O celular não é a cura para a solidão da quarentena
Para o psicanalista Marcelo Veras, estamos viciados na ideia de que estar só é um fracasso social. Encarar a solidão como algo criativo é o primeiro passo para não transformar a vida em um eterno chat
O Brasil é o terceiro no ranking de países que mais usam a internet e as redes sociais. E isso não é pouco: passamos, em média, 9 horas e 17 minutos por dia conectados, de acordo com o Digital 2020 Global Overview Report, realizado pelas empresas We are social e Hootsuite a partir dos dados de seis relatórios sobre o tema feitos ao redor do mundo. Se ficar horas olhando para telas já fazia parte do cotidiano de muita gente, com a quarentena imposta pela epidemia da Covid-19, parece ser o único jeito de se livrar do tédio e da solidão.
"Agora, ninguém solta o chat de ninguém", brinca Marcelo Veras, psicanalista da Associação Mundial de Psicanálise, psiquiatra da Universidade Federal da Bahia e autor do livro Selfie, logo existo (2018). Para ele, é natural sentir maior necessidade de estar em contato com familiares, amigos e colegas de trabalho, mas é preciso se atentar para as armadilhas da hiperconexão, estando ou não de quarentena: “Acordamos e a primeira coisa que fazemos é olhar a conversa que não acabamos quando fomos dormir. A vida se tornou um eterno chat e isso leva à exaustão mental”.
A boa notícia é que o isolamento físico – para quem tem o privilégio de ficar em casa – vem provocando mudanças positivas na forma como usamos as redes sociais. “Parece que, finalmente, as pessoas atravessaram a tela e estão indo em busca de encontros”, reflete o psicanalista. Batemos um papo com Marcelo Veras, que falou sobre os impactos da hiperconexão para a saúde mental e deu dicas de como melhorar nossa relação com as redes em tempos de coronavírus.
Trip. A quarentena vem mudando a forma como as pessoas estão usando as redes sociais?
Marcelo Veras. As mídias sociais têm sido um portal para que as pessoas “saiam” de casa e não apenas para colocar a própria imagem no espelho. Basta observar como despencou a quantidade de selfies. As pessoas estão se mostrando mais normalmente, sem todos aqueles filtros e hiperproduções, porque os valores estão sendo repensados. É mais o que estão fazendo no dia a dia, as receitas, os memes. Para mim, é uma grande reinvenção da intimidade, tanto on-line, com as pessoas descobrindo novos usos para as redes sociais, quanto off-line, com a maior quantidade de tempo para ficar em casa.
Em sua palestra no TEDx, você diz que as redes sociais alimentam a ideia de “solidão compartilhada”, de que estamos conectados, mas de forma superficial. Pelo jeito isso está mudando. Agora, estamos vendo a formação de uma comunidade virtual. Parece que, finalmente, as pessoas atravessaram a tela e estão indo em busca de encontros. As redes sociais, que aparentemente serviam para comunicar, só estavam trancando as pessoas em seus próprios casulos do ego. A gente tira mil fotos e escolhe a mais bonitona pra postar, coloca um filtro... Mas também somos as mil fotos que não postamos. Apesar da mudança, seria ingênuo pensar que a ideia de solidão compartilhada desapareceu. As coisas andam juntas.
Existem vários aplicativos que permitem fazer reuniões, dates e até festas por videochamada. Há quem relate um certo sentimento de vazio depois desse tipo de encontro. Por quê? A videochamada não substitui a presença. Tem uma palavra que ainda estão usando pouco, mas vai começar a aparecer muito, que é saudade. No fundo, nós estávamos muito mimados com o mundo virtual, podendo nos relacionar, comprar, tudo pelo smartphone, sem conviver com experiências de falta. Talvez essa crise tenha efeitos positivos e as pessoas voltem a dar mais valor pra presença real.
Desgrudar do WhatsApp está sendo mais difícil do que nunca. De onde vem essa necessidade de estar conectado o tempo inteiro e o que muda com o confinamento? Agora, ninguém solta o chat de ninguém. Com a pandemia, é normal que as pessoas se sintam ameaçadas e fiquem mais tempo on-line, mas a hiperconectividade tem um lado muito ruim, que revela nossa dificuldade cada vez maior de lidar com a solidão. Estamos viciados na ideia de que estar só é um fracasso social, que o bem viver e a criação tem que ser com o outro. Está cada vez mais difícil encarar a solidão como algo criativo, que pode gerar prazer. Acordamos e a primeira coisa que fazemos é olhar a conversa que não acabamos quando fomos dormir. A vida se tornou um eterno chat e isso leva à exaustão mental.
E solidão não é a mesma coisa que individualismo, certo? São coisas completamente diferentes. O individualismo é achar que somos autossuficientes em tudo, é não estar nem aí para o outro e se preocupar só com o próprio ego. Enquanto que a solidão criativa nos faz entender como vamos nos recolocar no mundo, criar soluções, atuar no coletivo. Dá pra brincar dizendo que o individualismo é estar mal acompanhado por si mesmo, já a solidão criativa é fazer de si mesmo uma ótima companhia.
E quais os efeitos colaterais ligados ao consumo frenético de notícias sobre a pandemia? O hiperconectado é o sujeito que abre inúmeros portais ao mesmo tempo, pois não suporta estar consigo mesmo. Existe um componente aditivo. Se nada mudou da notícia das 11h pra notícia das 12h, por que as pessoas ficam acompanhando? Não é mais pela busca de informação. Além disso, como a imprensa hoje é globalizada, ficar capturado por essas notícias só aumenta o desespero, a sensação de impotência. É muito mais interessante, por exemplo, que a pessoa acesse notícias sobre sua cidade pela manhã, que é o que mais importa e, uma vez por dia, acesse notícias internacionais para ter noção do macro. Percebo que as pessoas estão sendo absolutamente engolidas pelas notícias "macro" e isso está relacionado com a depressão. É como naquele filme Melancolia, do [diretor] Lars Von Trier, em que as personagens ficam vendo o cometa que está chegando para acabar com a Terra e vão entrando em desespero.
Qual seu conselho para quem não estava acostumado a fazer home office e está com dificuldades de se desligar do trabalho, já que ele está à distância de um clique? É necessário ter um momento de desligamento. Existem formas de configurar o smartphone, por exemplo, para que só os seus contatos favoritos consigam falar com você. Os favoritos têm que ser o amor da sua vida, seus parentes, os amigos de farra. Claro que, em termos de legislação trabalhista, tudo vai ter que ser revisto no momento em que o home office deixar de ser exceção e passar a ser a regra.
Como evitar a cilada da hiperconexão na quarentena, pelo psicanalista Marcelo Veras
1 – “Tente encarar a solidão como algo criativo, que pode gerar prazer. Estar só não é sinônimo de fracasso social”
2 – “Ao invés de ler mais do mesmo o dia inteiro e ficar acompanhando o número de mortos pela doença, descubra bons canais de reflexão sobre o tema”
3 – “Dedique um tempo para escolher boas séries e filmes”
4 – “Se está difícil se desligar do trabalho, configure seu smartphone para que só os seus contatos favoritos consigam falar com você depois certo horário”
5 – “Menos WhatsApp e mais sonhos. A desconexão uma hora antes de dormir ajuda a sonhar mais. Mesmo os pesadelos nos ajudam a tratar angústias”
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