Resultados da fome na infância

por Luiz Alberto Mendes em

 

Os “Mortos-de-fome”

 

Conheci duas pessoas cujo idêntico fim trágico me fazem sempre recordá-las com certo pesar. Agora pouco lembrei fato coincidente na vida de ambos que me fizeram pensar e vir aqui escrever. Parece que meu pensamento fica mais claro ao mover as letras para formar palavras.

Bala era o apelido de um de meus companheiros de processos e condenações. Ele foi uma das pessoas mais encrenqueiras que já conheci. Brigava para tudo e com todo quase todo mundo. Colecionava inimigos aos montes. Apanhou, bateu, tomou e deu facada, espetada, cortes, pauladas... Vivia na cela-forte ou no hospital. Trancado feito bicho ou ferido e doente.  Um desesperado.

Jamais sequer discutimos. Gostava de mim. Principalmente porque era meu parceiro desde pequeno nas duras ruas de São Paulo. Eu sempre guardava alguma coisa para alimentá-lo. Além de passageiro da agonia, o sujeito comia feito louco. Se colocasse comida agora para ele, o sujeito limpava o prato. Quase nem precisava lavar. Caso alguém oferecesse outro prato, ele comeria novamente. E se viesse um terceiro, um quarto e até um quinto, ele não conseguia rejeitar. Comia até ficar doente e precisar ser hospitalizado.

Eu sabia: ele havia passado muita fome quando criança. Fora abandonado na rua pela mãe. Havia nele medo inconsciente de que a oferta de comida acabaria, então comia compulsivamente enquanto podia.

 Pelezinho era idêntico. Trabalhávamos no setor de faxina e por conta disso tínhamos acesso limitado à cozinha da prisão. Embora pequeno, parecia mesmo com o Rei e era um dos melhores jogadores de bola da prisão. Daí o apelido. Todo mundo gostava dele e procuravam agradá-lo. Um ídolo. Almoçava conosco, depois ia para a cozinha atrás de quantos almoços lhe oferecessem. Almoçava quatro ou cinco vezes por dia. Depois ficava passando mal e se trancava no banheiro. Voltava abatido, doente de tanto que vomitava. Tomava remédio para dor e já voltava atrás de comida para levar para a cela.

Viera do alto sertão nordestino. Seca e, por consequência, miséria e fome. Contou-me que muitas vezes, quando menino, acordava de manhã sem nem uma só raiz para se alimentar. Matava calango e ratos a pedradas para comer. Nele havia aquela mesma compulsividade do Bala, oriunda da mesma fonte: a fome na infância.

Ambos não suportaram a pressão. Triste dizer, mas ambos se suicidaram. Enforcados. Um na cela-forte e outro no banheiro da enfermaria do hospital da prisão. Fico pensando se a fome na infância também não foi a responsável pela prisão e até pela trágica morte de ambos. Seria possível?

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Luiz Mendes

16/05/2012.

 

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