Sem máscaras

Na prisão, todos os encarcerados se mostram como são de verdade: uma junção entre o bem e o mal. Em nenhum outro lugar do mundo conhecemos tão bem o ser humano

por Luiz Alberto Mendes em

Lá vai o homem aprisionado, cheio de nada, emparedado entre gritos estrangulados e não cabendo mais em seu dia tão pequeno. Filho desses infernos criados por homens para outros homens, seu sofrer é significado pela poesia, pela emoção de sua dor vivida. Só lhe resta transformar sua tragédia pessoal em triunfo, convertendo seu sofrimento em conquista humana. Não há consciência sem dor. O homem já fez todas as loucuras possíveis para se eximir de enfrentar sua própria natureza. Tudo indica que não estamos aqui para gozar a vida. Viver é um segredo guardado a trocentas chaves; de repente morremos todos nós, mas é possível da vontade, na escuridão, construir alguma luz.

Lá vai o homem aprisionado em sua incompreensível coragem de sofrer, em ter lágrimas e não chorar sua dor calada. Coragem para enfrentar sua vontade de morrer, de sumir, desaparecer em um buraco qualquer. Todo sofrimento é único e marca um segmento de tempo que não pode ser substituído. Para o preso, sofrer é um estado de alma sem perspectiva porque sempre é possível sofrer além do que já sofreu. Sempre haverá uma dor desconhecida a ser vivida na prisão. Não existe nenhuma satisfação existencial, presente ou futura, que consiga compensar a imensidão das dores sofridas. Só existe uma vantagem depois de tanta dor vivida; vencer todos os temores, nada mais pode assustar, nem o medo da morte. Talvez seja essa a maior dignidade do homem sofrido. Tenho a nítida impressão de que as guerras interiores que ele trava existem para que possa desbaratar o medo.

Para o homem aprisionado, o sentido de sua vida só pode ser encontrado na própria prisão. Na reação de não aceitar ser subjugado em sua alma. Os que não conseguem tornam-se seres aprisionáveis, retraídos a uma posição existencial primitiva, acreditando que estão se preservando. Transformam-se em pessoas destituídas de humanidade, agregadas ao formigueiro humano em que se constitui a prisão.

Paixões humanas

Na prisão conhecemos o homem em profundidade. A prisão abre abismos que rompe critérios, normas e vernizes culturais. O ser humano se revela no raso de sua autocrítica prejudicada ou em sua profundidade abissal. As máscaras caem e todos ali encerrados se mostram como são de verdade: uma junção entre o mal e o bem. Em nenhum outro lugar do mundo conhecemos tão bem o ser humano. Há pessoas decentes e pessoas torpes em todos os agrupamentos humanos. Mas a prisão é campo em que paixões humanas podem se manifestar mais livremente. Conheci guardas de presídio carrascos, que sentiam prazer sádico em sacrificar o preso o mais que podiam. Assim como conheci guardas que manifestavam tamanha bondade e amizade, que chegaram a me comover até as lágrimas. Da mesma maneira como conheci homens aprisionados tomados por tamanho prazer em matar, que somente suas presenças causavam arrepio nos mais duros apenados. Tive o prazer de conhecer ex-companheiros de sofrimento que viviam para servir, ajudar, socorrer e até colocar suas vidas em risco para salvar outros companheiros da morte.

São dois extremos: o ótimo e o péssimo. O guarda e o preso comum estavam no meio, entre os polos, como toda humanidade. Prisão é pressão, creio que somos capazes de todas as maldades e bondades, mas não acredito que isso dependa de onde estivermos nem da orientação que recebemos. Vários fatores e circunstâncias influenciam, mas nada nos determina peremptoriamente. O ser humano sempre decide o que vai ser. Somos seres que escolhem e temos recursos para escapar daquilo que não nos interessa ou atrai, inclusive da coragem de sofrer.

Lá vai o homem aprisionado cuja infelicidade é a semente de sua consciência e profundidade, em busca de compreender que sentido a vida na prisão pode ter...

*Luiz Alberto Mendes, 63, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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