O menino que tinha pânico de japoneses
Assim como pobres não precisam de doações, e sim de justiça, a terra não precisa de homenagens, e sim de empatia
Quando eu era pequena, estudei com um menino que tinha pânico de japoneses. O pobre garoto nunca tinha visto um japonês e vivia atormentado pela ideia de topar com um deles no caminho. Eu não sabia direito o que era um japonês, acho que nem meu colega sabia, e aquele medo todo começava a me invadir. Mas um dia minha mãe me explicou o que era um japonês e, para que o temor do menino não infectasse minha pequena alma, me pegou pela mão, saiu do apartamento e tocou a campainha de uma das vizinhas. Na porta apareceu Midori, a filha da família japonesa que morava ali. Eu tinha menos de 5 anos, mas nunca me esqueci do rosto dela, que devia ter 10 anos, e que, durante um bom tempo, acabou sendo minha companhia para descer ao térreo e brincar. Hoje vejo fotos de Midori de mãos dadas comigo na escada do prédio e lembro da época em que minha mãe, para evitar que crescesse em mim um preconceito, tocou a campainha da vizinha. Tempos depois, minha mãe, ela mesma, seria vítima de um preconceito muito seu, a homofobia, doença da qual se curou há alguns anos.
Somos reservatórios de preconceitos, e eles existem porque não convivemos com o diferente e tendemos a nos misturar aos iguais, seja no que diz respeito à cor da pele, à classe, ao credo, à sexualidade. Amar uns aos outros nesses contextos não é assim tão difícil, é até demasiadamente humano que reconheçamos essas partes tão óbvias de nós mesmos no outro. Amar o diferente, isso sim, é que é divino. E não há melhores professores nesse exercício de alargamento de afetos do que as minorias políticas, essa gente barulhenta que, recentemente, deu para sair pelas ruas gritando, reivindicando direitos e levantando seus punhos fechados.
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Escutar o que dizem é um começo para que sejamos capazes de alargar nossos campos de ternura, é fazer o que fez a minha mãe no Rio na década de 70: sair do conforto do lar e ir ter com o vizinho que não parece ser assim tão igual, mas que, apesar da diferença mais óbvia, tem os mesmos desejos e necessidades. Mas sem que nos misturemos, como saber?
Ao longo da história, foram as minorias políticas que nos deram lições a respeito de afeto, de inclusão e de humanidade. Basta voltar esse filme para perceber que as lições nunca vêm da elite, da classe dominante, do poder econômico, dos ultrarreligiosos. Aliás, está na conta dos extremistas religiosos, sejam eles católicos, islamitas ou judeus, alguns dos piores crimes contra a humanidade. Um pessoal que lê os livros sagrados como se lesse a Folha de S. Paulo da época e interpreta o que está ali como notícia, e não como metáfora. Fica mesmo difícil debater com alguém que acredita que Jesus subiu para os céus como um pássaro e não percebe que se trata de uma alegoria, algo que pretende fazer com que consideremos a possibilidade de o céu, esse lugar que gostaríamos de alcançar, estar dentro da gente.
Você é o próximo
Da mesma forma, tem sido bastante difícil debater com quem acha que homens e mulheres são coisas separadas da natureza. Trata-se de um grupo de pessoas que, recentemente, diante do colapso do sistema econômico que nos guia e da iminência de catástrofes climáticas causadas para o lucro de poucos, se viu obrigado a venerar a natureza em discursos, campanhas publicitárias e doações. Uma estratégia que pode enganar alguns, mas que na verdade é perigosa. Colocar a natureza num pedestal e admirá-la, como um observador separado dela, faz pelo meio ambiente o que o patriarcado faz pela mulher: ao venerar as formas femininas, ao separá-la de outras humanidades, fica aceitável cortejá-la, bajulá-la, admirá-la, objetificá-la e, assim, possuí-la, destruí-la, oprimi-la. É o que esse chamado “novo capitalismo”, também conhecido como capitalismo verde ou capitalismo consciente, faz com a natureza: ao tratar dela como coisa separada, ao adjetivá-la com palavras sensíveis, confere um tipo estranho de moralidade a ações como desmatamentos, construção de hidrelétricas em reservas indígenas, exploração do solo em busca de combustível fóssil – tudo em nome do lucro rápido.
Seguir por esse caminho não vai nos levar muito longe, embora vá gerar campanhas publicitárias comoventes. Mas, assim como pobres não precisam de doações, e sim de justiça, a Terra não precisa de homenagens, e sim de empatia. Se nos percebermos como parte da natureza, vamos deixar de violentá-la, perfurá-la, agredi-la, destruí-la. E não é exatamente que a Terra precise disso para seguir existindo, porque ela já sobreviveu a coisas muito piores do que o capitalismo; ela precisa disso para ser capaz de continuar a nos fornecer vida. A triste verdade é que, se deixarmos de existir, a Terra, os insetos, os rios, os pássaros, os mares e as árvores apenas prosperarão. Não somos nem um pouco fundamentais para nenhum deles; eles é que o são para a humanidade.
Então, para que sigamos existindo, teremos de entender que somos parte de uma mesma substância – os rios, as rochas, as árvores, os bichos, as tempestades, você e eu. Para isso, teremos de aceitar o arrebatador fato de que ao nos percebermos separados jamais seremos capazes de amar uns aos outros, de respeitar uns aos outros, de aceitar uns aos outros. Escutar as minorias políticas que hoje gritam por moradia, por hospitais, por trabalhos que dignifiquem, por cotas, por demarcações de terras, pelo fim de hidrelétricas, pela reforma agrária, por estudo gratuito, por igualdade salarial entre gêneros, por justiça racial, por um sistema universal de saúde, por direitos trabalhistas e por aposentadoria é ouvir aos nossos mais profundos desejos: o de que possamos nos perpetuar enquanto espécie. Porque não haverá mais humanidade se continuarmos a nos oprimir, a nos destruir, a nos separar em classes e raças, a aumentar o abismo da desigualdade social, a violentar o planeta que tão elegantemente nos fornece a vida. Medo, racismo, fundamentalismo: essas são as formas de conquistar o apoio das massas para políticas concebidas para oprimi-las, ensina Noam Chomsky. Não é mais possível que legislações que interessem apenas ao bolso de uns poucos bilionários continuem a ter o apoio das massas.
E se tivermos de usar os livros sagrados, que assim seja. Mas que pelo menos os interpretemos de forma que faça sentido, porque quando Jesus diz “ama o próximo como a ti mesmo”, o que ele talvez esteja dizendo é: “Ama o próximo porque é tu mesmo”.