Onze vezes Rael

O rapper chega ao seu quarto disco solo trazendo nomes de peso do rap nacional e uma dose de superstição

por Bianka Vieira em

Às 11 horas da manhã desta sexta-feira, dia 11 do mês 11, Rael chegou aos serviços de streaming com o seu tão aguardado quarto disco, Coisas do meu imaginário. O álbum, que não por acaso possui 11 faixas, interrompe um hiato de dois anos sem lançamento após último trabalho solo do rapper, o EP Diversoficando (2014).

Coisas do meu imaginário foi lançado pelo Laboratório Fantasma, selo do qual Rael faz parte ao lado de Emicida e Evandro Fióti, e recebeu a bênção de nomes de peso do rap nacional. Produzido por Daniel Ganjaman, o trabalho conta com a participação de Ogi, Black Alien, Daniel Yorubá, Chico César e Apolo e Massao, ex-integrantes do grupo Pentágono, do qual Rael fez parte. A lista não para por aí: em “Minha lei”, faixa que estreou em videoclipe hoje, também às 11 horas, Rael traz Mano Brown, Emicida, Projota, Criolo, Rappin Hood, Thaide, Rashid e vários outros músicos para a Rinha dos MCs, evento de batalhas freestyle pelo qual muitos deles passaram antes do auge de suas carreiras. “Foi um sonho ter conseguido reunir quase todo mundo do rap paulistano e nacional”, conta Rael.

De 2014 pra cá, ele diz que muita coisa mudou, que amadureceu pessoal e musicalmente. À Trip, fala sobre o novo disco, Sabotage, religião, Donald Trump e outras crises. Confira:

Trip. Por que essa fixação com o número 11? Esse bagulho de 11 quer dizer alguma coisa, estou tentando me conectar pra ver o que ele me traz.  Quando comecei a escrever as letras, olhava no celular — 11 horas —, o relógio de rua — 11h11 —, tava na fila do mercado — o caixa 11 me chamava. Um dia eu estava num camarim lá em Ouro Preto, jogando sinuca com um amigo DJ, e contei essa história. Logo em seguida, encaçapei a bolinha número 11. Ele se arrepiou na hora! Daí que eu cismei ainda mais com isso: o disco teria 12 faixas e acabou ficando com 11.

“O Sabotage mostrou pra mim que eu posso ocupar qualquer espaço dentro da sociedade com a minha música”
Rael

Como foi trabalhar com o Daniel Ganjaman? Você anda dizendo por aí que era um sonho seu. O Ganja é a minha referência musical desde a época do Pentágono. Para várias pessoas na verdade… E foi maravilhoso. Não rolou nenhum momento de estresse, a gente tem uma sintonia de amizade que fez tudo fluir naturalmente. Ele é um cara que sabe bem o que tá fazendo e tem muito feeling, porque ser profissional e não ter feeling não adianta nada.

O Ganja também produziu o disco póstumo do Sabotage, lançado recentemente. Você curte o som dele? O Sabotage também é referência, ele mostrou pra mim que eu posso ocupar qualquer espaço dentro da sociedade com a minha música, sacou? Tive o prazer de conhecê-lo em algumas ocasiões, show de rap e pá. Ele era um cara inteligente e que era da quebrada, usava gírias da quebrada e passava as ideias que aconteciam na quebrada. Eu sentia um pouco de falta disso. A única coisa triste é que o que ele fala acontece até hoje nas favelas. O lance do crime, da violência policial sobre o jovem negro, a desigualdade social. Ele desenhou tudo isso nas rimas dele, e nada mudou. Acho que está até pior.

Você fala de todas essas influências, mas hoje é você quem está num lugar de destaque. Como você vê sua responsabilidade sobre a molecada mais nova, também da periferia? Existe uma responsabilidade porque as pessoas realmente aderem ao que você fala. Não posso achar que sou só um artista e foda-se. Uma vez recebi uma carta de uma mina contando que o pai batia nela e na mãe, e aí ela ouviu “Ser feliz” e tomou coragem pra sair de casa. A música foi um ponto muito importante pra ela ter iniciativa, e hoje ela está morando em outro estado com a mãe e está muito feliz. Depois disso, passei a encarar essa coisa de trocar ideia com as pessoas com mais seriedade.

O quanto das suas letras são reflexo do que acontece com você? Quase tudo, porque eu verbalizo o que vejo, o que sinto. Algumas coisas são autobiográficas, por exemplo a música “Quem tem fé”, que fala das minhas avós e de como elas me ensinaram a ter fé. 

“Não é crise, o negócio é crazy! O mundo tá louco, tá meio perturbado.”
Rael

Você é um cara religioso? Eu acredito no sincretismo das religiões. Já fui na igreja, já colei em reuniões budistas e às vezes vou no terreiro tomar um passe. Mas o importante é me sentir bem, não sou muito de ir nos templos.

Então é uma vibe espiritualizada mais no estilo do KL Jay? É! Gosto de estar conectado. Se eu quero falar com Deus, já falo direto com ele, não preciso de intermediário ou de um padre pra entrar em contato antes.

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Na música “Do jeito” você fala em crise humanitária, mundial e racial. Como você se sente em meio a esse furacão? Sinto uma sensação de tristeza vendo tanta coisa acontecer, às vezes até parece que é mentira. Tenho assistido algumas coisas, uns documentários, e aí a gente vê o que acontece nos presídios, o lance da intolerância religiosa, do preconceito, as guerras ao redor do mundo, vê o Trump entrando em cena e mano… Você vê que não é crise, o negócio é crazy! O mundo tá louco, tá meio perturbado, e a gente tem que estar preparado psicologicamente pra não entrar em colapso.

“Tem rap que veio pra salvar, tem rap que veio pra trocar ideia e tem rap que veio pra falar porra nenhuma”
Rael

E mesmo no meio disso tudo você consegue tirar uns sons mais suaves, como a música “Rouxinol”. Ela funciona como um respiro, uma utopia pra pensar na possibilidade de um mundo melhor. Essa música é bem calma pra tentar incentivar as pessoas a desacelerar um pouco, porque tá todo mundo sempre correndo pra cima e pra baixo, preocupado com dinheiro, uma maluquice. Acredito que seja importante pensar na vida porque quem vai ser rico no futuro não é quem tem dinheiro, é quem tem tempo livre, sacou?

E como você vê o papel da juventude nisso tudo? Você fala bastante com eles nas suas letras. Olha, eu ainda não sou tão velho, não… [risos]

Estou falando de uma galera mais nova, como os estudantes que estão ocupando escolas do país inteiro, por exemplo. Eu boto a minha fé neles, de verdade. Acho que a juventude hoje tá um pouco mais resolvida. Acredito que meu filho de quatro anos, quando crescer, já vai saber lidar melhor com questões sobre sexualidade, preconceito e diferenças de classe. 

Por falar nisso, no relançamento do disco Ainda há tempo o Criolo fez alterações num trecho da música “Vasilhame” por considerá-lo preconceituoso. Desde que começou, você chegou a mudar o seu jeito de fazer rap por causa de algum debate mais recente? Ah, acho que não. Nunca tive um discurso machista, sou até um cara conhecido por falar de amor. Sempre me policiei pra ter cautela e não machucar ninguém com as letras.

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Mas algumas minas já reclamaram por causa da letra de Envolvidão... Já vi muita gente reclamando porque falo na Envolvidão “ela (...) nem combina com as mulheres vulgares, uma noite e nada mais”. Em nenhum momento falei que ser vulgar é ser zoado, falei que o perfil dela não combina com o de mulher vulgar. Existe a palavra “vulgar”, certo? Assim como tem homem vulgar, também tem mulher vulgar. E eu acho que nem é tão pesado, falei disso pegando um trecho da música dos Racionais, “mulheres, vulgares, uma noite e nada mais, mulheres vul-vulgares”. É que quem não é do rap não entende muito aquela frase, acho que eu tô falando direto pra mulher e não, é uma referência à rima do Edi Rock.

Capa do CD "Coisas do Meu Imaginário" (2016) - Crédito: Divulgação

Nesse novo disco, a música “Estrada” é uma crítica ao vício nas redes sociais? Às vezes tem pessoas que viram personagens da internet, acham que o mundo delas é só ali. Não que as redes sociais sejam ruins, mas é preciso tomar cuidado, se policiar. As pessoas pararam de prestar atenção na vida e estão se influenciando por coisas irreais, por matérias que não são oficiais, coisas que não são de verdade.

A letra lembra o episódio “Nosedive” de Black Mirror. Você assistiu? Ainda não, só vi a primeira temporada. Mas o espírito é o mesmo: falar da geração que curte começar pelo Tinder, terminar por WhatsApp e reclamar no Facebook.

O rap nasce como música de protesto, denunciando o que acontecia nas favelas. Hoje, tem uma galera “crescida em condomínio” se envolvendo com o rap. O que você acha disso? O rap começou a tomar outros espaços e a dialogar com outras pessoas, não tenho nada contra isso. Rap é ritmo e poesia, cada um escreve e conta da realidade que quiser. Tem rap que veio pra salvar, tem rap que veio pra trocar ideia e tem rap que veio pra falar porra nenhuma, pra falar merda.

E o seu rap, veio pra quê? Eu penso em entrar na mente e no coração das pessoas, trazer alguma mensagem de paz, de mudança, de um mundo melhor, de trocar uma ideia mesmo. Mas eu também tenho que respeitar o pensamento de quem quer falar de outras coisas, não posso ser um ditador do rap.

Vai lá: Coisas do meu imaginário, Spotify

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