Surf na faixa de Gaza

por Ricardo Calil
Trip #174

A invasão israelense em território palestino tem um efeito devastador também no surf


A invasão insraelense em território palestino teve um efeito colateral pouco notado, mas muito simbólico: as atividades do clube de surf de Gaza foram interrompidas por tempo indeterminado, para que seus 35 integrantes pudessem reconstruir suas casas e enterrar seus mortos antes de se dedicar novamente a sua principal fonte de prazer em tempos de guerra

Entre as vítimas da invasão da Faixa de Gaza (de 27 de dezembro a 18 de janeiro, morreram 1.300 palestinos, incluindo mais de 300 crianças, e 13 soldados israelenses, a maioria deles por fogo amigo), houve pelo menos uma baixa não contabilizada pela Organização das Nações Unidas ou pela imprensa internacional. Um efeito colateral não exatamente grave, mas extremamente simbólico. Com a guerra, as atividades do Clube de Surf de Gaza foram interrompidas por tempo indeterminado. E, assim, Mohammed, Asam, Yousef, Mahmoud, Ahmed e outros surfi stas locais perderam sua principal fonte de prazer em tempos de luta pela sobrevivência.

Na página do clube no MySpace (www. myspace.com/gazasurfclub), eles escreveram: “Para nosso pequeno grupo de surfistas em Gaza, as ondas do Mediterrâneo oriental oferecem uma válvula de escape para esquecermos das dores e dificuldades de viver em Gaza e, ao menos por um momento, nos sentirmos livres!”. Em um período em que as pessoas primeiro se esconderam com medo de serem alvejadas e depois se esforçaram para enterrar seus mortos e reconstruir suas casas, essa sensação tornou-se um produto supérfluo.

“Ninguém consegue pensar em surf neste momento. Que eu saiba, nenhum surfista do clube foi morto ou ferido na guerra, mas quase todos os palestinos perderam algum amigo ou parente”, diz, por telefone, da Cidade de Gaza, Mohammed Elwan, voluntário que trabalha como tradutor e intermediário entre o clube e as ONGs internacionais que o ajudam. Perguntado se seria possível falar com algum dos membros do clube, ele respondeu de forma delicada, mas incisiva: “Não sei como isso funciona na cultura ocidental, mas aqui seria uma ofensa falar sobre surf neste momento. Ninguém aqui ainda sabe quando vai voltar a pegar ondas”.

O surf não foi a pior vítima da guerra, mas foi uma das primeiras. Como muitos dos prédios do governo do Hamas (o partido extremista que governa a região) localizam-se junto ao litoral na Cidade de Gaza, as praias foram alvos preferenciais dos bombardeios e da ocupação por terra, tornando a presença ali praticamente fatal durante a invasão. Elwan lamenta que o clube tenha interrompido suas atividades justamente agora – não apenas porque o inverno é a melhor época para o surf em Gaza, mas porque o esporte bombou no território em 2008, apesar das limitações impostas pelo bloqueio econômico israelense.

Deus e o diabo na terra do surf
O detonador dessa explosão de surf foi uma reportagem do jornal americano Los Angeles Times publicada em 2007. “Se o surf é uma questão de liberdade, em nenhum lugar ele é tão relevante quanto em Gaza”, escreveu a repórter Louise Roug. O texto se concentrava em dois surfistas veteranos que enfrentavam as ondas locais em condições precárias há cerca de dez anos. Mohammed Jayab, 34, havia conseguido comprar por US$70 uma prancha detonada, trazida de Israel por um conhecido. E Ahmed Abu Hassan, 28, realizou a façanha de reunir quatro pranchas – se é que elas mereciam esse nome. Na coleção, havia pranchões de windsurf improvisados, quilhas feitas de madeira velha e leashes com corda comum. Ainda assim, eles conseguiram inspirar e ensinar um pequeno grupo de adolescentes – que preferiu pegar ondas a se juntar à guerra santa. “Nós vamos à praia para esquecer do sofrimento”, declarou ao jornal Mohammed Juda, 17. “Quando surfamos, só pensamos no surf, não pensamos em nossa situação”, completou Islam Assar, 15.

Com a repercussão da reportagem, várias entidades internacionais se mobilizaram para ajudar a incipiente cena de surf local. Primeiro, criou-se o Clube de Surf de Gaza, reunindo os surfistas da região e oferecendo aulas ocasionais dadas por surfistas estrangeiros. Depois, a ONG Surfing 4 Peace – que tem entre seus fundadores o campeão mundial Kelly Slater (americano de ascendência síria) – doou 14 pranchinhas e wetsuits usados, mas em bom estado, para o clube. E, por fim, uma equipe americana filmou a história de surfistas palestinos e israelenses para o documentário God Went Surfing with the Devil (Deus foi surfar com o Diabo).

Elwan conta que essas ações bombaram o surf em Gaza de um ano para cá – dentro das modestas proporções locais. De apenas 20 surfistas, passou-se rapidamente para 30 a 35 – homens de 8 a 35 anos e uma garota de 10, a primeira surfi sta da história palestina; nenhum deles filiado ao Hamas, todos a favor de uma solução pacífica para o conflito com Israel, segundo Elwan.

Mas a explosão do esporte em Gaza também teve alguns contratempos. Acostumados com velhos longboards, os locais ainda estão tentando se acostumar com as pranchinhas, rápidas e instáveis demais para seu nível de surf. As entidades que ajudam os palestinos já conseguiram reunir um lote de novos pranchões para fazer uma nova doação – mas ela não foi concretizada por causa dos entraves do bloqueio econômico.



Surf em estado puro
Fundador da ONG Explore Corps, que ajudou a fundar o Clube de Surf de Gaza, o americano Matt Olsen conheceu de perto a realidade do surf palestino e garante que não existe nada parecido no mundo: “É um surf em estado puro, ainda não corrompido pelo comercialismo. Poucos sabem quem é Kelly Slater, por exemplo. Eles veem Baywatch na TV por satélite por causa das raras cenas de surf. As revistas que eu levei para lá foram tratadas como potes de ouro”, conta.

Olsen se prontifica a explicar a cena do surf palestino. O litoral da Faixa de Gaza é formado por uma longa faixa de areia de 40 km (contra 100 km de Ubatuba). As ondas podem chegar a 8 pés com os fortes ventos no inverno. O fundo é de areia, e o mar nunca conheceu um crowd. Os 30 e poucos surfistas concentram-se principalmente em duas praias: Al Diera, na Cidade de Gaza, e Sheik Khazdien, um pouco ao norte da capital, perto de um campo de refugiados conhecido como Beach Camp. Na primeira, os integrantes do clube se reuniam junto a uma torre de salva-vidas, profissão de alguns dos surfistas locais. Na segunda, em um contêiner abandonado. “O clube representa essa ideia de um surf old school. No resto do mundo, eles saíram de moda. Hoje não há nenhum na Califórnia. Em Gaza, quando não há ondas, os surfistas apenas se reúnem para tomar um chá na praia.”

Diretor do documentário God Went Surfing With the Devil, que está em fase de finalização, o americano Alex Klein complementa a fala de seu amigo Matt: “Os palestinos não conhecem a cultura do surf no resto do mundo, então tiveram de inventar a própria. Não existe a ideia de territorialidade tão comum no esporte. Eles gostam de dividir a mesma onda e de fazer o hi-5 enquanto surfam”, conta o cineasta. “O mar sempre foi um símbolo de liberdade para os palestinos. Eu conheci um oficial do Hamas que me disse que gostava de ir para a praia e olhar para o horizonte quando estava triste ou chateado.” O projeto original do documentário era promover um encontro nas águas do Mediterrâneo entre surfistas israelenses e palestinos. O título foi tirado de uma frase do lendário surfista Doc Paskowitz (personagem principal da reportagem à página 60), judeu americano que cruzou um posto de fronteira na cara e na coragem para entregar pessoalmente as pranchas doadas aos palestinos: “Deus irá surfar com o Diabo se as ondas estiverem boas”.

Mas o projeto não foi concretizado porque os palestinos não tiveram permissão para sair de Gaza, nem os israelenses para entrar. Depois da guerra, o encontro tornou-se uma ideia quase utópica, mas que seus organizadores ainda acreditam ser possível no futuro. “Os surfistas dos dois lados querem muito pegar ondas juntos. É engraçado, porque os israelenses têm uma visão idílica do mar em Gaza, acham que vão encontrar um novo Havaí. E os palestinos pensam justamente o contrário. Eles não percebem que já surfam exatamente no mesmo litoral”, diz Klein.

Criador da ONG Surfing 4 Peace, líder da indústria de surf em Israel e organizador da doação de pranchas para os palestinos, o israelense Arthur Rashkovan afirma, por telefone, de Tel-Aviv, que seu maior sonho é surfar em Gaza, onde ele nunca pisou. “Nós surfistas não queremos matar ninguém, só queremos levar uma vida com aquilo que é essencial. Se eu surfar ao lado de um palestino, acredito que eu irei aprender algo e ele também. E daí poderemos servir de exemplo para nossos governos e fazer a diferença.”

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