Quando o banco dos réus está vazio
A publicidade é instrumento ou espelho? Marcos Valério é regra ou exceção? Leia o texto do colunista e ex-publicitário e escolha as suas próprias respostas
Caro Paulo,
Como é sintomática a relação de culpa entre a publicidade e a sociedade! Volta e meia, lá está ela - e os publicitários - no banco dos réus. Marcos Valérios à parte, não precisa ter corrupção envolvida para se questionar a publicidade como responsável pelos maus hábitos [de consumo ou não] dos cidadãos. Será que é? Ou essa acusação não passa do velho e conveniente vício de tratar o sintoma como se fosse a doença?
Seguindo nossa tradição judaico-cristã, admitindo a hipótese de que existe um culpado que pague por nossos pecados, vamos atrás dele. Você sabe como é: a agência recebe um briefing do cliente e, se ela é boa, segundo os padrões vigentes e decadentes, vai fazer o cliente atingir seus objetivos.
Quem é o cliente? O cliente é um gerente de produto, de propaganda, de marketing, um diretor, um presidente ou o próprio empresário. Essas pessoas têm objetivos de carreira, mercadológicos e empresariais, que para serem atingidos dependem de atender necessidades e expectativas dos consumidores.
Quem são os consumidores? Você, eu, os Civita, o Lula, o Roberto Jefferson, os Marinho, o Nizan, o Washington, os Feffer, a Glorinha, o Luciano, a Angélica e o Joaquim, a Costanza, o César Giobbi, o Fábio Barbosa, o Robinho, os Ronaldos, o Antonio Ermírio, o Roger Agnelli, o Daniel Dantas, as dasluzetes, o Fischer, o Justus, a Hebe, o Faustão, os Suplicy, os padres, o Jabor, o Heródoto, os bispos, as bispas, os mano, o Chico, o Gil, o Zé, a Maria, a minha mãe, a sua, a deles, a sua filha, os meus filhos, os deles, enfim todos que vivemos nessa sociedade.
Pesquisas e estudos são feitos para entender nossas necessidades e expectativas de estilo de vida, de previdência, de investimento. Isto é, nós, os consumidores/investidores, somos os clientes dos clientes. Se dissermos que queremos consumir sem limites, seremos atendidos até o limite dos recursos naturais do planeta. Se dissermos que queremos ser eternamente jovens, seremos iludidos até o limite que a neurose e o deus tempo permitir.
Se dissermos que honestidade é valor relativo, seremos tratados como cúmplices até o medo tomar conta de todas as nossas relações. Se dissermos que queremos lucro a qualquer preço ficaremos muito ricos num deserto cercados de miséria por todos os lados.
Quem é que decide?
Enfim, nós decidimos o que queremos para nós. Ou você acredita que existe alguém poderoso o suficiente para tomar essas decisões por nós? Vamos combinar que não são os publicitários.
A verdade é que é insuportável admitir que não existe um responsável que possa ir para o banco dos réus expiar essa culpa solta em busca de alguém poderoso e imoral o suficiente para nos salvar.
Atribuir essa responsabilidade ao publicitário é a maior de todas as ingenuidades ou das conveniências. A publicidade é instrumento da indústria e espelho da sociedade. Agência não tem voz própria. Eu fui empresário de propaganda e sei da fragilidade desse negócio. É muito maior do que a fragilidade da imprensa que precisa e reclama a verba publicitária para garantir sua sobrevivência, sua liberdade, sua independência, sua honestidade, inclusive intelectual.
No lugar de a associação das agências de publicidade sair a público para se defender, no lugar de a imprensa sair a público para defender as agências que garantem suas verbas, devíamos sair criticando a ausência de compromisso pessoal que rompa com os círculos viciosos que perpetuam o cinismo geral e apontam para a propaganda como a sombra da sociedade.
Não estou defendendo os publicitários, que não são melhores nem piores do que os outros [embora muitos deles tenham certeza de que o são]. Mas defendo os indivíduos que no exercício de suas funções de cliente, publicitário ou consumidor conseguem dizer não e fazer valer sua visão crítica e sua imaginação de uma sociedade mais lúcida, saudável e sustentável.
Acredito nisso. E prefiro apostar nessa revolução do que ser advogado de defesa ou testemunha de acusação.
Fica com o abraço do amigo poderoso.