernando & Sorocaba, e cantores em ascensão como Luan Santana), o chamado "sertanejo universitário".

Marco Tobal Jr., dono e filho do dono/fundador da casa, é a melhor autoridade para explicar o fenômeno. Ele viu de dentro a mudança no público em seus domínios. "A sociedade paulistana sempre valorizou só o que vinha de fora do país. Mas, com o tempo, muito moleque do interior veio estudar em São Paulo. E eles não só gostam de sertanejo, como do estilo de vida, da estética country. E descobriram que tinha uma casa assim na cidade", elabora. E assim, de acordo com Tobal Jr., "aos poucos o preconceito do grupo AAA foi diminuindo, e hoje eles vêm pra cá e adoram". De fato, ainda se vê muito homem de chapéu, camisa pra dentro da calça, fivelão no cinto e passinhos ensaiados. Mas a maioria está à paisana, camisa polo de marca, gel no cabelo, tênis caro no pé. Não fosse a decoração de artigos equinos, os manequins de índios apaches e as rodas de carroça decorando as paredes, boa parte da cena humana no Villa Country quase poderia estar em qualquer casa noturna de elite em São Paulo.

A razão para tanto rapaz endinheirado dando os ares por ali, Tobal assume, não é o espírito country ou os refrãos das duplas. E sim o mais ancestral dos motivos que arrastam hordas de homens para fora de seus lares depois do batente: mulheres. Tobal, o pai do Jr., resume após anos de vasto sucesso na noite de São Paulo: "Quem é esperto faz música pra mulher. Se mulher gosta, pronto. O homem vem". Orgulhosos, eles mostram o saldo das últimas noites no Villa Country. Sempre mais garotas do que cowboys e playboys entre os milhares de pagantes. Uma receita que só funciona com o não menos ancestral catalisador do acasalamento humano: o álcool. O presente repórter nunca viu tanta garrafa inteira na mesa. Johnny Walker, Absolut, baldes com gelo. Moças que pactuaram virar shots de tequila no balcão tomando cerveja para tirar o gosto ruim do destilado. Infinitas canções das duplas por ali fazem uma franca apologia à droga legalizada favorita da espécie. "Eu vou beber até o raiar do dia", "Desculpe, mas vou me embriagar" são amostras de versos que ornam com outros menos românticos: "Mulher feia eu conheço pelo andar", "Hoje eu quero fazer amor, sentir o teu calor no meu lençol"...

 

"Quem é esperto faz música para mulher. Se mulher gosta, pronto! o homem vem"

1000 cowboys no saloon
Quem, de fora, supõe que o romantismo meloso que as duplas destilam no Faustão reflete uma pureza de sentimento cai no mesmo preconceito que tanto cerca o sertanejo no Brasil. O antropólogo Hermano Vianna, especialista em fenômenos pop, elabora: "A nostalgia do sertão pode ser entendida no meio da mudança brusca de uma população rural para uma majoritariamente urbana, da ‘vida punk' da cidade comparada com a ‘pureza' do interior. Nunca existiu interior puro, mas isso não importa: é assim que o urbano vê o rural. É aquela história de ‘Quero uma casa no campo...'". E impura a noite segue.

Rodinhas de homens cercam garotas, cantadas como "eeeeeeeita coisa boa" pipocam no saloon, moças puxadas pelo braço recusam (ou aceitam) beijos sem prefácio. Ainda assim, há gente cantando de olhos fechados refrãos melados. Há muito homem de alinhadas roupas de cowboy tirando mulheres para uma dança e tentando ali, no talento, ganhar a moça. É a velha história: entre o amor sublime e a mera putaria mora a realidade.

A nova onda sertaneja mais urbana, mais pop, que parece ter ganhado tanto terreno nos ouvidos e corações do país é analisada pelo psicanalista Jacob Pinheiro Goldberg: "O homem do interior que foi para a cidade, principalmente o filho dele, sente-se desenraizado. E começa a surgir uma nostalgia que traz a revalorização de um romantismo que vai fugir do deboche, da avacalhação e do esgotamento do modelo da balada. Escuto muito no meu consultório os jovens dizendo ‘estou cansado da balada, quero alguém pra passar a vida junto'. E o tema da música sertaneja é a do individualismo e do herói que supera a solidão através de sua amada. Claro que vai haver uma pitada carnavalesca nisso tudo. E talvez esse arranjo seja o nosso tango para o século 21. Um Brasil potência que exporta o amor de Riobaldo e Diadorim, os duas figuras de Guimarães Rosa".

Exportar o amor, ele disse? Mal sabe Jacob que Victor & Léo já traduziram algumas canções para o inglês, na ousada tentativa de o sertanejo abocanhar um pouco do country na terra de Marlboro.

Nostalgia de hoje em dia
Mas qual é a real novidade nisso tudo? Há de fato um novo sertanejo, uma coqueluche caipira que vem para substituir os vintage Zezé di Camargos, Chitãozinhos e Daniéis? Há de fato uma nostalgia do amor no espírito do nosso tempo? Tobal arrisca: "O sertanejo perde visibilidade, mas nunca perde potência. É o que enche comício, as rádios de maior audiência são sempre sertanejas. Na verdade, sertanejo é a verdadeira música popular brasileira". Prova disso é André Martins, dono de uma construtora em Natal.

Ele está abrindo, todo pimpão, a sua garrafa de Red Label no Villa Country. Veio do Nordeste para uma convenção e caiu no cenário mezzo western mezzo caipira por indicação do manobrista do hotel. "Perguntei onde tinha uma noite parecida com forró!", admite. Defronte a uma estátua de um peão montado em um cavalo brabo, ele está satisfeitíssimo com a escolha: "Sertanejo é parecido com forró, bom pra dançar com a menininha...". E você conhece a moda sertanejo universitário? "Oxe, é claro. Bom demais. Essa moda não tem que acabar não..."

O sertanejo, enrustido ou não, é o que move as estranhas cardíacas do povo brasileiro. Volte a Cotia. Roseanne, aquela que tanto berrou no começo da matéria, ainda se esgoela diante de Victor & Léo. E não repara bem que, ao seu lado, homens enlaçam garotas, eles também cantando de olhos fechados e rompendo o abraço para erguer as mãos ao comando da dupla. "Madrugada de amor que não vai acabar/ Se estou sonhando não quero mais acordar." Roseanne, tão romântica, tadinha, não percebeu... mas em homem de rodeio também bate um coração.

 

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