O novo é perigoso
Na música, o novo pode ser oco e servir a qualquer propósito, inclusive o do oposto
Bobs, Marley e Dylan; Kings, Albert e B.B., Janis Joplin, Buddy Guy, Jimi Hendrix e Caetano; parece escalação de time. Time pequeno, tipo futsal. Meus heróis na música são poucos, e na maior parte do tempo ouço as mesmas coisas. Outro dia, conversando com o Gui, um amigo, que é exatamente o contrário de mim e está totalmente aberto às novidades, senti inveja e admiração. Tanta coisa boa aparece e eu nem percebo. É que o novo não me comove, pelo menos não simplesmente por ser “novo”. Ou melhor: desde uma aula que me marcou, nos tempos da faculdade, eu desconfio dele. Enquanto adjetivo, “novo” é de um enorme vazio, que só existe por oposição a “velho”; e, carente de qualidades intrínsecas, se transforma em elogio automático ao carregar dentro de si, clandestinamente, o valor de “bom”. Não é à toa que o “novo” é uma das palavras mais utilizadas pelos publicitários, que querem convencê-lo, o tempo todo, que os “novos” sabão em pó, geladeira e barbeador são melhores do que os anteriores (afinal, não se esqueça, o “novo” é primo-irmão do “progresso”).
Perigo maior que no shopping center, porém, o “novo” representa na política. Até as revoluções burguesas, ninguém se preocupava com o que era novo. A boa política era a da conservação, em que o rei que assumia mantinha as coisas exatamente como as havia deixado o rei que se fora. A atração pelo “novo” surgiu com a crise do absolutismo, ajudou a melhorar a vida das pessoas, mas acabou virando obsessão no começo do século 20, com o fascismo, o nazismo e o comunismo, que tiveram o decisivo apoio do vanguardismo artístico (de avant-garde, os soldados que vão à frente). Aí começou uma enxurrada de “Novo Homem”, “Nova Ordem”, “Nova Política” e, mais recentemente, “Nunca antes neste país” que não teve mais fim. No Brasil, o pioneiro da “nova onda” foi, como o nome já diz, o Estado Novo de Getúlio Vargas.
Jimi, segura a onda
Na política, o perigo maior do “novo” não é ser vazio, é justamente não o ser. Como escreveu Lampedusa no romance O leopardo, no hipercitado trecho em que o sobrinho revolucionário Tancredi diz ao tio, o Príncipe de Salinas, que às vezes é preciso que as coisas mudem para que elas permaneçam como estão, o “novo”, ao carregar de forma sub-reptícia o valor de “bom”, disfarça um sem-número de tranqueiras. Junto com o “novo”, a política fez outra coisa que os publicitários adoram: inventou o “jovem”. Cheio de músculos e com cérebro virgem, ele era o alvo predileto de Hitler e companhia. Os fascistas italianos, por exemplo, criaram o Balila, o jovem uniformizado, a juventude em armas – até hoje o nome de uma tradicional (é, ela já foi nova) cantina no Brás, que tem um maravilhoso fusili feito à mão com cabrito no cardápio.
O novo em si não é ruim, só é perigoso, pois é oco e serve a qualquer propósito, inclusive o de ser exatamente o oposto ao que diz ser. Na política, como na música, o preenchimento dos adjetivos e o contexto significam muita coisa. Quando Caetano cantou “navegar é preciso, viver não é preciso”, ele provavelmente evocava Fernando Pessoa, herdeiro lírico da epopeia dos navegadores portugueses, e não o outro famoso adaptador da frase original do romano Pompeu (navigare necesse est, vivere non est necesse), Benito Mussolini, que a usou em um discurso para celebrar a coragem dos soldados fascistas que morreriam na guerra para construir o grande império italiano. De qualquer forma, devo dizer que tenho me esforçado mais para conhecer, com os ouvidos e a mente abertos, o “novo” na música. E, Jimi Hendrix, segura a onda: tem coisa boa pintando por aí.
*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br