A grandeza do detalhe
As mãos do cirurgião José Luiz Pistelli expressam algo entre a arte e a precisão absoluta. Combinados, esses atributos exaltam o humano no médico e em seus pacientes
O ortopedista José Luiz Pistelli, 76 anos, ouve com atenção as queixas de quem visita seu consultório no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, enquanto segura uma caneta bico de pena e desenha ossos, músculos e cartilagens nas fichas pessoais de cada um de seus pacientes. Desde os 13 anos Pistelli se dedica a desenhos anatômicos e incorporou a prática a sua rotina médica. “Antes de operar, crio intimidade com os procedimentos no papel. Com a caneta, imagino os caminhos que depois vou refazer na sala de cirurgia”, explica.
Para Pistelli, medicina e arte se encontram na beleza dos detalhes. “As mãos são a parte do corpo mais cheia de detalhes, de pequenos ossos, de variações de movimentos, é o membro mais difícil de desenhar”, responde o médico, quando perguntado sobre a razão de ter se especializado em cirurgias nessa parte do corpo. Um de seus desenhos favoritos é a mão vitruviana, inspirada na obra de Da Vinci, em que investiga a simetria do corpo humano – a ilustração está na contracapa do livro O lápis e o bisturi, lançado por ele em 2013. “Os mestres do desenho italiano são grande influência para mim. Muita gente não entende por que tenho tantos livros de arte em um consultório médico, mas é dali que eu tiro inspiração para trabalhar.”
O cirurgião acredita que a arte o aproxima de seus pacientes. “Eu me comunico através dos desenhos, consigo tranquilizar alguém que está com medo de uma cirurgia. Quase todos me pedem para levar para casa as ilustrações que faço durante as consultas.” Sempre que recebe alguém, ele escreve à mão o nome da pessoa em seus papéis. “Ali já se cria uma conexão, não é a mesma coisa que digitar teclas no computador”, conclui. Formado pela Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, ele enxerga a medicina como um aprendizado diário.
As histórias que marcaram seus mais de 40 anos de medicina, Pistelli reflete ao lembrar-se de um adolescente que, depois de um acidente de carro, teve uma das mãos quase decepada. A equipe médica precisou reconstruir todas as ligações entre mão e braço, até que o sangue voltasse a circular ali. “Mais de 15 anos depois, saindo do hospital, um homem me chamou pelo nome, não reconheci imediatamente, ele estendeu a mão pra mim. Apertei aquela mão e lembrei-me de quando o vi pela primeira vez”, conta. “Ele me disse que ia ser pai, que estava feliz porque sabia que poderia segurar o filho e me agradeceu por isso”, conta. “É essa troca que garante meu entusiasmo pela vida.”
Escrita com a caligrafia caprichada da qual não abre mão, contrariando a fama dos garranchos típicos dos médicos, uma frase em um cartão de papel o acompanha em todas as cirurgias: “Deus não quer que façamos coisas extraordinárias, ele quer que façamos coisas simples extraordinariamente bem-feitas”. Esse pensamento vai ao encontro do que Pistelli acredita: “É o que eu digo, a importância está nos detalhes”.
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Trip. Como surgiu o seu interesse pela arte?
José Luiz Pistelli. Meu pai era alfaiate, um homem muito ligado aos detalhes, aos protocolos. Aprendi com ele a ser observador. Nos tempos do colégio, no Dante Alighieri, tive um professor de arte que me estimulou a desenhar anatomia. Entendi que aquela era uma maneira de registrar minhas observações, que cada vez mais se voltavam para a postura e os movimentos humanos. Anos mais tarde, já na faculdade de medicina, outro professor me levou à Bienal de São Paulo. Descobri o surrealismo, o impressionismo, os estudos de Brecheret sobre volumes corporais e anatomia. Me apaixonei. Quando fazíamos a dissecação de corpos em laboratório, eu aproveitava para desenhar tudo e consultava esses desenhos depois, me aprimorando cada vez mais.
Quando entendeu que queria ser médico? A cozinha da minha mãe foi o primeiro espaço onde fui incentivado. Ela cortava peixes e me mostrava as anatomias. Lembro de quando ela me ensinava como os tendões das galinhas articulavam os movimentos dos dedos. Com 9 anos, eu já sabia que queria ser médico.
Desenhar interfere na sua atuação como médico? Sim, o desenho acompanha meu raciocínio cirúrgico. Eu dialogo com as lesões que vou tratar por meio deles. Fazer isso me permite operar com mais liberdade. É também um estudo das proporções, dimensões, volumes e perspectivas da anatomia humana, me proporciona um conhecimento íntimo dos corpos.
Sendo tão ligado aos fazeres manuais, como você lida com a tecnologia? Não deixo de usá-la, mas considero o desenho a arte definitiva e ele está sendo trocado pela utilização desmesurada dos tablets, por exemplo. Só entender o corpo via tecnologia é como deixar de aprender uma língua, perder uma via de comunicação. É estar em uma imensa cidade e não saber reconhecer as ruas. Até mesmo a caligrafia, que considero uma meditação, está sendo mecanizada. Mas tenho certeza de que, por conta das inovações tecnológicas, cada vez mais operações serão menos invasivas, com resultados melhores. As pesquisas estão muito avançadas em países como Estados Unidos e Japão. Mas a consciência corporal é fundamental.
Você acha que essa utilização desmesurada pode atrapalhar o contato entre paciente e médico? O exercício da minha profissão não pode ser mecânico. Acho que os desenhos são uma ferramenta para criar proximidade com os pacientes. E isso é importante para que o processo cirúrgico seja bem-sucedido. Cada consulta é uma entrevista, busco ter intimidade, entender a complexidade da vida daquele paciente. É comum que ele esteja solicitando mais apoio humano do que ortopédico. Eu realmente encaro como uma missão.
Em 2013, você lançou um livro com seus desenhos. Como foi isso? Eu tinha muitos desenhos guardados e queria que eles circulassem. Ainda tenho, guardo aqui uma pasta cheia deles, de novos estudos. Tenho gostado muito de desenhar posturas humanas. Uso bastante a caneta bico de pena, mas também o lápis 8B e giz pastel.
E você vai publicar essa nova produção? Sim, pretendo. Não sei ainda quando, mas estou planejando um segundo livro.
O que mais te empolga quando está desenhando? Fico muito empolgado quando percebo que estou acertando em cheio nas dimensões. Outro dia desenhei uma bacia com as dimensões precisas. É uma alegria. Qualquer tempo livre que tenho dedico ao desenho. Quer dizer, quando estou trabalhando estou desenhando também. Quando vejo um papel de boa qualidade, guardo para desenhar. Esses cartões que recebo todos os dias no centro cirúrgico, que são descartáveis, não consigo jogar fora. Tenho vontade de desenhar em todos.
Seus filhos também têm essa relação próxima com desenho? Bom, Mariana é artista plástica e André, publicitário. São muito ligados ao universo artístico. E são uma fonte de inspiração enorme para mim. Hoje [26/7] mesmo é aniversário de 40 anos do André. Estava pensando nisso, em como o tempo passa rápido, e acabei fazendo um desenho para dar de presente para ele.
Créditos
Imagem principal: Gabo Morales