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Besta Fera, novo disco de Jards Macalé, carrega as cenas experimentais do Rio e de São Paulo

por alexandre matias em

Por mais que o lançamento do primeiro disco de inéditas de Jards Macalé em 20 anos já seja uma notícia, a chegada deste Besta Fera também traz uma outra novidade: as cenas experimentais do Rio e de São Paulo firmam uma aproximação a partir dos produtores do disco. Os paulistas Romulo Fróes, Kiko Dinucci e o carioca Thomas Harres foram centrais na transformação do baú de rascunhos do velho sambista num disco tão emblemático para este ano —  consolidando uma conexão que já vem acontecendo há tempos.

Dá para focar esta aproximação em dois polos principais, o Clube da Encruza e a Audio Rebel. O primeiro é o título dado a um grupo de artistas paulistas que reúne o trio Metá Metá (em que Kiko Dinucci toca guitarra, ao lado da vocalista Juçara Marçal e do saxofonista Thiago França), os cantores e compositores Romulo Fróes e Rodrigo Campos e conta com agregados de luxo como Marcelo Cabral, Tulipa Ruiz e Ná Ozzetti. A segunda é uma já clássica —  e minúscula —  casa de shows no bairro carioca de Botafogo, que funciona como principal centro de experimentação musical da cena do Rio de Janeiro, reunindo diferentes experimentalistas como Tantão e os Fita, Rabotnik, Chinese Cookie Poets, Bemônio, Cadu Tenório, Thiago Nassif, Ava Rocha e Negro Leo (os três últimos já se mudaram para São Paulo). A Audio Rebel também é um estúdio e seu lado experimental deu origem à noite Quintavant, que virou selo e hoje é um dos principais motores desta cena, além de atrair veteranos como Arto Lindsay e o próprio Macalé.

A besta fera Jards Macalé reúne em torno de si expoentes da música experimental de São Paulo e do Rio de Janeiro - Crédito: Acervo Trip

Mas por mais que as naturezas dos experimentos paulista e carioca pareçam díspares, a aproximação do Clube da Encruza com a Audio Rebel vem esquentando há anos. "Desde sempre me identifiquei com a música produzida no Rio, teve até uma época que me identificava mais com a cena carioca do que com a de São Paulo. Já escrevi sobre os trabalhos do [trio] +2 e da Nina Becker, por exemplo, e cheguei a fazer shows com músicos cariocas como Domenico Lancellotti, Kassin e Gabriel Bubu, do Do Amor", lembra o paulista Romulo Fróes. "Mas acho que o acontecimento mais importante para cena carioca foi a Audio Rebel", continua o compositor paulistano. "A programação —  melhor seria dizer missão —  da Audio mudou não apenas a cena do Rio, mas, arrisco a dizer, de toda a música brasileira. Foi lá que fui apresentado a artistas incríveis como Negro Leo, Ava Rocha e o próprio Thomas Harres."

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Thomas, nascido no Rio e hoje morador de São Paulo, lembra desta aproximação do ponto de vista carioca, no início desta década. "Conheci o Kiko na [casa de shows] Comuna, no Rio. Foi a primeira vez que o vi tocando seu violão sujo, na mesma época que eu e Pedro [Dantas] começamos a tocar com Jards. Lembro de perceber uma conexão profunda entre os violões de cada um deles.” A partir dali, nasceu uma amizade, além de várias parcerias.  

Thomas Harres comanda a mesa de som aos olhos de Kiko Dinucci (de toca) - Crédito: Renato Mangoli/Divulgação

E desde os primeiros dias desta conexão, o velho Macau já era assunto nas conversas das duas turmas. "Há muitos anos, Thomas, que já era da banda do Macalé, conversava comigo sobre fazer um disco com ele, com a gente produzindo um repertório inédito. Eu dizia que seria um sonho, que podia contar comigo sob qualquer condição, mas deixava na conta das conversas hipotéticas”, conta Romulo. E, como lembra Kiko, "Jards tem muita gana de tocar com gente nova".

Samba estranho
Thomas tem vívida a memória de seu primeiro encontro com Jards, a fagulha que deu origem à Besta Fera. "Fui convidado para um jantar na casa de Ava Rocha e, de repente, adentra no portão Jards Macalé. Em determinado momento, percebo que o som estava alto ao lado do Macalé, atravessei a sala para diminuir o volume. Ele olhou pra mim e disse: 'Você atravessou a sala só pra abaixar o volume?'. Eu, já achando que ia tomar um esporro daqueles, disse que sim. Ele olhou pra mim no fundo dos olhos com uma cara de psicopata e falou: 'Tá contratado'. E assim fiquei seis anos tocando com ele."

"A primeira vez que ouvi falar no Jards foi no começo dos anos 1990, no programa Metrópolis [da TV Cultura]. Aquele cara tocando samba de um jeito estranho, batendo forte e dando uns esporros nas cordas, e a mulher da matéria dizendo que ele era o 'maldito da MPB'. Aquilo me deixou interessado", lembra Kiko. "Logo depois, ouvi o Itamar Assumpção falando dele também. Comecei a ir atrás, comprar discos, ir em shows. Fui conhecer o Jards pessoalmente em 2012, quando o Metá Metá participou de um tributo ao primeiro disco dele [Jards Macalé, de 1972]. Mostraram pra ele a versão que a gente fez para o "Let's Play That" [música do álbum homônimo de Macalé, lançado em 1983], ele gostou e daí começou uma amizade. Ele chamou o Metá pra participar de um show dele."

A luxuosa edição em vinil de "Besta Fera", primeiro disco de inéditas de Jards em 20 anos - Crédito: Divulgação

Besta Fera começou a ganhar forma em 2015, quando Thomas foi instigado a realizar um evento em torno de Jards na Audio Rebel. A ideia era fazer uma semana de shows, apelidado de Macalândia, em que ele desconstruiria seus discos, ao lado de nomes da cena experimental carioca e paulistana, como Ava Rocha, Chinese Cookie Poets, Cadu Tenório, além do Metá e de Thomas. “Foram dias inesquecíveis e emocionantes, com lotação máxima. Vimos Macalé em sua potência criadora e com liberdade absoluta. Uma das sementes do Besta Fera foi plantada ali. Apesar de não ter nada inédito nesse projeto, as estéticas e ideias ali presentes instigaram o Jards."

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Kiko completa: "Quando eu e o Thomas começamos a pensar no disco, de cara a gente pensou no álbum de 1972, que voltasse ao Jards mais solto, mais livre, uma banda que desse conta de acompanhar a loucura dele", emenda Kiko. "Pra mim é bizarro, eu sou muito fã, ouvi muito disco do cara, por muito tempo e, de repente, eu tô trabalhando na produção”.

Kiko e Jards durante a gravação de "Besta Fera" - Crédito: Renato Mangoli/Divulgação

O trio pediu então a diversos compositores para enviarem letras e ideias. “Romulo foi quem direcionou e organizou tudo. Depois ter acumulado uma pasta enorme com letras, eu, Kiko e Macalé fomos para sua casa em Penedo [em Itatiaia, RJ] ter ideias e fazer tudo do zero”, conta Thomas. “Tinham dois violões e uma bateria no quintal da casa onde acordávamos. Fazíamos um café e começava o processo de criação livre. Páginas e páginas de letras e composições, fomos experimentando melodias, edições de letras e ideias. De maneira totalmente aleatória e intuitiva, foram selecionadas as letras e, assim, efetivadas as parcerias.”

Na lista de parcerias estão Tim Bernardes (O Terno), Rodrigo Campos e Ava Rocha. "Ela mandou centenas de letras, mas Macalé não se conectou com nenhuma", conta Thomas. "Nas últimas semanas de 2017, quando já estávamos organizando a ida para Penedo, Ava mandou a destruidora 'Limite', na minha opinião, a faixa mais linda e forte do disco, com uma letra que fala com alguém à beira da morte. Mal sabia ela que, meses depois, Jards seria internado e ficaria em coma induzido por uma semana, quase à beira do precipício." O baterista se refere à infecção pulmonar que fez Macalé ser internado no início do ano passado.

Recuperado, Jards vem apresentando Besta Fera desde março entre Rio e São Paulo. “Nem é preciso explicar o quanto fui afetado e o tamanho do orgulho que sinto por esta experiência", diz Romulo.

Romulo Fróes durante as gravações de "Besta Fera" - Crédito: Renato Mangoli/Divulgação

Thomas resume o contraste entre as duas cenas musicais que giram em torno de Besta Fera. "No Rio, existe uma necessidade terrível da fuga da beleza inebriante proporcionada a uma determinada fatia social. Acredito que, de alguma forma, a cena experimental busca essa sujeira ruidosa e transcendental numa fuga ou busca de uma essência carioca menos comportada ou parnasiana. Existe algo sombrio no Rio que muitas pessoas não enxergam, ou preferem não enxergar, por conta de toda a sua desigualdade, racismo, ódio, religião, guerra. Uma cidade que sangra e sorri”, diz. “Já em São Paulo, enxergo o oposto: existe uma busca incessante pelas possibilidades da beleza do cinza da calçada, um esforço poético e estético na busca dessa beleza subjetiva. São Paulo faz as pessoas se unirem em torno de projetos e monumentos que possam embelezar a vida, do encontro desse Brasil tão plural. Emerge das cinzas do pó e dos ruídos industriais. De uma forma mais natural, esses ruídos já estão no seu cotidiano e o lirismo é a fuga desse lugar. Essas reflexões são especificamente sobre essa cena da qual participo mais ativamente e pessoalmente. A união dessas duas forças poéticas estéticas é algo muito forte e infinito, e muitos artistas estão buscando esse entrelaçamento, como a Ava Rocha fez no disco Trança, em que mais de 30 artistas e músicos de São Paulo e Rio participaram."

Créditos

Imagem principal: Arte de Heitor Loureiro

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