Milly Lacombe: vou te salvar, mas antes vou te matar

Nossa colunista reflete sobre o que o coronavírus ensina sobre nós: "Ser capaz de aceitar o descontrole faz nascer revoluções"

por Milly Lacombe em

Alguns acontecimentos se vestem de apocalipse para avisar, de forma pouco gentil, que somos tudo e todos uma coisa só. Calamidades fazem parte da história desse planeta desde o dia um. Somos resultado de caos, de explosões, de grandes impactos e de resíduos e detritos que deram um jeito de se encontrar para formar nossa magnífica lua e esse planeta tão improvável que flutua pelo espaço em sua solitária dança cósmica. É o que chamamos de casa, mas que poderia também ser chamada de nave-mãe – um conceito elaborado por astronautas que tiveram a chance de observar o planeta a partir de um outro ponto de vista.

É aqui dentro dele que a gente faz amor, planta e colhe, ergue pontes, da à luz, escreve livros, textos, estudos, faz pesquisas, descansa em redes, pesca, se beija e se abraça, vai ao supermercado, bebe vinho com amigos e amigas. É também aqui que a gente espanca aqueles que não se parecem com a gente e mata os que manifestam orgulhosamente por aí desejos que preferiríamos esconder de nós mesmos. Aqui que a gente derruba florestas, polui rios, caça animais sem precisar comê-los, arranca do solo tudo o que podemos arrancar para transformar em combustível para que possamos executar o que entendemos por liberdade: viajar, andar de carro, de trem, de avião, comprar roupas, produtos para nossa pele, para nossos cabelos, adquirir móveis, imóveis, eletroeletrônicos, o celular novo, aquele computador de última geração.

Como tudo contém petróleo, nossas liberdades dependem de continuarmos furando, devastando e depois comercializando através desse lugar ficcional que chamamos de “mercado”. Ser livre, ensinaram para cada um e cada uma de nós, é ter o direito de escolher o que comprar, para onde ir, como ir. As coisas que sabemos sobre liberdade passam por essa abstração que se chama mercado, por ter dinheiro suficiente para fazer escolhas e consumir. Liberdade, contaram, começa com um mercado que se autorregula, que flutua soberanamente pela maré da oferta e da procura. Justiça vem a partir disso: quem se esforça, consegue. Quem não se esforça, padece. Somos indivíduos e temos cada um de nós direito a nossas liberdades individuais. É assim que aprendemos a ser fortes, a não reparar no corpo caído na esquina, a não chorar pela mulher que dorme com seu filho em frente à agência bancária. Mas não é assim que é, e essa mentira que nos moldou é aquela que vai nos matar.

Ou não. Mas para isso temos que começar a nos deseducar. Temos que desaprender, temos que provocar um colapso completo do indivíduo e, com ele, da sociedade.

Não existem indivíduos porque não somos, como a palavra sugere, indivisíveis. Somos, pelo contrário, atravessados e atravessadas por dúvidas, medos, contradições, pensamentos perturbadores, desejos indizíveis. Precisamos falar sobre isso, descer de nossos pedestais seculares, encontrar nossa real humanidade – que é falha, vulnerável, amedrontada, desesperada por solidariedade, por afeto, por amor.

Quando somos ensinados, desde nossos primeiros contatos com outros, a competir, estamos nos afastando do que temos de mais precioso. Essa internalização de que somos indivíduos que competem entre si é a que faz com que, em situações de calamidades, corramos para salvar o que nos pertence, para proteger uns poucos que estão ao nosso redor e que dizemos amar. Não existe "o outro" em momentos de grandes tragédias. Existe apenas "eu" e "os meus".

E mesmo que consigamos pegar o último tubo de álcool gel da prateleira da farmácia depois de dar uma cotovelada na mulher que tentava alcançá-lo antes de mim não estaremos felizes. Contaremos a história de como chegamos antes à prateleira com orgulho para amigos mais próximos e esconderemos todos os sentimentos difíceis de serem compreendidos que nos isolam e nos devastam. Será que a mulher precisava da garrafa mais do que eu? Poderia ser necessária para a mãe dela, de quem ela cuida e que está em casa doente? Somos encorajados a pensar que esses devaneios não interessam porque o mundo é dos que vencem, não dos que perdem. Uma sociedade que divide seus membros entre perdedores e vencedores vai sempre nos legitimar a agir como indivíduos gananciosos, individualistas, egoístas. E agir ou pensar assim jamais nos tornará completos, felizes ou livres.

Liberdade não tem nada a ver com escolhas. Liberdade não é individual. Liberdade ou alcança a todos ou jamais será.

Quando a notícia de que um vírus pode afetar a vida de muitos de nós, tendemos a pensar apenas nesse nosso pequeno círculo de afetos, salvar meu corpo e os de quem amo, sem considerar que inevitavelmente seremos inundados pela perturbadora noção de que estamos mais unidos do que poderíamos racionalmente supor. Um vírus que nasceu lá no oriente e em poucas semanas alcançou todas as nações traz recados importantes sobre quem somos e como vivemos. Um mesmo vírus que, cedo ou tarde, você e eu teremos. Um vírus que poupa crianças, mas é implacável com os mais velhos. Um vírus que estará em nossas prisões superlotadas, que se infiltrará pela pele dos que moram na rua, dos que moram nas favelas, dos que terão que seguir se locomovendo através de transporte público porque recebem por dia e, mesmo doentes, não podem correr o risco de não receber. Um vírus que vai tornar expostas as mais horrendas fraturas de nossos sistema e de nossa sociedade.

Minha previsão é a de que teremos que reavaliar muitas coisas. Nossas relações mais próximas estarão em teste já que, de quarentena, passaremos dias e dias dentro de casa. Reavaliar as relações de trabalho porque veremos que tipo de serviços e de produção exigem de fato a presença física de trabalhadores e quais podem existir de forma remota. Reavaliar a solidariedade, especialmente com os mais velhos que não poderão sair e dependerão da ajuda de amigos, parentes e estranhos para se alimentar, para receber afeto até em isolamento. Um vírus que obrigará a economia a desacelerar e que provavelmente vai nos mostrar que, ao contrário do que nos ensinaram, economia não é uma ciência sobre números, mas sobre vidas, corpos, almas, relações.

Ainda que por algumas semanas apenas, pararemos de furar com tanto ímpeto. Pararemos de comprar com tanta fúria. Pararemos de explorar com tanta raiva. Um vírus que vai nos obrigar a encontrar outras formas de estar nesse mundo. É curioso que um vírus com essas características tenha aparecido em nosso planeta justamente agora, quando um tsunami fascista ameaça as diferentes formas de vida que com tanta luta conseguiram conquistar algum espaço, alguma legitimidade, alguma representatividade.

Um vírus que nos convida ao recolhimento, a construir um novo circuito de afetos, ao cuidado com nós mesmos, com os que amamos e com os mais vulneráveis. São essas as ocasiões em que nos vemos como os astronautas nos veem: dentro de uma mesma nave, afetando uns aos outros e ao meio ambiente com cada uma de nossas pequenas ações, a cada toque, a cada abraço, a cada beijo, a cada respiração. Prosperar, afinal, não é enriquecer e gastar, mas sobreviver e acolher.

Às vésperas de mergulharmos naquilo que se anuncia como um grande caos compartilhamos de uma mesma emoção: a de desamparo. Ao contrário de fazer com que ela seja ruim, a hora pede que a afirmemos. Tudo vai desmoronar, tudo vai ser destruído, e não há nada de errado nisso porque uma nova sociedade se faz necessária e ela só virá com a destruição de um modo de vida que não nos serve mais. Ser capaz de aceitar o descontrole faz nascer revoluções. Como sugeriu Vladimir Safatle, mudar o mundo não é apenas transformar o poder ou redistribuir riqueza, mas também alterar completamente a forma como circulamos afetos. É um vírus que diz mais sobre o outro do que sobre nós mesmos; cuidar de si não porque trata-se de um vírus altamente mortal, mas cuidar de si para não contaminar os demais, os mais fracos, os mais vulneráveis. Cuidar de si porque não existimos sozinhos. Cuidar de si porque o que sai de mim afeta de formas muitas vezes irreversíveis quem está a meu lado. Novos sujeitos e novos jeitos de estar no mundo produzem um novo mundo. É o momento de a gente criar aquilo que a gente não sabe o que é.

Créditos

Imagem principal: @eugenia_loli

Arte por @eugenia_loli

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