Nelson Motta
A vida e obra de um jornalista que cruzou a fronteira entre a mídia e os artistas da MPB
Em quatro décadas vividas nos lugares certos e nas horas certas, Nelson Motta construiu uma obra invejável na música, na literatura, no jornalismo e na televisão. Aos 67 anos, ele recebe a Trip em seu apartamento na “província de Ipanema” para relembrar as amizades, os namoros, as alianças e os dissabores de quem afirma nunca ter perdido um amigo para ganhar uma manchete
Dia desses, Nelson Motta virou-se para aquela que brinca ser “a mulher da minha vida” e disse: “Olha, Mari, o fim que nós tivemos! Você, babá de gato; eu, massagista de gato”. Mari é Maria de Jesus, empregada que o acompanha há 25 anos e pelo menos três casamentos. O felino a quem obedece por amor é Max, um pelo curto brasileiro dono de penetrantes olhos amarelos – “com uma listra verde”, faz questão de detalhar. É com ele que o homem de letras e música divide o apartamento na rua Prudente de Morais, atrás do Country Club carioca, com vista para o mar. Os dois dormem juntos na mesma cama, rolam pelo chão, correm pela sala... “Gatos têm uns cem tipos de miados diferentes. Eu já atendo a uns 20 comandos e estou sempre aprendendo mais. Acho que o Max deve me enxergar como uma pessoa doméstica, carinhosa, sossegada e razoavelmente paciente. É o que eu busco ser.”
Aos 67 anos, o ex-cabeludo que vendeu juventude ao longo de tantas décadas, eterno Nelsinho, mora só e pouco convive com os inúmeros amigos que colecionou. Pode parecer irônico que alguém cuja trajetória – pessoal e profissional – sempre foi pautada por um espírito conciliador e gregário chegue a essa idade assim. Mas está tudo bem, assegura, com o velho sorrisão que lembra o sedutor bichano criado por Lewis Carroll para Alice no País das Maravilhas. “Hoje eu tenho tantos amigos que não tenho nenhum. Assim, de conversar todo dia, não tenho. Porque tenho três filhas, três netos, tenho namorada firme, pai e mãe vivos – os dois com 92 anos!” O relacionamento com a publicitária pernambucana Paula Pessoa é a distância, alimentado pelo que compara a uma sucessão de viagens de lua de mel. “É só alegria.”
A família, especialmente o papel de avô, preenche de afeto os fins de semana. Porém, o dia a dia, iniciado às sete da manhã, após um miado de despertar exigindo água, comida ou algum capricho, é direto em frente ao computador, escrevendo, com poucas interrupções, até a hora do Jornal Nacional. Depois da pausa para jantar e tomar banho, vem a novela Avenida Brasil, outra das escravidões voluntárias de Nelson Motta. “Quando saio, deixo gravando no HD. Quando estou viajando, corro para assistir no tablet: tenho assinatura da Globo.com só pra isso. São aulas de dramaturgia que ganho do João Emanuel Carneiro.”
Nos últimos dez anos, o jornalista carioca nascido em São Paulo lançou três romances pop – O canto da sereia (2002), Bandidos e mocinhas (2004) e Ao som do mar e à luz do céu profundo (2006) – e um livro de contos, Força estranha (2010), o mais elogiado e mais vendido (cerca de 20 mil cópias, segundo a editora Objetiva) de seus esforços como ficcionista. Em 2007, Vale tudo – O som e a fúria de Tim Maia já saiu como blockbuster (vendas hoje na casa dos 140 mil exemplares), superando fartamente o best-seller autobiográfico Noites tropicais (de 2000, 35 mil exemplares vendidos).
Se a vida vem em ondas, como o mar, conforme aprendeu com um dos amigos e mestres que cruzaram seu caminho, Vinicius de Moraes (o verso de “Como uma onda” foi extraído do poema “Dia da criação”), Nelson soube surfar a onda do brother Tim. Já tinha esperado por ela quase uma década, aguardando a definição do herdeiro com quem deveria negociar. E foi com espírito inquieto que se aventurou a escrever para teatro pela primeira vez. O resultado superou todas as expectativas: o musical Tim Maia – Vale tudo estreou em agosto de 2011 e já foi visto por 120 mil pessoas. No fim do mês seguinte estava saindo A primavera do dragão, retrato da juventude de outro grande amigo (e também gigante da cultura brasileira) de Nelson, Glauber Rocha.
A produtividade impressiona, levando-se em conta que ele também grava uma coluna para o Jornal da Globo, escreve artigos publicados nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, e faz curadorias musicais. Caseirão, o dono (ou seria escravo?) do Max não tem carro há muitos anos e parece concentrar esforços nas teclas do computador. A filha Nina diz que ele não mora no Rio de Janeiro, mora em Ipanema. “É verdade, eu faço tudo entre a praça General Osório e o Jardim de Alá. Dentista, médico, loja, supermercado, livraria, cinema... Gosto dessa vida de província. Só ando de táxi quando tenho que visitar meus pais na Gávea ou, muito de vez em quando, ir na TV Globo, no Jardim Botânico. Projac, só duas vezes por ano [risos].”
Com o velho parceiro Euclydes Marinho, foi coautor (ao lado de Guilherme Fiuza e Denise Bandeira) da minissérie O brado retumbante, exibida em janeiro pela TV Globo e agora lançada em DVD. E a essa altura da vida ainda arranjou outro trabalho inédito: está atuando como roteirista de cinema num filme biográfico (dirigido por Hugo Prata) sobre Elis Regina, com quem viveu um curto, porém intenso, romance, quando ela ainda estava casada com Ronaldo Bôscoli. Seu amigo, também. “Eu falo pra Paula, minha namorada: o estado que eu amo é esse da paz em movimento. A paz não é um sentimento de parado no tempo, estagnado. Não, tem uma dinâmica interna, você vai pela vida e tem amor, tem amizade, tem aventura, viagem, surpresa, sexo, alegria, dinheiro... Tem tudo nessa paz.” Atento, ali do lado, o gato Max parece concordar dizendo com os olhos: “Falou, amizade...”.
“Eu fui muito ajudado a vida toda. E procuro ajudar desde o mendigo, a quem você dá um trocado sabendo que ele vai beber cachaça, até os músicos, jornalistas e produtores”
Você disse que jamais perdeu um amigo para publicar uma notícia. Como vê a escola que prega que o bom jornalista cultural não pode ser amigo dos artistas?
Eu me lembro quando era um reporterzinho de cultura, com 21 anos, começando no Jornal do Brasil, e fui chamado para fazer uma coluna jovem no Última hora, em 1966. Eu logo fiquei amicíssimo do Ronaldo Bôscoli, que me aconselhava: “Você tem que ser temido”. Mas jamais entrei nessa. Pelo contrário: as melhores coisas que consegui no jornalismo – entrevistas, informações apuradas em reportagem – foram todas me colocando como amigo, as pessoas confiando em mim e passando exclusivas. O Vale tudo, sobre o Tim Maia, por exemplo, só foi ajudado pelo fato de eu ter sido amigo dele. Quando saiu o livro, veio uma jornalistinha dessas: “Você não acha que uma biografia de um amigo pode ficar meio chapa-branca?”. Eu falei: “Pô, minha filha, o Tim Maia era tarja preta. Impossível contar a vida dele e ser chapa-branca”. O que pode haver de pior sobre o Tim que não está no livro? É claro que sei de muitos segredos dos artistas que não vou sair contando por aí. Eu tenho uma trajetória de mais de 40 anos. O Caetano já falou que eu sou o único crítico musical que fez carreira sem falar mal das pessoas. Isso é uma atitude, uma coisa política. Quando ganhei coluna no Globo, dada pelo Evandro Carlos de Andrade, em 1973, eu pensei: “Pô, vou usar esse espaço num jornal conservador pra ser uma janela de liberdade. Não vou perder tempo falando mal de shows que não vão se repetir”. Jards Macalé, Luiz Melodia e Jorge Mautner, os chamados malditos, tinham ali o quintal deles. Isso é um reflexo também da minha vida. Eu nunca lutei nem por poder nem por dinheiro. Sinceramente... Quem me conhece sabe, nunca foi a minha onda. Sempre lutei por independência. Esse foi meu caminho, a minha liberdade como valor mais importante. Detesto liderar, ter que assumir responsabilidades em nome dos outros... Sou individualista demais pra essas coisas.
Mas, nessa busca por liberdade, é inevitável desagradar alguém e eventualmente virar persona non grata, não?
No meu caso, não aconteceu. Eu nunca fui crítico profissional, o cara que é obrigado a emitir opinião e avaliação sobre o trabalho de alguém. Como faziam Tárik de Souza, Ezequiel Neves, Ana Maria Bahiana e outros caras da minha geração. Nunca tive esse rabo de foguete, que é foda, obriga a assumir posição, dizer se é bom ou ruim. Na coluna eu só falava do que eu gostava. Esse foi meu impulso, ignorar o que eu não gostava.
Mas muito depois, no começo dos anos 1990, em entrevistas, você bateu firme na música sertaneja que fazia sucesso. Até hoje há artistas e fãs do gênero ressentidos com você.
O tempo passou pra mim, não sei se pra eles. Hoje eu tenho outra atitude. O sertanejo pra mim está associado com a trilha dos anos Collor. Aos meus ouvidos, foi o pior momento político, ético, econômico, social da história recente do país. E a hegemonia do sertanejo foi o reflexo musical – e ruim – disso tudo. A história anda. Não é mais uma situação hegemônica e opressora como nos anos 1990. Fiz uma coluna televisiva recentemente sobre o assunto.
Como avalia o sertanejo universitário, que alguns creem ser o novo pop brasileiro?
Eu não conheço. Ouvi a Paulinha Fernandes, achei ótima, numa outra onda, mais pop na verdade. As duplas, com aqueles vocais em terças, musicalmente são um dos bodes da minha geração, a geração da bossa nova.
Você está escrevendo o roteiro de um filme sobre a Elis. Como é transformar em personagem alguém com quem você viveu um romance?
Eu adorava Elis como artista, como pessoa e como mulher. Os filhos sabem do respeito que tenho por ela. Me dou bem com Pedro e Maria Rita, tenho o João Marcello como meu afilhado moral. Claro, Elis não era santa. Quem conviveu sabe. Mas agora eu li tudo sobre ela e, quanto mais leio, menos acho que a conheço. É uma personalidade muito complexa mesmo. A pesquisa abala todas as certezas, pelo menos muitas delas... E tudo nesse trabalho depende do diretor [Hugo Prata], que é quem tem a decisão final.
Como é a sua amizade com mulheres com quem você foi casado?
Com a Marília Pêra me dou muito bem. Com a Adriana Penna [a mais recente ex] também, ela é minha amiga. Com a Costanza Pascolato eu não falo, nem quero entrar em detalhes. Amizade pós-relacionamento é difícil. Com a Marília realmente é outra coisa, muitos anos se passaram – nossa filha mais nova, Nina, tem 32, pra você ver. Mas com quem eu me dou melhor hoje é com a Mônica Silveira, minha primeira mulher, que é mãe da minha filha Joana e avó dos meus netos. Nós nos encontramos como avós. Ela é uma avó genial. Somos bem próximos, viajamos juntos, ela é amiga da minha mulher atual, tá tudo bem ali.
Que novidades na música têm empolgado você?
Olha, essa turma do Pará, que eu já acompanho há um tempo... O Hermano Vianna foi quem me chamou a atenção, há uns três anos. Depois fui a Belém e conheci tudo aquilo – Gang do Eletro, Felipe Cordeiro, Lia Sophia, o Pio Lobato, um guitarrista padrão Lúcio Maia, monstro! –, voltei várias vezes. Vou levar a Gaby pra cantar em Londres na Olimpíada. Acho uma cantora fenomenal – ela esteve aqui em casa ontem mesmo, me trouxe uns bombons de cupuaçu. O Pará tem músicos incríveis, levadas diferentes, ritmos variados... Eu já tô de saco cheio de ouvir essas coisas baianas e cariocas. E eles têm um frescor, uma vitalidade – ocasionalmente com uma eletrônica violenta no que esse produtor e DJ, o Waldo Squash, mete a mão.
“Posso ficar horas discutindo um assunto com o Cacá Diegues, com o Caetano ou com o Zuenir Ventura. Aprendo muito assim. Mas não vou entrar em bate-boca com um desconhecido”
Namorando uma pernambucana há mais de um ano, a Bahia deixou de ser o seu segundo lar?
Não, a Bahia continua sendo casa pra mim. Porque a Paula [Pessoa] é diretora de cinema, trabalha com publicidade e com campanha política, então viaja muito. Vem mais ao Rio do que eu vou a Recife. Mas muitas vezes a gente combina de encontrar no meio do caminho: adivinha onde? Salvador... Uma maravilha isso. Eu digo que a gente vive numa sucessão de luas de mel: passa uma semana lá, depois encontra três dias em São Paulo, vamos a Lisboa, ou a Paris, é só alegria.
Você disse que preferiu não escrever sobre os últimos anos do Glauber, o tempo em que você foi vizinho dele. Era uma convivência complicada? Era difícil ser amigo dele?
Não, isso foi mais pela saúde, pelos problemas que ele sofreu. A amizade era muito fácil, porque eu me colocava numa condição de discípulo do Glauber. Claro, eu tinha liberdade pra discutir com ele qualquer assunto. Mas não sou idiota, não sou burro, eu queria aprender com o Glauber. Com todas as barbaridades que o Glauber falava! Que também eram muitas. Mas pra que eu iria contestar, entrar em choque? Ele era incrível. Eu dizia: “Tô pensando em escrever um roteiro sobre esse assunto aqui”. E ele [incorpora voz e sotaque baiano do cineasta]: “Roteiro???!! Ró-teirista é a coisa mais mé-díocre que existe. Se o diretor fizer pior do que você espera, vai lhe deixar puto. Se melhorar o que você fez também vai lhe deixar puto. Tem que dirigir, porra! O filme é do di-ré-tor!”. E eu: “Mas, Glauber...”. E ele emendava horas de aula: “O quê? Sente aí, presta atenção: como montar a cena. Monte a cena como se fosse um quadro de Degas. Coloque os atores assim, assado...”. E tinha também o lado de eu trazer as notícias pra ele. O Glauber era fofoqueiro, queria saber o que eu trazia dos meios em que circulava: teatro, cinema, TV, ambiente literário... Eu fiz o livro [A primavera do dragão, editora Objetiva, 2011] para homenagear o meu amigo. E também para descobrir coisas sobre ele, porque o conheci pessoalmente já no fim. E fico feliz que os filhos dele amaram, a mãe, os netos... É um livro de amigo.
Mas, por conta de alguns erros apontados logo à época do lançamento, você chegou a ser chamado de “mentirógrafo”. Como lida com isso?
Depende de onde vem o insulto, de quem fala... Escrevi uma carta-resposta a tudo isso reconhecendo esses pequenos erros factuais e pontuais, dos quais o mais grave foi ter trocado o nome de um personagem de terceiro ou quarto escalão, o Bananeira [o poeta e historiador Fernando Rocha Peres é tratado pelo apelido do jornalista Fernando Rocha, colega do grupo de jovens intelectuais que ficou conhecido como geração Mapa, nome da revista literária que editaram]. Se esse personagem não fosse sequer mencionado no livro, não se perderia nada. Entendo que o cara ache chato, né? Por isso pedimos as retificações. Isso já tem tempo, a versão que você encontra deve estar corrigida [segundo a editora Objetiva, tais mudanças só constarão da próxima reimpressão]. O cara querer desqualificar um trabalho de 450 páginas por causa disso é inveja, ressentimento. Coisa de personagens obscuros, né? Eu não quis polemizar com isso, reconheço meus erros. Que foram pequenos e irrelevantes. Contestaram até um episódio que o João Ubaldo Ribeiro me contou – o João Ubaldo, pô! Ele já tinha até escrito sobre isso, a “conspiração das maçãs” [um plano de atentado contra o então governador baiano Juracy Magalhães]. Pô, pelo amor de Deus, né? É muita má vontade.
Acha que pesou contra você um ciúme territorial?
Claro, tem gente que se considera dona do Glauber: “Como é que esse carioca vem aqui falar dele?”. Agora, a opinião do João Ubaldo Ribeiro, do Cacá Diegues, do Barretão, de todos esses amigos do Glauber é que conta para mim. Os amigos baianos conviveram com ele por três ou quatro anos. Quando o Glauber fez o Barravento, já veio morar no Rio: a província ficou na província e o Glauber foi pro mundo. Fiquei bem chateado, fiquei puto com isso. Mas não prejudicou em nada o livro [que vendeu, segundo a Objetiva, 12 mil exemplares].
Você joga seu nome no Google ou, quando lança um livro, pesquisa na internet para saber como vai sua recepção?
Não. Não tenho interesse, nem pro bem nem pro mal. Sei que deve ter muita baixaria, coisas ditas em termos horríveis, esse lodo humano... Eu não vou mentir, quando fico sabendo de certas coisas que escrevem, me aborreço mesmo. Então evito fuçar a esgotosfera. De vez em quando, sem querer, chega algo pra mim. Mas evito sempre. E por isso não tenho blog, nada aberto a comentários.
Quem lê o seu hate mail?
Nunca li e não quero saber, não tenho a menor noção.
Nem quando você trabalhava em jornal?
No Globo e no Estado de S. Paulo, menos. Na Folha de S.Paulo, quando eu escrevia lá, chegavam cartas de uns petistas furibundos. Mas eu dava minha resposta e papo encerrado. Detesto esse bate-boca. Eu gosto de discutir com aprendizado. Muitas das histórias que vivi e estou aqui contando foram a partir dessa atitude minha, que considero mais esperta: de ouvir, de absorver, em vez de transformar em guerra de ego, exibicionismo e busca por afirmação. Posso ficar horas discutindo um assunto com o Cacá Diegues, com o Caetano ou com o Zuenir [Ventura]. Aprendo muito assim. Mas não vou entrar em bate-boca com um desconhecido, que provavelmente me inveja ou não me conhece direito, tem ideias erradas sobre mim, visões politizadas... Acho engraçado, às vezes, as pessoas meio putas dizerem: “Nelson Motta só pode escrever sobre música mesmo”. É um reconhecimento, né? Como se dissessem: “De música, esse filho da puta entende”. Mas eu escrevo sobre política, economia e outros assuntos há mais de 20 anos. E não escrevo para agradar ou desagradar ninguém. Não mesmo.
É curioso que, como colunista, você habitualmente bate na classe política, o que vai contra essa imagem do Nelson Motta conciliador e chapa-branca...
[Interrompe] Eu não sou santo, não sou bom moço, não ofereço a outra face, não sou nada disso. Eu fico puuuto com as coisas. Depois de 20 anos amordaçado, é uma grande oportunidade escrever sobre política e dar opinião. Do meu jeito, mais leve, com humor, malvadeeezas... Tem um suingue ali, não é com raiva ou tom exaltado. Eu não odeio pessoalmente o Sarney, o Zé Dirceu... Mas não posso viver sem eles, porque concentram os defeitos da classe, o pior de todos os mundos. Eu combato o que eles são.
Você certamente já esteve na mesma sala que o Lula algumas vezes. Como foram os contatos pessoais com ele?
Nem sei se o Lula sabe direito quem eu sou. Lembro de uma vez em que foi simpático mesmo, eu estava com um monte de gente da TV Globo levando sugestões sobre cultura. Eu dou todo valor à habilidade, à inteligência, à determinação, ao jeito como ele construiu e conseguiu as coisas. Mas esse lado de animador de palanque, com aquela voz rouca esculhambando todo mundo e falando todos aqueles velhos clichês da esquerda, isso eu detesto. O lado fanfarrão transforma toda a política brasileira numa eleição sindical. O Lula apequenou muito as instituições.
“A maconha aproxima as pessoas. Nas minhas amizades, foi positiva: era impossível conviver com o Tim Maia sem maconha. Mas drogado junkie é insuportável. Eu sei porque já fui um”
Quem já processou Nelson Motta? Que inimizades fez?
Que eu saiba, inimizade não tem nenhuma. Processado eu fui duas vezes. Uma, anos depois que saiu o Noites tropicais, por um músico de terceiro escalão da Jovem Guarda citado por corrupção de menores no livro. Ganhei, ele perdeu. Depois, pela mãe do filho do Tim Maia, também anos depois. Um advogado de porta de cadeia foi lá e a convenceu a entrar com processo. Era na intenção do “vou tomar algum aqui”, e ela perdeu. Os dois foram mais na picaretagem, não tinha inimizade.
Você já processou alguém por algum motivo?
Nãão... E eu fui muito sacaneado na imprensa. O Carlos Imperial me sacaneava muito, mas, normal... Ele era sacana, um gordo cafajeste, não me incomodava muito com isso. Quem tá na chuva é pra se molhar. O João Nogueira [sambista carioca, 1941-2000] me sacaneava também, ficava puto e intimava: [imita a voz] “Pôôô, tu não pode gostar de samba e de rock, tem que escolher!”. E eu: “Pô, João, não me enche o saco! Vamos torrar unzinho”. Ele tem uma música, “Baile no Elite”, que me sacaneia [termina com “Seu Nelson Motta deu a nota/ que hoje o som é rock and roll/ A Tabajara é muito cara/ E o velho tempo já passou”], parceria com o Nei Lopes, que é um cara que eu também amo. Depois, na Copa de 1986, no México, eu e João passamos um perrengue juntos, quase fomos presos por um baseado. Ele ficou meu amigo, só não aceitava que eu gostasse de rock.
Falando em amizade, como vê algo que jamais foi assumido, mas se reflete em termos de produtividade nas parcerias: o esfriamento entre Roberto e Erasmo?
Quem sou eu pra especular o que eles ainda fazem juntos? Eu sei que me beneficio disso. Graças a essa situação tive a oportunidade de fazer quatro músicas com o Erasmo nos últimos discos dele. Pra mim, como compositor, é a glória. Agora eu posso dizer “o meu amigo Erasmo Carlos”, meu parceirinho... E sentindo ainda o quente da bunda do rei [risos]!
Qual é a sua relação com redes sociais? Você não está no Facebook nem como voyeur virtual?
Nenhuma. Não posso estar no Facebook. Seria um inferno pra mim, o pior castigo. O que as pessoas me alugam, me mandam de disco, de link, de coisa pra eu ouvir... Imagina se eu estou ali aberto a novas experiências... Tá louco!
No filme As aventuras de Agamenon, o repórter, você aparece creditado como “ator de documentários” e zomba de si mesmo...
Esse troço é uma expressão feliz e engraçada do André Miranda, jornalista do Globo, me sacaneando por ocasião do documentário sobre o Paulo Francis [Caro Francis, 2010]. Naquele caso eu era indispensável mesmo, porque fui muito próximo do Francis em toda a fase do Manhattan Connection. Mas eu apareci em muitos outros porque é difícil negar, as pessoas insistem; às vezes, são amigos... E foi ótimo ser sacaneado com isso, porque a partir daí pude recusar vários convites. “Tá vendo, ó! Já tô no ridículo.” Escapei de vários: sobre o verão da lata no Rio de Janeiro, sobre o Circo Voador... E todo mundo entende, né? Ser ator de documentários é assim: você perde um tempo danado e não ganha um tostão. É a profissão mais idiota do mundo [risos]!
O que você aprendeu com seus pais, Xixa e Nelson, que estão com 92 anos, ainda dando lições e exemplos?
Minha mãe está espertíssima, não mudou nada. Quer dizer, ficou um pouco mais autoritária, mais mandona... Faz supermercado, comanda uma casa enorme, lê dois livros por semana e cuida do meu pai, que está mais velhinho, fica só em casa, ali... A minha mãe me influenciou pelo lado artístico, da música – toca piano – e também da literatura, é minha leitora, sempre muito crítica. Meu pai é meu guia moral, me deu todas as bases éticas em que acredito. Toda vez em que tive problemas mais sérios na vida eu corri pro meu pai. Ele sabe discutir, argumentar, sempre foi um homem muito generoso. E muito tolerante também. Ele sempre me disse: “Qualquer pessoa que cruzar o seu caminho, você tem que ajudar”. Eu procurei seguir, indo desde o mendigo, a quem você dá um trocado sabendo que ele vai beber cachaça, até os músicos, jornalistas, produtores que trabalharam comigo. E eu fui muito ajudado a vida toda. Cruzei o caminho de muita gente que me ajudou muito: Vinicius de Moares, Glauber Rocha, Paulo Francis, Nelson Rodrigues, Zuenir Ventura... Mestre Zuenir foi quem mais me ajudou – as aulas de português dele na faculdade de desenho industrial eram tão boas que larguei a faculdade para ser jornalista.
Você mencionou várias pessoas agora, e só uma delas, o Zuenir, está viva. Hoje, aos 67 anos, quem são os seus melhores amigos?
Hoje eu tenho tantos amigos que não tenho nenhum. Assim, de conversar todo dia, não tenho. Porque tenho três filhas, três netos, tenho namorada firme, pai e mãe vivos – com 92 anos! De vez em quando saio com um amigo, encontro um ou outro andando no calçadão, ou tenho um trabalho que me aproxima mais de alguém... De vez em quando vou a uma festa ou a um show, vejo as pessoas todas de uma vez. Mas não tenho mais, como tive em várias outras épocas da minha vida, esse círculo que se vê sempre.
“Só sei que me beneficio do afastamento entre Roberto e Erasmo. Fiz quatro músicas com o Erasmo. Como compositor, para mim é a glória. E ainda sentindo o quente da bunda do Rei!”
Como você viu o recente round (post mortem) entre Caetano Veloso e Paulo Francis (1930-1997), com o cantor comentando ataques do jornalista de 1983, agora republicados em livro (Diário da corte, editora Três Estrelas)?
É muito desagradável quando dois amigos seus brigam, porque frequentemente os dois têm razão. Eu lembro das farpas, “bichona Fu Manchu” pra cá, e o Francis também falava coisas engraçadas do Caetano. O que é óbvio é que uma pessoa com a cultura e a inteligência do Francis não poderia fazer uma avaliação ruim da obra do Caetano, né? A única vez em que conversei com o Caetano sobre isso ele reclamou: “O Francis falando coisas racistas horrorosas e você rindo, hein?”. Mas eu argumentei que não havia como tentar contestar isso a sério, o Francis às vezes dizia coisas tão absurdas que ficava impossível estabelecer uma discussão com um mínimo de razão. Tipo: [imita a voz de Francis] “Todos os cineastas brasileiros têm apartamento na Vieira Souto comprado com dinheiro da Embrafilme”. O Cacá Diegues morava no apartamento do sogro, o Raphael de Almeida Magalhães, na Delfim Moreira, e eu tentei explicar pra ele. E a reação era tipo Nelson Rodrigues: [imita a voz do escritor, também] “Se isso é um fato, então pior para os fatos”. Então o jeito de eu demonstrar a desaprovação pelos absurdos do Francis era rir, como se aquilo fosse uma grande piada. Eu adorava o Francis e amo o Caetano. Me identifico com muitas coisas de um e de outro, aprendi muito com os dois.
João Gilberto, que você sempre aponta como seu mestre, também foi um bom amigo. Como é a relação entre vocês hoje?
Não convivo com ele há uns cinco anos, nem de falar ao telefone ou encontrar ao vivo. E não aconteceu nada de especial. Com ele, não é preciso que aconteça, né? Quando a gente era vizinho no Leblon, eu fazia umas visitas, ele me mostrava os gatos, lá pelo final dos anos 1980. Tenho até hoje uma fita com ele cantando “Parabéns a você” pra mim, na secretária eletrônica. Passei pra CD, é uma preciosidade. Agora, eu sei como ele é, vai ficar puto se eu mostrar isso. Acho que só mostrei pras minhas filhas.
O que você acha que ainda dá pra esperar do João em termos de produção artística?
A julgar pelo cancelamento da turnê no fim de 2011, a gestão da carreira não tem estado à altura dele... Fazer gestão da carreira de João Gilberto é impraticável, é como disciplinar Tim Maia. Ele é o que é, faz as escolhas dele e arca com as consequências. O João é tão misterioso, tão impenetrável que fica difícil, a distância, especular se ele quer mesmo fazer show ou se não quer e está de saco cheio. Saber o que é que realmente existe dessas imagens que a mulher dele, a Cláudia [Faissol] gravou, se foi perdido o HD com horas e horas... Como tudo que cerca o João Gilberto é muito misterioso e há poucas informações concretas, tudo vira folclore. Fazem muitas especulações e muitas vezes não tem nada, só o óbvio. Tipo: vai fazer um show porque precisa ganhar dinheiro. Ou não vai fazer porque não está a fim. Simples assim.
Você diria hoje que o Viagra é seu amigo?
Há anos. Mas prefiro Cialis. Isso é um sonho, pô, uma maravilha! Minha geração teve dois privilégios. Em 1968, quando eu tinha 24 anos, apareceu a pílula anticoncepcional, foi uma coisa de louco no Rio de Janeiro, um estouro da boiada. Todas as garotas, aqueles brotos lindos, saíram dando feito loucas. Foi uma maravilha ter vivido esse momento. E depois outra maravilha, quando eu estava chegando, sei lá, com 50 e tantos anos, ooooh, o grande Trovão Azul! Que maravilha! Acho ótimo, uma felicidade poder ter isso. Já pensou que coisa triste: cara com 60 e poucos anos, a cabeça a mil, às vezes até fisicamente atlético, mas condenado à brochura? Uma simples pilulinha resolve, acho uma bênção de Deus.
Já perdeu amigos por causa de droga?
Já me afastei de gente, sim. Porque drogado, junkie, é insuportável. Eu sei porque já fui um deles, fiquei sete anos na cocaína, falando pelos cotovelos, feito um idiota, cuspindo nas pessoas, bebendo, enchendo a cara, falando sem parar, contando a vida pra pessoas que não mereciam nem um cumprimento. Esse é o pior lado da cocaína: o dano do convívio social. Você convive com o pior tipo de gente só porque eles estão usando a mesma droga que você – ou porque eles têm a droga ou porque você tem a droga e precisa de alguém pra usar com você, precisa de alguém pra alugar uma pessoa, falar merda durante horas. Quando amigos meus começavam a cheirar, meter o pé na jaca, eu fugia. Bêbado também é muito chato. Eu aturo um mínimo e já vou escapando...
Que amizades o seu uso de drogas lhe custou?
Na verdade, a maconha, por ser gregária, aproxima as pessoas. Nas minhas amizades, foi positiva: era impossível conviver com o Tim Maia sem maconha, impossível! Com o Glauber, nos últimos anos, também.
A maconha ainda é compatível com os cuidados de saúde que a sua idade exige?
Olha, eu fumo cigarro, já parei algumas vezes. Eu faço o que eu posso, caminho na praia todo dia de manhã, faço ioga... Tento comer de modo razoável, são formas de compensar isso. Claro que não é uma coisa boa, eu sei. Mas não bebo também, só um aperitivo, um bloody mary muito de vez em quando. Tomo um vinho às vezes, em festas – mas como eu vou a pouquíssimas... Então isso compensa, sou bem moderado.