Pira olímpica
O skate chega à Olimpíada cercado pela discussão polêmica a respeito da cannabis como doping. A Trip foi atrás de entender se, afinal, fumar maconha é bom ou ruim para o atleta
A lista de estimulantes, esteroides anabolizantes, betabloqueadores e outras técnicas cada vez mais criativas para potencializar o sangue e até mascarar substâncias que comprovadamente melhoram o desempenho esportivo são motivos de investigação constante para evitar trapaças no esporte. Mas pouca gente lembraria da maconha como uma droga indicada para melhorar a performance. Uma frase como “vou fumar um para me dar bem e ganhar uma medalha” soa tão improvável quanto distante do que idealiza-se como principal efeito para quem gosta de um baseado.
Mas para a Agência Mundial Antidoping – Wada, na sigla em inglês – a questão não é tão simples e a Cannabis segue sem previsão de sair da lista proibitiva do esporte, tema que tem ganhado destaque com a estreia do skate e do surf na Olimpíada de Tóquio, em 2020.
O tema rapidamente ganhou exemplos práticos no Brasil. Em janeiro do ano passado, assim que passou a ser regido pelas regras do Comitê Olímpico Brasileiro (COI) e da Wada, o skate brasileiro já precisou lidar com o primeiro tombo. No festival Vert Jam, realizado em Itajaí (SC), os atletas foram submetidos a testes antidoping realizados pela Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD) durante uma festa, em banheiro improvisado. Em um dos exames, Pedro Barros, integrante da seleção brasileira e campeão da primeira edição do mundial de Skate Park realizada conjuntamente pela World Skate e pelo Comitê Olímpico Internacional, em 2018, foi flagrado com derivado de maconha na urina. “No momento em que soube das olimpíadas e decidi participar, estava sabendo das regras e decidido a mudar meu estilo de vida para conseguir fazer parte da competição”, declarou o atleta durante a cerimônia do Prêmio Brasil Olímpico, em dezembro passado, na qual foi escolhido como o melhor do ano no skate, em rara entrevista após testar positivo.
A questão não tem sido ignorada por Bob Burnquist, dono de 30 medalhas de X-Games e dez títulos mundiais, maior nome do skate na história do Brasil e presidente da Confederação Brasileira de Skate (CBSK). “É uma situação entre o skatista e a ABCD. Agora, todo mundo está ciente de que é um novo momento. Enquanto for regra da Wada, que o THC é doping, temos que seguir essa norma”, diz à Trip.
Seja como mandatário da CBSK, seja como cidadão e skatista, Bob defende mudanças: “Sinceramente, acho que isso vai mudar. E tem que mudar. Estamos vendo uma evolução e, na verdade, a Cannabis não é necessariamente uma droga, é um remédio e a gente, como esportista que se machuca muito, sabe que é bem melhor lidar com esse tipo de dor com um produto como este do que com muitas outras substâncias que viciam e prejudicam o atleta”, afirma. Em seu perfil no Instagram, em 15 de janeiro deste ano, ele voltou ao assunto: “Nos EUA, tenho visto cada vez mais atletas utilizando opioides para tratar suas dores, o que é muito preocupante, devido aos inúmeros prejuízos para a saúde, afastamento do esporte por causa do vício, sem falar das mortes... Todo dia mais de cem óbitos por overdose são registrados no país em consequência do abuso de opioides. Por outro lado, segundo estudo da Universidade da Pensilvânia, 13 estados que liberaram o uso medicinal da maconha tiveram redução de 24,8% nessa taxa de mortalidade”.
Diz que me diz
Curiosamente, Bob é um dos skatistas mencionados no estudo que a Wada enviou à Trip, texto usado pelo órgão para avalizar a proibição. “Os skatistas Bob Burnquist e Jen O’Brien admitiram que a Cannabis os ajuda a aliviar a pressão associada ao esporte”, informa o artigo, que linka no trecho uma reportagem do New York Daily News. Na publicação, no entanto, não há declaração de Bob, apenas de sua namorada à época, a também skatista Jen O’Brien. “Muitos skatistas usam maconha para relaxar. Eu acho que é melhor do que tomar Vicodin ou Valium ou beber álcool”, dizia ela na reportagem.
O artigo intitulado “Cannabis in Sport, Anti-Doping Perspective” é de 2011 e está assinado pelos pesquisadores Marilyn A. Huestis, Irene Mazzoni e Olivier Rabin. Huestis é do Instituto Nacional de Abuso de Drogas, em Baltimore (EUA), que lida com dependência química pesada e historicamente tem se posicionado contra o uso de derivados da Cannabis em qualquer instância; os outros dois são da Wada.
Espírito olímpico
Nem a flexibilização recente nas leis em mais de 30 países, que passaram a permitir o consumo de maconha para uso recreativo ou terapêutico, tampouco o fato de a Organização Mundial da Saúde anunciar ano passado que está disposta a reavaliar cientificamente os efeitos da maconha, o que indica uma possibilidade de removê-la da classificação de droga, sensibilizaram o órgão regulador. “Primeiro eles proíbem e depois vão se aprofundar”, comenta o advogado especialista em doping esportivo Marcelo Franklin, que ficou conhecido por livrar ou amenizar bastante as punições de atletas em casos famosos e complicados, como César Cielo e Etiene Medeiros, da natação, Murilo, do vôlei, Ana Cláudia Lemos, do atletismo, entre outros.
Franklin é também o responsável pela defesa de Pedro Barros, mas preferiu não falar sobre o caso. Só destacou que espera celeridade no processo para não prejudicar seu cliente. “Atletas em vias de uma qualificação olímpica precisam de um julgamento rápido. Se demoram, podem impedir a ida aos Jogos”, alerta. Não havia ainda previsão de data para a audiência até o fechamento desta edição, mas, diante das circunstâncias e da competição em que foi flagrado, as pessoas ao redor do atleta acreditam que são boas as chances de Pedrinho não ser punido, caso confirme sua vaga.
Além da questão do desempenho, essa expectativa alinha-se, de certo modo, a uma questão ética ligada à cultura do skate, de não haver qualquer motivação de trapaça entre os atletas. É característica do esporte uma relação de competição geralmente marcada pela amizade e camaradagem, em que normalmente os competidores inclusive torcem um pelo outro.
“O Pedro está tendo que passar por essa situação, essa burocracia toda. Mas acredito que será absolvido de imediato”, opinou André Barros, pai e empresário do atleta. “O skate me ensinou que, por mais que haja uma competitividade, é mais comigo mesmo. E você evolui. A amizade e a relação entre os skatistas é tão forte que é uma lição de vida em muitas formas”, declarou Pedro.
Essa particularidade é um dos pontos que provavelmente estimulou o COI a escolher a modalidade para os próximos Jogos Olímpicos, e os atletas defendem que ela será preservada, mesmo num ambiente de alta competitividade. “Competir por diversão é mais a nossa vibe e não queremos perder nossa identidade. Nós somos o skate. Isso que é legal, pois há uma tranquilidade maior de todo mundo. Repito, não vamos perder a identidade”, afirmou Bob Burnquist. “Todo mundo que não acompanha campeonatos de skate não entende e faz essa pergunta: ‘Ele é seu competidor e você está batendo palmas?’. Minha resposta é sempre a mesma: ‘Nós somos assim’. Isso é o natural do skate”, completa o presidente da CBSK.
Para ele, essa característica intrínseca ao esporte mantém os atletas distantes da busca por substâncias que permitam trapacear, situação muito comum em olimpíadas. “O espírito do skate vai chegar e acho que estamos mais próximos do que pregam como espírito olímpico do que outras modalidades”, explica Bob, para quem, longe de ser doping, a maconha deveria ser vista como terapêutica. “Defendo a regulamentação do uso da Cannabis medicinal. Só eu sei as dores que passei e o quanto o óleo do canabidiol, por exemplo, me ajudou nessas horas, mesmo antes de as pesquisas científicas comprovarem a sua eficácia para o tratamento da dor”, declarou em seu perfil no Instagram, depois de contabilizar as
37 fraturas de ossos e articulações que sofreu em sua carreira no skate.
Questão moral
A Wada admite que a extensão da proibição dos canabinoides a todos os esportes, em 2003, foi “uma das questões mais controversas do código antidoping”. Na ocasião, alguns delegados argumentaram que os canabinoides não deveriam ser incluídos nas regulamentações esportivas porque o consumo não melhoraria o desempenho nos esportes e, portanto, deveria continuar sendo uma questão social. Outros integrantes do órgão regulador alegaram que melhoraria, sim, o desempenho e, além disso, por ser ilegal na maioria dos países, deveria ser proibida a qualquer momento, pois “os atletas são modelos na sociedade moderna”. Apesar disso, desde a inclusão da maconha na lista de substâncias proibidas, em 1999, até hoje, o limite permitido pela Wada para a quantidade de maconha na urina testada aumentou em dez vezes, pulando de 15 para 150 nanogramas de THC.
A entrada do skate e do surf nas olimpíadas, assim como do BMX na Rio 2016, tem ligação com um projeto do COI de revitalizar o evento com a introdução de esportes que consigam atrair um público mais jovem e não necessariamente ligado a atividades que primam por disputas que envolvam força e fôlego.
Suplemento
Essa estratégia já havia sido testada nos Jogos Olímpicos de Inverno, com a inclusão, em 1998, nos Jogos de Nagano, no Japão, do snowboard. Na ocasião, o canadense Ross Rebagliati levou o ouro olímpico na modalidade, cassado depois de o competidor ser flagrado pelo uso de maconha. Ross, porém, conseguiu algo histórico: ganhar nos tribunais o direito de ter a medalha devolvida pelo Comitê Olímpico Internacional. Essa é ainda hoje a única medalha restituída pelo COI após uma punição na história. “O THC é controlado apenas por causa de pontos de vista ideológicos internacionais e leis desatualizadas”, acredita Ross, que defende o uso terapêutico para atletas. “São saudáveis, com zero calorias, zero de gordura e qualidades anti–inflamatórias e analgésicas incríveis e seguras quando comparadas a substâncias usadas tradicionalmente por equipes que fazem tratamentos com opioides, um problema bem maior”, diz ele, fazendo coro ao discurso de Bob sobre o tema.
A Wada, no outro extremo, destaca como benefícios atléticos a diminuição de ansiedade, medo, depressão e tensão e um aumento de respostas impulsivas, o que poderia levar a um comportamento em que o atleta assumiria mais riscos, além de mencionar um subjetivo aumento de criatividade. “Esses benefícios podem ou não ocorrer, de fato, mas variam conforme o tipo de maconha. Dependendo da constituição, pode ter um efeito diferente ou inverso. Mas em relação à criatividade, a pessoa tem ou não tem, a maconha não vai fabricar”, acredita Dartiu Xavier, psiquiatra especialista em drogas da Universidade Federal de São Paulo.
O farmacologista especializado em Cannabis e neurocientista Fabrício Pamplona é um dos principais pesquisadores brasileiros do uso medicinal dos derivados de maconha e também não acredita em ganhos atléticos decorrentes da erva. “É estranha essa ideia de que haveria vantagem na competição. O que tem de benefício seria no pós-treino. Em muitos países, a Cannabis é considerada suplemento. Atletas até vão a público dizer que ajuda por ser um composto seguro, antioxidante e anti-inflamatório. Ou seja, para o benefício que eu vejo, estaria liberado, pois seria um uso fora de competição”, explica o neurocientista. “Parece mais um aspecto ético do que qualquer possibilidade de benefício na competição. Tem um grande peso considerarem ser contra o espírito esportivo associar a imagem do atleta a uma substância proibida”, completa Fabrício.
Dartiu, que já foi consultor do Ministério da Saúde e da Secretaria Nacional de Drogas (Senad – Ministério da Justiça), conta que jamais atendeu alguém que usasse maconha para se beneficiar numa competição. “Os atletas que trato no meu consultório nunca trouxeram isso, porque a maconha não é um estimulante. Normalmente, há um interesse de atletas em estimulantes. A maconha não tem efeito se a intenção é melhorar o desempenho. Definitivamente não é uma boa droga para o esportista e não é algo com que a agência antidoping deveria se preocupar.”
Créditos
Imagem principal: Muretz
Ilustrações por Muretz