Bar boa praça
Conheça a história da Mercearia São Pedro, que comemora 50 anos com festa de aniversário e livro-homenagem com 75 autores, incluindo Nick Cave, Reinaldo Moraes, Joca Reiners Terron e Marcelino Freire
Assim que foi anunciado o show de Nick Cave and the Bad Seeds em São Paulo, marcado para o próximo 14 de outubro, emergiu na internet o documentário Straight to You, biografia do músico que cobre desde o início de sua carreira, em 1973, até os anos em que viveu em São Paulo, entre 1990 e 1993. Uma das entrevistas com Cave para o documentário foi concedida na Mercearia São Pedro, tradicional bar frequentado por escritores, na Vila Madalena, em São Paulo, que neste sábado (28) comemora 50 anos de existência e ganha livro em homenagem com participação do próprio australiano.
O músico foi casado com a jornalista brasileira Viviane Carneiro, que em 1991 deu à luz Luke Cave, primogênito do cantor. “Eu moro na rua aqui atrás”, explica o cantor, no filme, justificando a assiduidade com frequentava seu boteco de esquina. “É só o meu bar favorito, o melhor bar do mundo”, declara, antes de apresentar um dos proprietários, Pedro Anis Issa Benuthe, “the big guy”, hoje com 56 anos, para a câmera.
“Ele morava na Agissê ou na Luminárias”, relembra Pedro, referindo-se à rua que faz esquina com a Rodésia, onde fica a Mercearia. “Quem o conquistou foi meu pai [o fundador Pedro Benuthe, morto em 1996]. Todo dia, o Nick Cave ia com o filho na padaria aqui ao lado. Certa vez, ele sentou na Mercearia para dar uma maçã de comer para o menino com uma faca. Aí meu pai pegou uma colherzinha de café e raspou a maçã para o garoto comer melhor. O Nick achou isso o máximo e começou a vir aqui todo dia. Aí ele se apaixonou pela minha caipirinha”, relembra Pedro. Ele diz que Cave visitou a Merça outras vezes desde que deixou o país, em 1993, e espera que ele volte este ano.
Cave e outros 74 autores participam do livro concebido em homenagem à Merça, como é conhecido o bar cinquentenário. Saideira – O Livro dos Epitáfios (Pedra Papel Tesoura, 168 páginas), organizado por Joca Reiners Terron e Marcelino Freire, será lançado neste sábado, durante a festa de aniversário do bar. A participação do músico foi intermediada por Peter Sempel, cineasta experimental alemão e também frequentador da Merça desde o começo dos anos 90.
O conceito do livro brinca com o duplo sentido de saideira, seja aquela última dose depois da dolorosa, ou a partida desta para uma melhor. Cada autor criou a própria lápide, seja por escrito, como fizeram Marçal Aquino e Marcelo Rubens Paiva, ou com ilustrações, como Laerte, também criador do logotipo da Mercearia São Pedro, que desde os anos 90 estampa a louça e o uniforme dos funcionários.
LEIA TAMBÉM: Uma conversa sobre amor com o escritor Reinaldo Moraes
Saideira dá continuidade a Uma Antologia Bêbada: Fábulas da Mercearia (2004), coletânea de contos em homenagem ao bar, com 17 autores, entre eles a primeira geração de escritores da Mercearia, formada nos anos 90 por Reinaldo Moraes, Mário Prata e o jornalista norte-americano Matthew Shirts. A compilação também foi organizada por Joca Reiners Terron, que, por sua vez, chegou à Merça em 1996, quando a varanda onde ficam as mesas ainda era aberta para a rua e a topografia do piso acompanhava a da íngreme calçada. “Ainda tinham aquelas cadeiras dobráveis, então se você bebesse demais, caía para trás”, exagera o autor cuiabano. Ele foi um dos responsáveis pela tradição da Mercearia de realizar lançamentos de livros. Em 2005, ele e Daniel Galera fizeram lá a noite de autógrafos dos livros Hotel Hell e Até o Dia em que o cão morreu, respectivamente, ambos pelo selo Livros do Mal.
Um item curioso divide espaço na decoração do bar. Entre garrafas de cachaça, produtos de limpeza e as lombadas das obras literárias, está o prêmio Jabuti recebido por Marcelino Freire em 2006 pelo livro Contos Negreiros, hoje parcialmente chamuscado por conta de um incêndio originado pela chapa em 2015 (três dias depois, a casa já funcionava a todo vapor). Marcelino conta que chegou à Merça, apresentado por Joca, em 2000 – o mesmo ano em que o bar, mercearia (e então videolocadora!) começou a vender livros. “A Mercearia tem dessas coisas, você sempre chega trazido por um amigo”, avalia.
Joca e Marcelino estão envolvidos ativamente nas comemorações de 50 anos, que incluem uma exposição de imagens feitas na Merça pelo fotógrafo José Diniz, e a recolocação de adesivos nas mesas com artes feitas pelos clientes Fábio Moon, Gabriel Bá, Rafael Grampá e Rafa Coutinho, além de quatro shows na calçada, entre eles, o da banda Saco de Ratos, do dramaturgo Mário Bortolotto, outro habitué da casa (programação completa abaixo). Além do bar cinquentenário, Doutor Sócrates (1954-2011) será homenageado. O médico e jogador se aposentou da boemia na Mercearia São Pedro.
EMPRESA FAMILIAR
Quando a família Benuthe chegou à Vila Madalena, vinda do Itaim Paulista, a rua Rodésia não tinha nem asfalto. A família era composta por Pedro pai, morto em 1996, a mulher Enoe e os filhos Munir, Marcos, Mirko e o caçula Pedro. Atrás do estabelecimento, há uma ampla casa, com acesso direto pela porta dos fundos do salão, onde a família morou e que hoje abriga cozinha, escritório, depósito e refeitório para os funcionários. Pedro toca o negócio em sociedade com o irmão Marcos Issa Benuthe desde 1991, após a inesperada morte de Mirko.
Em 1972, o bar ao lado fechou e a família comprou itens do estoque e da infraestrutura do lugar. O estabelecimento começou a prosperar e a acumular funções, no caso, botequim e mercearia. O terceiro serviço, o de locadora de VHS, foi implantado nos anos 80, quando Marquinhos, como é conhecido, passou a comprar filmes de cinema arte, e também fez sucesso. O sócio cinéfilo trabalhava à época como gerente do Cineclube Oscarito, na praça Roosevelt, e aproveitava para realizar sessões ao ar livre, com o público acomodado na Mercearia e o filme projetado no muro da escola em frente. Dessa época vem o hábito de deixar expostos pôsteres de filmes antigos, que até hoje decoram o salão pendurados nas paredes e em varais.
O clima familiar da Merça se estende não só aos clientes, mas também aos funcionários. “É uma casa boa, eles ajudam quando a gente precisa.”, conta José Francisco da Silva, que todos conhecem como França, o garçom mais antigo da casa, na ativa desde 1993. É sabido que a Merça paga os garçons além da média na região. “Aqui é dos poucos lugares que paga 10%. Todo dia, no encerramento do turno, a gente faz o rateio”, explica França, que diz ter “50 e poucos” anos de idade. Segundo ele, o segredo pelo sucesso e longevidade da casa são as pessoas. “Os patrões são gente boa, até saem com a gente. Também gosto da freguesia, o pessoal é muito legal”, resume.
Aniversário de 50 anos
Mercearia São Pedro
Rua Rodésia, 34, Vila Madalena
(11) 3815-7200
Sábado (28), a partir das 16h
Grátis
Programação:
17h: Fábrica de Animais - com Fernanda D’Umbra (blues, rock e soul)
18h: Giba Byblos (blues)
19h: André Beleza (rock)
20h: Saco de Ratos – com Mário Bortolotto (blues)
Créditos
Imagem principal: Divulgação