Uma noite de cinema na Rocinha
“Temos tantos talentos, mas não somos reconhecidos pelo mundo”, diz Mônica Pimentel, moradora da favela transformada em plateia do Projeta Rocinha, que exibiu uma tela gigante no Morro Dois Irmãos
Ao lado de dois tambores azuis de caixa d'água, varais de roupa pregados em paralelo na parede e antenas de TV por todos os lados, Mônica Pimentel Medina, 48 anos, assistia com entusiasmo a primeira noite de exibições do Projeta Rocinha, na noite da última sexta-feira (22), no alto de uma das lajes da comunidade, na zona sul do Rio. O evento, que foi até domingo (24), exibiu longas, curtas, clipes, intervenções poéticas e mensagens de saúde pública relacionadas à prevenção da pandemia (#vacinajá) na maior favela da América Latina a um público previsto de 100 mil pessoas.
Cada qual em sua laje ou janela, por conta da Covid-19, moradores puderam acompanhar a programação projetada na pedra dos Dois Irmãos em dimensões espetaculares – equivalente a meio quilômetro ou cinco edifícios de 18 andares lado a lado. Para se ter uma ideia, a maior tela de cinema do mundo, da rede Imax, na Alemanha, tem 38 metros de largura e é maior que um Boeing 737. Assim, o Projeta Rocinha traz uma tela do tamanho de pelo menos dois desses aviões. Organizado em parceria com a Dona Rosa Filmes, de Mariana Marinho, e pela Casa de Cultura da Rocinha, de Maurício Soca – morador e produtor cultural da comunidade, o evento contou com projeção da Visual Farm, produtora de conteúdos visuais e projeções de Alexis Anastasiou.
“Estou emocionada. Esse projeto é a representatividade da minha comunidade, o reconhecimento do trabalho de muita gente que vive aqui. Temos tantos talentos, mas não somos reconhecidos pelo mundo”, conta a cabeleireira e locutora da rádio comunitária Brisa FM, enquanto fumava um cigarro – único momento em que ficou sem máscara durante a entrevista. Mônica, que atendia sua clientela em suas casas e ministrava cursos sobre cortes e tratamentos de cabelo, perdeu 60% de seu rendimento durante a pandemia. Seu programa de rádio, chamado “Traz as Amiguinhas”, com uma programação musical que vai do samba ao funk, também parou de ser produzido por conta do coronavírus.
“Essa doença matou todo mundo, tanto nós, negros, como brancos. O dinheiro e a cor não importaram e a morte chegou para todos. Não que eu tenha ficado feliz, porque senão estaria sendo malvada, mas me fez ficar pensativa. Agora, é claro que nós, aqui na comunidade, morremos muito mais. Falta água, falta saneamento básico, falta sabonete, faltam respiradores e falta instrução qualificada”, dispara Mônica, que mora com sua companheira, Priscila, e três filhos.
LEIA TAMBÉM: "A favela sempre esteve isolada socialmente", diz Celso Athayde
Ela ainda lembra que enquanto o nosso presidente falar em cloroquina e fizer questão de não usar máscara nos eventos públicos, vamos continuar morrendo: “Eu sou a primeira a ir para a janela bater panela. As comunidades enfim estão percebendo seu poder de votação e estamos começando a colocar pessoas na política que nos representam. Nossa verdadeira arma é o nosso voto”.
Poucos instantes depois, uma série de vídeos feitos pelos próprios moradores da Rocinha foram projetados no telão: “A homofobia e transfobia são crimes. Por que negar ao outro a condição de sujeito de direito em função de sua sexualidade?” e “A cada 15 segundos uma mulher é agredida no país. Cinco espancamentos a cada dois minutos. Um estupro a cada 11 minutos. Um feminicídio a cada 90 minutos”. Ao final, a campanha ainda lembrava: “Se você é vítima ou testemunha de uma situação de violência, ligue 180. A ligação é gratuita”.
Depois de alguma espera, os refrigerantes subiram encaixotados os três lances de escada que dava para a laje da produção, na rua 1 da Rocinha, com poucos convidados da equipe. Uma caixa de som grande e de luzes vermelhas piscantes instalada ao lado de cadeiras de plástico brancas compunham o cenário do cinema improvisado. Para ouvir o áudio da projeção bastava sintonizar na rádio local 106,5. “Favor ficar de máscara, mesmo que seja só para tirar foto”, gritou uma menina da produção ao ver um grupo fazendo selfie sem a proteção com a projeção gigante ao fundo.
Sem cinema e sem saneamento
De rádio-escuta no ouvido e camiseta do Projeta Rocinha, Ryan Cavalcanti Viana, 17 anos, começou nesta sexta na produção local, a convite da Casa de Cultura da Rocinha. “Eu adoro séries e filmes de comédia, tipo ‘Gente Grande’ [filme escrito e atuado Adam Sandler]”, conta o aluno do segundo ano do Ensino Médio. Sem aulas presenciais por conta da pandemia, Ryan cuida de seu irmão de três anos de segunda a sexta, quando os pais trabalham. Seu pai é estoquista de um restaurante na Barra, e, sua mãe, vendedora em uma lojinha de acessórios de celulares na Rocinha.
“Estava tendo aula on-line ano passado, mas dos mais de 30 alunos da minha sala, só uns quatro ou cinco conseguiam entrar. Muitos não têm de onde acessar a plataforma, ou não tem internet”, revela. Morador de uma casa de apenas um quarto, na Vila Verde, bairro dentro da Rocinha, Ryan dorme no sofá da sala e, o irmãozinho, no quarto com os pais. O cinema mais perto de sua casa é o do Shopping Fashion Mall, na praia de São Conrado. Suas salas de cinema prediletas, no entanto, é a do Shopping Leblon e do Shopping Downtown, na Barra da Tijuca, porque, segundo ele, têm mais diversidade de programação.
LEIA TAMBÉM: Isolamento para quem? HQ retrata a pandemia na periferia
Apesar de abrigar 70 mil habitantes, de acordo com o último Censo do IBGE, e de ser o maior aglomerado subnormal da América Latina, com 25.742 domicílios, a Rocinha não conta com nenhuma sala de cinema. Cerca de 50% da população não tem ao menos saneamento básico. Não à toa, a Rocinha está entre as comunidades do Rio de Janeiro com mais mortes por conta do Coronavírus. De acordo com o Painel Unificador COVID-19 Nas Favelas do Rio de Janeiro, a Rocinha conta, até a data de hoje, com 1.021 casos confirmados e 64 mortes.
O painel, produzido em conjunto com dados públicos e relatos comunitários, revela que entre os contaminados das favelas cariocas que se autodeclararam com sintomas, 34% são pretos e 38%, pardos. Como na favela não existiu uma testagem em massa e as casas muitas vezes não possuem ao menos um CEP, os casos são subnotificados. Esse número deve ser extremamente maior.
Poder da arte
“Foi a arte que salvou a maioria das pessoas da favela nessa pandemia”, acredita Nica Andrade, 42 anos, na terceira laje visitada pela Trip. Segundo a produtora local do Projeta Rocinha e cabeleireira, os moradores da favela passaram a consumir mais cultura durante o período de quarentena. “Se você não pode sair de casa, precisa assistir uma série, ver um filme, ouvir uma rádio ou ler um livro. Muitas pessoas ainda foram para as janelas tocar e cantar”, conta Nica. Ela lembra que fazer isolamento social na favela é ainda mais difícil por conta dos cômodos apertados e da perda de renda a qual muitos foram acometidos.
LEIA TAMBÉM: O coronavírus na periferia das grandes cidades
Com todos esses desafios, a realização do Projeta Rocinha foi um presente em plena pandemia, para Nica: “A gente viu a favela... E é favela mesmo, não é comunidade, porque a gente tem orgulho de ser favelado... A gente viu todo mundo reagindo, gritando, acendendo e apagando as luzes... Isso está mexendo com a emoção da Rocinha”. Além de curar em tempos de pandemia, a arte ainda é capaz de salvar, segundo a produtora, já que a dança, a música, o teatro e a pintura podem dar uma nova perspectiva para a juventude dos morros. “Quando a sociedade entender que a arte é um veículo de salvação, vamos tirar muitas crianças das ruas”.
Entre o percurso de uma laje para a outra, os becos e ruas da Rocinha estavam fervilhantes. Os moradores caminhavam apertados por entre as vielas escuras com cerca de 1,5 metro de comprimento em meio ao som das mototáxis que subiam apressadas a rua principal. O fundo musical era permanente, mudando de música a depender da caixa de som em que era amplificada, com novos ritmos surgindo a cada esquina. Os bares e mercadinhos – repletos de cervejas e pães de leite –, estavam cheios de gente. Uma infinidade de fios pretos enrolados nos postes e nas casas. Poucos usavam máscaras.
O curta da noite mais comentado foi “Janelas Daqui”, de Luciano Vidigal – inédito até então. No filme, os moradores, enquadrados nas janelas de suas próprias casas no Vidigal, comunidade carioca vizinha à Rocinha, divagam sobe as consequências da pandemia na favela. “Foi um marco histórico. Um pingo de esperança, através do poder da arte, nesse momento do mundo”, acredita o diretor.
A curadoria do Projeta Rocinha ficou nas mãos de Mônica Nega, 46 anos. Ela conta que a intenção é que o festival entre no calendário anual do Rio de Janeiro e possa acontecer em todas as favelas da cidade. “É uma possibilidade democrática de oferecer cultura para todes. Se a gente ficasse esperando pelo poder público, acredito que não estaria viva para ver isso”, diz Mônica, que também é atriz. Entre as projeções escolhidas por ela, curtas sobre o cabelo preto, feminismo negro favelado e antirracismo. “A gente precisa mostrar realmente o que é racismo. Sabe? Desenhar mesmo”, ri.
Amarildo
A ideia inicial do festival surgiu em 2014, após uma série de palavras e frases terem sido projetadas na pedra dos Dois Irmãos por Maurício Soca, 59 anos, produtor cultural, ativista e fundador da Casa de Cultura da Rocinha, em parceria com a Visual Farm. A estampa de um selo criado a partir de uma foto com Amarildo e projetado na rocha causou repercussão durante a Copa do Mundo como forma de protesto do desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza, morto por policiais militares da UPP da Rocinha, em 2013. O corpo até hoje não foi encontrado.
“Como tinha dado muito certo, pensei: ‘Dá para fazer filme assim’. Saímos com aquela ideia, mas não encontramos parceiros na época para realizar o projeto. Agora, na pandemia, ele caiu como uma luva porque qual outra chance de exibir um filme para 100 mil pessoas sem aglomeração?”, questiona Soca, que mora há mais de 50 anos na Rocinha. Após os três dias do projeto, o produtor cultural, que já participou da gravação de um clipe do Michael Jackson, contou que nunca recebeu tantas ligações e mensagens de carinho. “O cinema é um espaço muito pouco frequentando por favelado. Mas como Milton Nascimento diz, todo artista tem de ir aonde o povo está”.
A produtora audiovisual Mariana Marinho, coordenadora-geral do Projeta Rocinha, trouxe a ideia de exibir filmes que dialogassem com a favela e que pudessem levar afeto e solidariedade em um momento tão árido, tanto culturalmente como de possibilidades e de encontros. “O cinema está esvaziado e passando por um período de massacre político. Só saímos na mídia para falar de Ancine e para reclamar de questões, mas nunca de uma maneira positiva. Então pensei: vamos botar o cinema nacional para cima”, explicou Mariana.
Segundo ela, o esvaziamento da área audiovisual já vinha acontecendo antes da pandemia, e a ideia era alçar o cinema como protagonista outra vez. “Esse projeto não é bem um cinema, porque não é uma caixa preta e fechada, que exige atenção plena, que, aliás, eu também amo. Isso que a gente fez é outra coisa. É uma grande experiência coletiva, apesar de estar cada um em sua casa”, resume.
Os longas escolhidos para o festival foram: “Minha Mãe é uma Peça 3”, de Susana Garcia, “Fala Sério, Mãe”, de Pedro Vasconcelos, e “Gonzaga de Pai para Filho”, de Breno Silveira. “Queria que os filmes fossem populares, porque a Rocinha é uma comunidade enorme, e que dialogassem com o cinema nacional, por isso grandes atores como Paulo Gustavo e Ingrid Guimarães. E Gonzaguinha, porque a comunidade nordestina aqui é enorme”. A ideia era também resgatar a autoestima do carioca, desgastada ainda mais após a gestão de Marcelo Crivella na prefeitura do Rio: “Ele foi uma catástrofe na área de cultura”, diz.
Lá do Alto
A laje alugada para a acomodação da produção do Projeta Rocinha é de Reginaldo Monteiro Nascimento, 55 anos. A Trip encontrou com ele no térreo, onde mantém um pequeno bar com bebidas servidas em copos plásticos por conta da Covid-19. “Está sendo bem difícil me manter com a pandemia. O movimento despencou porque não tem mais bailes por aqui e muitas pessoas de outras comunidades deixaram de frequentar a Rocinha. Estou devendo até hoje e tentando negociar com meus fornecedores”, diz, enquanto informa a um cliente que pergunta o preço de uma cerveja. “Cinco reais”, responde. Sua filha mais velha, formada em psicologia e também moradora da Rocinha, está atendendo virtualmente os clientes que se mantiveram da clínica em que trabalha, na Barra da Tijuca.
No andar de cima fica a casa de Reginaldo, onde mora com a mulher e sua filha mais nova, estudante do nono período de direto na Universidade Cândido Mendes. No andar do meio, um salão de beleza com fotografias e recortes de revistas coladas na parede e frases como “Minhas roupas não determinam meu consentimento” e “Lugar de mulher é onde ela quiser”. No quarto andar é a laje, com pranchas antigas de surfe acomodadas em capas, engradados de cervejas vazios e restos de pedras de construção com uma TV antiga em cima. Ao fundo, uma vista deslumbrante para a praia de São Conrado. “É a coisa mais rica que tenho na vida. É onde eu queimo meu churrasquinho, tomo um sol e vejo se a praia está boa para ir”, conta. A casa foi construída pelo próprio Reginaldo, seu pai e seus irmãos, em 1988.
Pergunto se ele gosta de cinema. “Gostar até gosto, mas não tenho ido. A despesa é alta, porque não é só o cinema, é tudo o que acompanha, a pipoca, comida, o transporte”. Reginaldo não consegue se lembrar o último filme visto em tela grande.