Carecas de saber
Leandro Karnal e Monja Coen falam à Trip sobre ódio, eleições e redes sociais, temas presentes no livro da dupla, O Inferno Somos Nós
Ambos são carecas. Ambos têm milhares de milhares de seguidores e visualizações no YouTube. Ambos dominam a oratória, provocam insights na plateia em palestras e debates, falam sobre espiritualidade, vida e morte. Mas há, sim, uma diferença entre eles: ele é ateu; ela, monja budista.
Leandro Karnal e a Monja Coen lançaram a quatro mãos O Inferno somos nós, que tem ocupado um lugar na lista dos livros mais vendidos do Brasil. Além da popularidade dos dois na internet, o ano em que estamos — de eleições — promete momentos de pouca paz e muito conflito.
A reflexão da dupla no livro serve como proposta de busca por um caminho de mais reflexão e menos atrito, com mais respeito às liberdades individuais e opiniões de cada um. “Dê força ao amor, ao respeito e à coragem da manifestação de quem pensa de forma diferente. Está sendo estimulado o desamor e a raiva. Basta despertar e não ser manipulado pelo mal”, é a sugestão da monja. “Temos de entender que o outro é um ser autônomo e livre para se expressar. Amar é um sonho lindo e, creio, utópico. Não matando eu já estou satisfeito”, diz Karnal.
Trip. Se o inferno somos nós, título do livro escrito por vocês, como conseguimos desatar na gente os nós que provocam este inferno?
Leandro Karnal. Tecnicamente, estando o inferno em cada um, é mais fácil percebê-lo e desenvolver técnicas e reflexões de combate a estas “forças infernais” internas. Basicamente, ao inverter a frase de Sartre (o inferno são os outros), queremos trazer a parte do nosso eu que está envolvida na criação dos infernos, nossos e alheios. Queremos estimular a reflexão sobre nossa responsabilidade na cultura do ódio e em todas as coisas. O convite do livro é o estímulo da nossa parte no todo do ódio.
Monja Coen. Há tantos infernos. Inferno de ódio, de violência, de tributos infindáveis, de poderes deturpados, de mentes alucinadas, de manipuladores e manipulados, do desconhecimento de si mesmo. Zazen [meditação zen budista] é o portal principal. É o olhar da mente para a própria mente. Os textos sagrados budistas dizem que nenhum diabo suporta uma pessoa em meditação. Só ao ver a postura de uma pessoa meditando os diabos fogem apavorados. Diabo vem de dual, de dois, daquilo que separa e divide. E meditar une, junta os pedaços, encontra a sabedoria, compreende, acolhe, transmuta, sai dos infernos tenebrosos pois se torna e retorna à mente una, indivisível, pura, sensível, amorosa e acolhedora.
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A cultura de paz já está bem desenhada no papel, sinalizam vocês no livro. Como fazer com que essa cultura conquiste efetivamente mentes e corações?Karnal. Consenso, em primeiro lugar. Começa em ação prática na família e na escola: debates para compreender a diferença e não esmagá-la. Qual o limite disto? A lei. Não posso tolerar racistas ou pedófilos. Não se trata de uma opinião, mas de um crime terrível. Não existe relativismo para o campo não-ético ou imoral. Depois de insistir na educação, vem o desarme mais amplo: dissolver torcidas organizadas que se envolvem com violência regular, desarmar a bomba do trânsito, diminuir a desigualdade, proibir e combater a violência contra as mulheres, o racismo etc. Introduzir muitas penas comunitárias e alternativas para brigas e violências mais leves e penas duras para as graves. Depois do consenso vem a coerção. Ênfase em consenso diminui a coerção.
Coen. Sua Santidade, o 14º Dalai Lama, enfatiza que a compaixão não é visceral, mas pode ser treinada, estimulada, aprendida. Assim, precisamos estimular nossas conexões neurais, estimular os neurônios de forma a não responder a violência com violência. Compreender até mesmo quem é abusivo e violento, sabendo que essa pessoa também é fruto de uma sociedade violenta. A sociedade como um todo se transforma quando cada indivíduo se transformar. A cultura de paz inclui políticas públicas e o congresso é um espelho da sociedade. Não está separado. Todos nós precisamos nos tornar a transformação que queremos no mundo. Todos nós, eu e você também. A cultura de paz deve passar do papel à educação e a partir dela e do estímulo correto passar à ação.
Como amar o outro em tempos de ódio?
Karnal. Acho amar o inimigo um desafio religioso fascinante. Não espero tanto. Apenas preciso entender um pouco e saber que o outro tem direito à coexistência pacífica. Não acredito que possamos nos amar na totalidade, ainda que eu respeite a ideia cristã. Acredito que temos de entender que o outro é um ser autônomo e livre para se expressar. Não agredir já está ótimo. Amar é um sonho lindo e, creio, utópico. Não matando já estou satisfeito.
Coen. Não existe apenas o ódio. Não acredite no jargão. Dê força ao amor, ao respeito e à coragem da manifestação de quem pensa de forma diferente. Estão sendo estimulados o desamor e a raiva. Basta despertar e não ser manipulado pelo mal. Que o bem prevaleça.
Estamos próximos das eleições e carentes de lideranças fortes com um candidato de extrema-direita liderando as pesquisas presidenciais com um discurso totalmente contrário à cultura de paz. Estamos ferrados?Coen. Conseguiram o feito de criar o afastamento de uma presidenta legalmente eleita e honesta e recentemente aprisionar o candidato temido, pois tudo indicava que seria reeleito. Quem sabe ainda caiam em si e percebam que não é assim que a democracia funciona. De qualquer maneira, não acredito que os pensamentos neofascistas, discriminatórios e preconceituosos ganhem as eleições no Brasil. Estão aí para dividir as atenções e os votos, para ver o circo pegar fogo e distrair a atenção do foco principal. Lamentável. Mas nem tudo está perdido quando resta a esperança. Esperança, como diz professor Mario Sergio Cortella, de esperançar, de fazer algo, construir os alicerces de uma cultura de paz, justiça e cura da terra.
Karnal. Se você perguntar ao candidato Bolsonaro, nome oculto na pergunta, ele falará que seu desejo é a paz nacional e a harmonia social. Apesar de ser mais claro em suas posições conservadoras, não atribuo todo o ódio ao candidato. Há muitos projetos de esquerda e de direita profundamente autoritários e excludentes. Na verdade, contrariando a questão, acho que estamos com carência de estadistas e lideranças fortes. O que temos hoje são pessoas mais ou menos histriônicas e com poucas ideias.
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Qual é a sua meditação diária sempre que acorda para ser alguém menos violento consigo mesmo/a e com as outras pessoas?
Karnal. Ao deitar sempre faço um exame de consciência, hábito jesuítico que mantive. Examino as minhas atitudes e analiso onde fui menos generoso ou mais agressivo. Reflito o que gerou e como posso evitar isto. Ao acordar, passo ao menos 15 minutos na cama dispondo minha mente e meu corpo para buscar o melhor. Aumenta a consciência, porém não elimina minhas constantes imperfeições. Reconheço-me perfectível e não perfeito e repito um pouco da meditação final de Buda: "Não sou melhor e nem pior do que qualquer outra pessoa".
Coen. A vida pode se tornar um ato reflexivo e meditativo. Basta sentar com a coluna ereta, sem tensão, a cabeça alinhada, os ombros para trás e o diafragma livre para se movimentar. Então, basta respirar conscientemente e permitir que sua mente se torne leve e profunda como o vasto céu que não recusa, seleciona, expulsa, prende ou exclui qualquer nuvem. Ser capaz de ver a realidade com clareza, perceber as nuances intermitentes de alegria e tristeza e, sem medo do nada, viver com plenitude. Estar presente, em atividade, fazendo o bem com excelência. Vamos tentar ver o bem em todos os seres, vamos treinar descobrir o sagrado em cada manifestação da vida? Tudo é uma questão de treinar “adequada mente”.