Musas inspiradoras

Bate-papo sobre amor, cantadas, boemia e ciúmes com as musas da música brasileira

por Mario Mendes em

Helô começa a desfrutar a fama de "Garota de Ipanema" nos anos 60

Musas inspiradoras não combinam muito com um fim de tarde frio e chuvoso. Mas nossas convidadas – musas incontestes do pop nacional – foram pontuais no encontro com a reportagem, num agradável restaurante dos Jardins, em São Paulo. Animadas, falantes e bem-humoradas, conversaram sobre o privilégio de terem recebido algumas das melhores “cantadas” de que se tem notícia. “Afinal, tem coisa melhor do que conversar sobre amor e música?”, justificou Maria Carolina Whitaker, a Carol Bela da clássica canção de Jorge Ben e Toquinho. Além dela, convidamos Andrea Merkel, a inspiração por trás de “Amor incondicional”, de seu marido, o músico Edgard Scandurra; Clariana, a jovem que um dia cobrou do namorado “por que você me deixa tão solta?”, foi ouvida pelo pai, o cantor e compositor Peninha, e inspirou “Sozinho”; e Helô Pinheiro, a musa Ph.D. que enfeitiçou Tom Jobim e Vinícius de Moraes com seu “doce balanço a caminho do mar” (ela diz ter 550 versões de “Garota de Ipanema” – “presente de um fã de Recife” –, da célebre gravação de Frank Sinatra até uma hilariante versão em japonês).

Mesmo não sendo fiel à mitologia grega (as musas originais eram nove, filhas de Zeus e Mnémosis, deusa da memória), nosso papo entre musas rendeu prosa & verso. Helô cantou, Maria Carolina falou de seus tempos de modelo e da “muvuca cultural” durante a ditadura militar, Andrea revelou ter sido a inspiração para várias outras canções de seu marido e Clariana trouxe a tiracolo o pequeno Gabriel, filho de 1 ano e meio. Tudo regado a muita “música”, palavra que vem do grego “musa”.

Disquinho e Roupa Nova

Maria Carolina Whitaker
Minha infância e juventude foram muito musicais. Nossa família, os Whitaker, era um clã imenso com cerca de 60 primos. Nos reuníamos a cada 15 dias na casa do meu avô e ele acabou contratando um maestro para fazer um coral com a família. Eu era pequena e lembro da sensação de ouvir todas aquelas vozes cantando. O repertório era música brasileira, “Casinha pequenina”... Sempre gostei de cantar, a vida inteira. Não ter sido cantora foi minha grande frustração. A única vez que ouvi minha mãe falar um palavrão foi quando eu falei que queria ser cantora. Ela disse: “Cantora é trabalho de puta”. Acabou comigo [risos]. (Maria Carolina não virou cantora, mas sua filha, Céu, é hoje uma das mais bem-sucedidas cantoras da cena pop brasileira.)

Helô Pinheiro
Ah, sempre gostei de músicas românticas. Uma música que eu amo desde sempre é “Eu sei que vou te amar”. Aliás, essa eu queria que tivesse sido feita pra mim.

Clariana
Minha primeira referência musical eram as coisas que minha mãe ouvia, Raul Seixas e Roupa Nova... Sim, sou fã do Roupa Nova! Depois comecei a ouvir muito Legião Urbana. No meu casamento, meu pai cantou uma música dele chamada “Ouro de mim”, que eu adoro.

Andrea Merkel
Ah, minhas primeiras lembranças musicais são daquela série Disquinho. Eram compactos coloridos, com canções infantis.

Atravessando o samba

Clariana, filha do compositor Penninha - Crédito: Imagem: Bruno Miranda / na lata

Helô
Só cantei em público uma vez. Estávamos num show em Miami e o Pery Ribeiro, intérprete original de “Garota de Ipanema”, me chamou ao palco pra cantar com ele. Só que ele cantava em dó e eu em ré. Foi uma vergonha! Bem que minha avó me dizia: “Sua voz é desentoada, minha filha”.

Clariana
Eu não canto nem debaixo do chuveiro. Se for pra cantar, canto bem baixinho pra mim mesma. Porque ninguém merece me ouvir cantando.

Helô
Uma vez eu arrisquei e fiz uma música infantil para a minha filha Ticiane [Pinheiro, casada com o publicitário Roberto Justus]. Ela fazia um programa para crianças na TV e começaram a produzir um disco. Era assim: “Vem ver, vem ver, se você gosta de mim/ Vem ver, vem ver, o que faço pelo sim”. Levei a música para o produtor do disco. Ele ouviu e me falou: “OK, vamos deixar arquivada”.

Vida de musa

Maria Carolina
Por causa da rebeldia que havia nos anos 60, minha irmã e eu abrimos um bar, o Solário da Pátria, lá na rua Santo Antônio, na Bela Vista. Era época da repressão do governo militar e as pessoas gostavam de ir lá pra conversar, tocar, cantar. O Jorge Ben ia muito, principalmente nos domingos à tarde, porque gostava de um doce de banana que eu fazia pra ele. Aí, um dia, ele e o Toquinho, que era meu namorado, sentaram no sofá e, na brincadeira, fizeram “Carolina Carol Bela”.

Helô
Tinha 17 pra 18 anos e passava em frente ao bar Veloso (hoje Garota de Ipanema), indo pra escola ou para a praia. Não conhecia o Vinícius nem o Tom. Pra mim eles eram senhores que brincavam comigo quando eu passava. Um dia, um fotógrafo amigo meu falou: “Tom e Vinícius fizeram uma música pra você, Helô. É uma graça”. Só depois de três anos, quando a música virou um grande sucesso – e várias moças diziam ser a verdadeira “garota de Ipanema” –, Tom e Vinícius vieram a público revelar que a musa era eu. Foi num encontro promovido pela revista Manchete. Como meu pai era militar e meu namorado, um armário, o Tom e o Vinícius foram lá em casa pedir permissão pra minha mãe para eu aparecer na reportagem. Depois, convidei os dois para serem padrinhos do meu casamento. O Tom estava meio apaixonado por mim e disse: “Olha lá, todo mundo de quem eu sou padrinho de casamento rompe”. Estou casada com o mesmo marido até hoje.

Maria Carolina
Eu trabalhava como modelo e frequentava os festivais da Record, conheci muita gente ali. Lembro quando Caetano entrou cantando “Alegria, alegria”... Foi incrível. Naquele tempo tinha essa dicotomia. De um lado a repressão, do outro pessoas que faziam coisas para quebrar as regras. Foi nesse clima que abrimos o bar, que virou muvuca cultural. Imagine que o delegado Fleury [Sérgio Paranhos Fleury, considerado um dos maiores torturadores do regime militar] costumava frequentá-lo. Chegava, tomava seu drink, ficava um pouco, ia embora e ninguém tava nem aí. Era um cliente como qualquer outro.

Andrea
Edgard e eu estamos casados há 14 anos. Quando começamos a namorar, ele estava gravando o segundo disco solo. Reparei que tinha uma música [“Amor incondicional”] que tinha muito a ver com a gente. Aí ele confirmou que tinha feito pensando em nós. Na verdade, de “Amor incondicional”, apenas o refrão é dele, o resto da letra é da Sandra Coutinho. Mas ele já fez outras músicas pra mim: “Tudo o que eu quero”, “Você não sabe quem eu sou”... Edgard é super-romântico, superatencioso, sempre me traz um presentinho, um vestidinho...

Helô
Que homem maravilhoso! Estou casada há 40 anos e não lembro do meu marido trazendo vestidinho de presente! [Risos.]

Clariana

Eu tinha 14 anos e meu pai me contou que tinha feito uma música [“Sozinho”] pra mim. Mas eu não liguei muito. Ele disse pra eu prestar atenção porque a letra tinha muito a ver comigo. Só fui me ligar mesmo quando o Caetano Veloso gravou e li a história no jornal, que meu pai tinha ouvido uma briga que tive com meu namorado pelo telefone. Ele ouviu na extensão. Eu falava coisas como “por que você me deixa tão solta? Por que você não está aqui agora?”. Claro que não gostei. Achei que, além de o meu pai não aprovar meu namoro, ele tinha contado isso pra todo mundo [risos]. Tive esse namorado dos 14 aos 23 anos e somos amigos até hoje. Adoro “Sozinho” cantada pelo Tim Maia, mas minha versão preferida é a do meu pai mesmo.

Helô Pinheiro, a Garota de Ipanema - Crédito: Imagem: Bruno Miranda / na lata

Maria Carolina
Não canto a minha música, mas adoro ouvir alguém cantar. Fui num casamento em Goiânia e o DJ era amigo da minha filha, a Céu, e ele tocou pra mim. Mas a Céu nunca cantou a música.

Helô
Nunca ganhei dinheiro com “Garota de Ipanema”. Foi apenas um presente que eu ganhei deles. Quando me convidaram pra fazer meu primeiro comercial, fui toda feliz contar pra minha mãe e disse que ia ganhar um cachê. Ela ficou apavorada: “Pelo amor de Deus, não aceite. Pode até fazer o trabalho, mas não aceite o cachê”. Ela confundiu “cachê” com “michê”. Naquela época a gente era mais livre no sentido de poder andar na rua tranquila, podia ir à praia sem ser assaltada, mas tinha que voltar às dez da noite pra casa. Minha avó dizia: “Olha, não vai entregar o ‘tesourinho’ não. Porque eles vão embora e você é quem vai ficar mal”.

Música e lágrimas

Maria Carolina
Quando namorava o Toquinho, pensava que eu era a mulher da vida dele. Não era. Tinha eu em São Paulo, a Leila Diniz no Rio e mais um monte de outras. Ele e o Jorge Ben fizeram outra música, “Que maravilha”, também lá no meu bar, e eu gosto de pensar que ela também foi feita pra mim. Agora, a música de que eu mais gosto é uma feita pelo meu filho Diogo, ela diz “o que eu vou fazer pra te tirar do meu mundo?”. É linda. Ele e a Céu cantam divinamente.

Andrea
Queria ter inspirado “Jê t’aime moi non plus”, do Serge Gainsbourg. E “Culto de amor”, do Edgar. Mas essa não foi feita pra mim.

Clariana
Tem aquela música da Vanessa da Matta, “Ainda bem”, que eu adoraria ter inspirado.

Helô
Uma vez estava na casa do Vinícius com meu namorado e chegou o Tom com a mulher dele, a Ana Lontra. Ele falou pra mim: “Olha, Helô, você não quis ficar comigo então casei com ela, que parece com você”. Fiquei sem graça e ela ficou na dela. Aí, depois que ele morreu, abri uma loja de roupas aqui em São Paulo chamada Garota de Ipanema. Não é que ela me proibiu de usar o nome? Disse que eu só poderia usá-lo para assuntos culturais. Eu respondi: “Por que, então, tem tanto comercial com fundo musical do Tom?”. Foi uma loucura. Chorei muito. Queria só aproveitar o nome pra deixar um legado pros meus filhos e tive que fechar a loja porque meus sócios se acovardaram.

Agradecimentos Limo Service e Restaurante Marakuthai

Crédito: Bruno Miranda / na lata
Crédito: Bruno Miranda / na lata
Crédito: Bruno Miranda / Na Lata
Crédito: Bruno Miranda / Na Lata
Crédito: arquivo pessoal
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