Mangue Town
Favela na Vila Madalena é exemplo de rara convivência entre diferentes classes sociais
No coração da Vila Madalena, um dos bairros mais valorizados de São Paulo, uma favela resiste desde os anos 60 e é exemplo de uma rara convivência entre diferentes classes sociais na cidade
No alto do morro, da janela de sua casa, Manuela Maria Ribeiro tem uma das vistas mais espetaculares da Vila Madalena, zona oeste de São Paulo. Sem nenhum prédio em frente para atrapalhar a paisagem, a empregada doméstica de 63 anos observa as casinhas remanescentes da área ocupada por portugueses no início do século passado. Dona Manuela é moradora da favela do Mangue, um bolsão de pobreza encravado no coração de um dos bairros mais valorizados da capital paulista. O contraste entre os edifícios de alto padrão e os barracos do Mangue chama a atenção de quem anda pela região. A um quarteirão da casa de dona Manuela fica um dos prédios mais badalados do bairro, assinado pelo escritório Triptyque e construído pela incorporadora Idea! Zarvos. Ali o aluguel de um apartamento de 150 metros quadrados custa R$ 6.500 por mês – no Mangue, um quarto e cozinha sai por R$ 800 mensais.
Localizada entre as ruas Fidalga, Fradique Coutinho e Rodésia, a favela do Mangue existe pelo menos desde os anos 60 e abriga 22 famílias, em sua maioria de pedreiros, marceneiros, empregadas domésticas e outros trabalhadores braçais. No passado, antes da especulação imobiliária que fez multiplicar os canteiros de obras pelo bairro, estima-se que o número de moradores tenha sido o dobro. Na Secretaria Municipal da Habitação, a comunidade está cadastrada como “Favelas Fidalga 1 e 2”. “Uma fica num terreno público que foi ocupado e outra, num terreno particular. No começo dos anos 90, houve uma urbanização que levou água e esgoto e melhorou as condições no local”, explica o vereador Nabil Bonduki (PT-SP), professor de arquitetura e urbanismo da USP e morador há mais de três décadas da rua Fidalga.
O nome Mangue vem das minas de água que existem na região. Outra versão aponta para o fato de que ali se tornou uma área famosa pelo tráfico de drogas que abasteceu os bares e casas noturnas da vizinhança a partir dos anos 80. No terreno onde hoje fica um belo predinho de tijolos aparentes havia um cortiço onde nasceu o traficante Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, 35 anos. Preso na penitenciária de Presidente Venceslau, no oeste do estado, Gegê é apontado como o número 2 na hierarquia da organização criminosa Primeiro Comando da Capital, atrás apenas de Marcos Camacho, o Marcola. No auge dos ataques do PCC que paralisaram São Paulo em 2006, um ônibus foi incendiado na esquina da rua Fidalga com a Aspicuelta – para não deixar dúvidas de que o “partido do crime” está presente não só na periferia, mas também nas áreas centrais. “Eu lembro do Gegê quando ele era moleque. Jogava pedra na janela e pedia doces para deixar de incomodar”, conta, dando risada, Ernesto Loiola Mota, o Ceará, dono de um antiquário no Mangue.
O período de maior violência foi nos anos 80, quando o Mangue era uma espécie de território livre. “Nessa época, eu comprava fumo lá. Uma vez, um traficante me trapaceou, fiquei puto e fui tirar satisfação. Peguei umas coisas dele e disse que só devolveria se ele me desse a maconha que devia. Após um tempo, marcamos um encontro no Mangue, numa parte cheia de mato onde havia uma demolição. Quando cheguei ao local, dois caras pularam em cima de mim, me amarraram e colocaram uma faca no meu pescoço. Ficaram tomando pico a noite toda e ameaçando me matar. Eu chorei, pedi pelo amor de Deus. De manhã, consegui me soltar e fui a pé para casa. Quando cheguei, minha mulher estava desesperada”, conta um antigo frequentador do bairro, que pediu para não ser identificado.
Hoje o tráfico de drogas ainda existe, mas de maneira bem menos ostensiva. E a maioria dos moradores do Mangue – é bom deixar claro – não tem qualquer relação com o crime organizado. “São trabalhadores cujos filhos estudam em escola pública e frequentam o posto de saúde do bairro”, afirma José Luiz de França Penna, presidente nacional do Partido Verde e morador da Vila desde os anos 70.
Samba e futebol
Como toda boa favela, o Mangue tem samba, futebol e cerveja. “Aqui parece a Baixada Fluminense.
No fim de semana, o vizinho faz churrasquinho na calçada. Coloca mesa e cadeiras de plástico, bota um som e cerveja gelada”, afirma o artista plástico Gizé, que tem um ateliê no local. Muitos moradores fazem parte da Pérola Negra, a escola de samba fundada no bairro em 1973. Já as peladas são jogadas numa quadra na vizinhança com um time que leva o nome da comunidade.
A combinação de samba e favela em plena Vila Madalena é um atrativo para os cada vez mais numerosos estrangeiros que visitam a região. “É um diferencial. Os gringos chegam aqui e acham o máximo ver o churrasquinho rolando na vizinhança”, diz a artista capixaba Adriana Duarte, a Xiclet, que há nove anos tem uma galeria em frente à favela. Segundo Xiclet, a convivência com a população do Mangue é ótima. “Logo que cheguei, tive problemas com alguns moradores que me viam como forasteira. Mas, com a convivência, tudo se resolveu e hoje existe uma troca entre a gente. Eu atraio visitantes que compram cerveja no bar deles e dão um trocado para que guardem os carros na rua. Eles me ajudam quando preciso de serviço em casa. Se a torneira quebra, vem um deles consertar”, conta Xiclet.
Os antigos moradores, no entanto, afirmam que a vida na comunidade não é mais tão animada como era no passado. “O Mangue mudou muito. Antes a gente ficava conversando na porta de casa até tarde. A molecada jogava futebol na rua todo dia. Hoje aquele pessoal ali nem põe os pés para fora”, reclama Diva Aparecida Natali, 60 anos, apontando para os vizinhos abonados das novas casas ao redor.
Junto e misturado
Parte dos habitantes do Mangue paga aluguel para os proprietários dos lotes, muitos deles de origem portuguesa. Outros ocuparam terrenos abandonados e hoje lutam na Justiça pelo direito de posse por usucapião. Muitos têm o mesmo sonho: vender suas casas a preços milionários e dividir o dinheiro entre os familiares – quase sempre muito numerosos –, para que cada um possa comprar seu imóvel próprio na periferia. “Queremos vender nossa casa. O Otávio Zarvos [dono da imobiliária Idea! Zarvos] veio aqui, mas disse que é difícil a venda porque não dá para construir prédios altos nesse trecho do bairro”, afirma dona Diva. O pedreiro Gilberto de Oliveira Doria Jr. também pretende vender o lote onde mora com os irmãos. Sobre as transformações no bairro, ele diz: “É o progresso. Quem manda aqui é o dinheiro”.
As mudanças provocadas pela febre imobiliária são criticadas pelo arquiteto Carlos Motta, que possui uma loja-ateliê na rua Aspicuelta. “A Vila Madalena perdeu muito com a invasão de automóveis e edificações que não têm o DNA do bairro e estão ajudando a descaracterizá-lo. Uma construtora compra quatro, cinco casinhas, demole e bota um prédio que faz sombra em outras casas. Mexe com o subsolo para fazer garagens e atrair ainda mais carros. Esses prédios não estão na escala da Vila Madalena. Isso não é feito de maneira natural, está forçando uma barra.”
Para Nabil Bonduki, a coexistência da favela com prédios de classe média alta é sinal de diversidade cultural. “O Mangue é o único lugar da Vila Madalena que ainda abriga população de baixa renda. Essa mistura de classes sociais é importante para o bairro e para a cidade”, afirma. Segundo o urbanista, o charme da Vila nasceu da mescla de artistas, intelectuais e estudantes da USP – que foram morar ali a partir do final dos anos 60 – com o pessoal de origem mais humilde, os serralheiros, marceneiros e pedreiros que já habitavam a área e hoje são cada vez mais raros. Motta compartilha da opinião. E conclui: “O Mangue é um dos órgãos que fazem parte desse organismo vivo que é a Vila Madalena. Por isso mesmo, não deveria deixar de existir”.