Ler não é mais interpretar signos e símbolos apenas

por Luiz Alberto Mendes em

 

Leitura de Mundo

 

Outro dia, no ônibus com meu filho, Renato (16 anos), ele começou a passar mal. A condução estava lotada e estávamos em pé. Perguntei se queria descer ou se conseguiria contornar. Ele achou que dava para segurar. Aconselhei que respirasse fundo e distraísse a mente olhando pela janela. Fiquei de olho, mas ele já se movimentava e ficou bem. Sentamos logo em seguida.

O vento forte entrando pela janela trouxe farrapos de memórias. Durante minha infância eu vomitava nos ônibus. Na adolescência foi passando, mas ainda me sentia mal às vezes. A cabeça girava, ficava tonto e um mal estar tomava conta. Aprendi a lidar com esses sufocos controlando a respiração.

Jamais pude ler em qualquer tipo de veículo automotor. Sempre que tentei, a cabeça girava e a tontura se instalava junto com aquela horrível sensação de mal estar. Desisti.

Todo escritor a obrigação profissional de ler muito. Precisa viajar, conhecer pessoas, espaços, belezas, tristezas, superfícies e profundidades novas. O que ele junta dentro de si constituirá a base do levará a seus leitores. Não acredito em escritores de gabinete, muito menos de academias.

Mas naquele momento, ali no busão rodando pela BR-116, tive um insigh precioso. Não leio no ônibus, mas observo tudo. Procuro ler as pessoas que viajam comigo. Até então os observava lendo livros com muita inveja.  

Claro que preciso ler e até leio bastante. Mas já fiquei tempo demais preso lendo livros. Agora tomo consciência de outros campos de leitura. Além de signos e símbolos, tento ler com os sentimentos atentos a tudo que vejo. Leio calçadas e o que há nelas. Árvores, cães, pássaros, pessoas que passam, a beleza e a potência dos carros, motos, ônibus e caminhões. As fábricas, indústrias, lojas coloridas do verde/vermelho de Natal... Enfim, o mundo que vem a meus olhos ainda perplexos diante da diversidade de tudo que existe.

Esse é meu alimento criativo mais importante. Vem revestido de realidade, um espetáculo com sons originais. Machuca ver os olhos mortos dos mendigos, aqueles meninos viciados dormindo nas calçadas e famílias inteiras morando nas ruas. O sorriso de uma criança, a presença chorosa de um bebê de colo. A senhora cansada em pé e as poltronas destinadas a ela ocupadas por mocinhas de mini-saia mostrando as calcinhas.

O mundo de fora e o de dentro se encontram na saída e na entrada do busão. Caso chova, então, é um deus-nos-acuda! Aquele cheiro de cachorro molhado permeando o ar... O pessoal em pé querendo abrir as janelas, o ar viciado, o suor descendo pelo rosto e axilas... O pessoal sentado olhando desconfiado, sem querer abrir as janelas para não se molhar... E lá vai o comboio de almas trânsito adentro sem hora para chegar...

Puxa, talvez seja possível fazer poesia com praticamente tudo, não é mesmo? Foi muito interessante essa descoberta. Acho que levantei a cortina do que se chama leitura de mundo, sem querer. A vida vive a me surpreender; eu é que sou uma besta e vivo a reclamar. Perdoem-me.

                                    **

Luiz Mendes

02/02/2012. 

Arquivado em: Trip