por Luiz Alberto Mendes

 

Fiquei olhando uma dessas lesmas pequenas, de duas anteninhas, que mora em um buraquinho do piso do banheiro. Demorou mais de meia hora para que escorregasse alguns centímetros por cima da gosma fosforescente que seu corpo produz. Pensei nas aranhas que escalam, descem, sobem e dominam o espaço em que vivem. Rainhas do pedaço do mundo que escolhem para si.  

Infalível, o pensamento me remeteu ao último xadrez em que estive na prisão. Sobrevivi ali por dois anos, com mais dezesseis parceiros de cela. Cada dia a lembrança torna menor aquele lugar. Aprendi, na prisão, a não me acomodar ao espaço e sempre estar esperando o pior.

Mas não há determinação maior que o desespero humano por qualquer migalha de felicidade. E assim, aos poucos, estava apegado ao espaço, me sentindo parte. Acho que morar é isso: sentir-se parte das paredes, dos móveis e de tudo ao redor, por incrível pareça, até das grades, se for o caso. Era ruim, mas a gente acabava achando que as outras seriam piores ainda. Então lá vinham as tais “ordens superiores”, e eu era removido para as mais longínquas prisões do Estado. E assim se foram mais de trinta anos de buraco em buraco.

Ao sair, vivi conflitos. Não era possível me saber porque eu ainda estava acontecendo. Vivia a esperança de pertencer a um mundo; ter um lar. Unido a uma companheira, fui morar com ela. Sua casa era enorme, confortável no último. Empregados para tudo, paz e tranquilidade que aos poucos se transformou em rotina e depois tédio.

Não conseguia pertencer. Casa tem a ver com trabalho e dedicação. Esta lá no livro Pequeno Príncipe de Saint-Exupery: “foi o cuidado que tiveste com tua rosa que a fez tão importante para você”. Agregamos sentimentos ao que fazemos com prazer. E casa tem a ver com prazer de viver, estar, e pertencer.

Claro esta que há residências que são duras pedras no caminho. Embaixo da ponte, no morro, na favela, o iceberg social mostra nas suas longas pontas perfurantes, seu caos presumido. Na Praça da Sé vivem centenas de pessoas, até famílias inteiras. Quando chove, o contrário se estabelece; todos desaparecem. Para onde irão esses apagados seres da existência? Como o tempo é o número do movimento, de acordo com Aristósteles, até nesse extremo ainda há vínculos. A gente se ajusta qual o líquido ao recipiente que o contém, para sobreviver. O ser humano, esse camaleão descolorado.

Poucos dias de minha libertação, fui lançar meu segundo livro: “Tesão e Prazer”, na Bienal de São Paulo. A Revista Trip me instalou no Hotel George V. O banheiro do apartamento era maior que a cela em que morávamos em dezesseis na prisão. Tinha de tudo e mais um pouco. Sauna; hidromassagem; televisão a cabo em todos os aposentos; aparelhagem de som de qualidade; cozinha super equipada; dois quartos enormes; closet; e duas salas que mais parecia um salões, com móveis sóbrios e sólidos; ou jardim de inverno com cortina de água e tudo.

Pensei na contradição: dias antes, na prisão, o parco espaço nos amontoava. E agora ali, com todo aquele espaço me oprimindo, igualmente. Não preferi a prisão por motivos evidentes, mas precisava quebrar a cadência. Abri todos os registros; sauna; hidro; chuveiro; televisores; e o aparelho de som. Chapei.  

Depois morei sozinho em um minúsculo quartinho com pequeno banheiro, na periferia de São Paulo. Poucos móveis, mas eficientes. A única coisa que havia mesmo de montão, eram livros. Eu os amo. Às vezes passo horas arrumando, alisando, ou sentindo prazer antecipado pelos que ainda não li e lerei, com certeza. Hoje já construí e moro melhor.

A casa das pessoas é onde elas colocam o coração. Comigo é um pouco diferente: casa é onde estão meus livros, meus DVDs, CDs e meu computador. O quarto acanhado, menor que uma cela, era meu lar, mais do que qualquer outro lugar no mundo. Hoje um tanto maior, e aqui trabalho, leio, pesquiso, faço amor, durmo e vivo em paz, como queria. Quando algo não vai bem, assisto um filme, ligo o computador, abro o Word e escrevo até cansar os olhos e os dedos. Às vezes sai até textos interessantes.

Um crítico dirá que estou morando mal. Concordo quanto ao aspecto físico. Mas estou bem, aqui é meu lar, onde vivo perseguindo a estranha volúpia de vir a ser alguém de quem me satisfaça.          

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Luiz Mendes

em 12/04/2006, reformado em 30/03/2015

    

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