Aquela estranha mulher...

por Luiz Alberto Mendes

Estranhos

 

Você acorda de manhã, olha para o lado de sua companheira e percebe, de repente, que aquela mulher que você conhece a anos, às vezes até a décadas, é uma estranha. Foi exatamente por isso que aquele pensador pré-socrático, acho que é Heráclito, afirmou, em outras palavras, que as águas que fluem no rio já não são mais as mesmas que fluíam a instantes atrás. O nazismo na Alemanha, iniciou-se perto de 1933 com sua prática de matanças, preconceitos, o holocausto (6 milhões de judeus e 4 milhões de russos, comunistas, ciganos e dissidentes) e finalizou-se em 1945, ao final da 2ª Guerra Mundial. Hannah Arendt, intelectual judia/alemã foi violentamente chocada pela atitude de seu mestre e amante, Martim Heidegger, um príncipe das ideologias libertárias, em apoiar e fazer parte do nazi-fascismo imperante. Eles queimavam livros em praça pública, idênticos à Inquisição, exterminaram quase todos intelectuais que não aderiram à ideologia que pregavam. Por exemplo, Karl Jaspers, pai do existencialismo cristão e amigo pessoal de Heidegger  foi proibido de dar aulas nas faculdades alemãs só porque era casado com uma judia. Teve que viver foragido e escondido com a família por amigos, até conseguir cruzar as fronteiras.

Não conhecemos ninguém de verdade. Nunca mais seremos o que já fomos. O que sabíamos já não é mais como conhecíamos. Aquela mulher com a qual convivemos a vida toda, não é mais o que já foi. Nada é absolutamente para sempre e nem para daqui a pouco. Tudo acresce e segue. Quando olhamos nosso passado é que percebemos que não somos mais aquele que éramos. Com os outros se dá o mesmo. E, se olharmos nossos erros saberemos que foram tolos, se estivéssemos naquela posição agora, não os cometeríamos mais, com certeza. Mas não somos mais aquele que errou; somos aquele que errou somado ao que aprendemos de lá até aqui. Então, somos outros. Estranhos a nós mesmos, quanto mais para os outros.

O problema é que quando percebemos a transitoriedade de tudo, parece que ficamos sem chão. Não sabemos de nada pois tudo esta a se fazer e refazer continuadamente. Tudo é relativo a alguma coisa ou a algum tempo, por isso não há busca de um tempo perdido como queria Marcel Proust. O que fizemos, fizemos com toda nossa capacidade, dificuldades e falta de capacidade que possuíamos no momento de fazer. Hoje faríamos melhor, mas hoje não somos mais o que fôramos ontem. Por isso a crítica de que só há um hoje, singular, para tantos ontens e amanhãs, plurais. Hoje é único, a soma de tudo o que fomos anteriormente, e esse infinito repositório de futuros que carregamos. Como escritor vejo isso muito claro. Posso revisar um texto ou um livro hoje e tirar toda "gordura", deixando somente o que considero essencial hoje. Daqui a alguns dias, caso faça nova revisão, sempre encontro defeitos e "gordura" a ser enxugada. É assim que estou na 4ª revisão de um romance e não tenho ainda coragem de entregar a nenhum editor. Leio livros meus que já estão publicados e sinto sempre uma ponta de vergonha de tudo que encontro de errado neles. Daria tudo para fazer uma nova revisão e então publicar novamente. A cada ano que passa, vejo o quanto fui idiota no ano anterior. Ontem disse um monte de besteira que hoje não diria. Diria outras, provavelmente.

A mulher que dormiu conosco ontem, ao acordar, é outra mulher, embora nos pareçam tão idênticas, às vezes. Mas nós, ao acordarmos também somos outros, enxergamos aquela mulher com outros olhos. Às vezes olhos mais carinhosos, outras até com certo desprezo pela desconhecida. Eu acho isso maravilhoso: só há rotina para quem não observa devidamente e para quem não presta a atenção na fluência e liquidez do tempo. Parece magia: somos todos surpreendentes, somos esse e outros. Por isso eu creio que aprender antecede ao ser, como o existencialismo ao afirmar que a existência antecede à essência. Existimos e então vamos criando essências, construindo o que somos e somos sempre outros no tempo.

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Luiz Mendes

25/11/2014.

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