36 horas no Kosovo
Brasileiro conta, em depoimento exclusivo, como o isolamento no leste europeu contribui para a efervescência artística e cultural do país
Depois de desbravar quase meio mundo, não esperava me surpreender tanto com uma nação. Mas o Kosovo tem algo em comum com outros países em iminente estado de conflito que visitei: parecem estar vivendo a vida como se fosse o último dia. E a energia que transborda disso é inexplicável.
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O Kosovo é uma província independente da antiga Iugoslávia. Quando o país socialista ruiu, o desmembramento das repúblicas trouxe novos conflitos, culminando com a guerra do Kosovo ao final da década de 1990. Mas o Kosovo pós-guerra continuou renascendo. Em 2008, proclamou-se independente da Sérvia, mas luta até hoje pelo reconhecimento internacional como nação. Mais de 100 países já o fizeram – o Brasil, ainda não.
Saber como o país nasceu é imprescindível na hora de explorá-lo. O letreiro NEWBORN, principal selfiepoint de Pristina, capital do Kosovo, representa bem essa jovem nação, sempre se reinventando e renascendo mesmo sob iminentes conflitos e tensões políticas. Existe também outro fator de fundamental importância para entender a efervescência criativa que transforma o país: sua jovem população – mais de 75% – tem menos de 35 anos. É muita adrenalina!
Tive a oportunidade de desbravar por 36 horas o epicentro dessa ebulição criativa com alguns dos protagonistas dessa mudança. Depois de uma intensa maratona para chegar até a Riviera albanesa – saindo de Londres até Corfu na Grécia –, atravessar o mar Jônico, escapar do maior terremoto das últimas décadas na Albânia e encarar quatro horas nas estreitas e sinuosas estradas albanesas, finalmente chegamos na fronteira do Kosovo. A principal e moderna rodovia que cruza o país já deixa claro os sinais de desenvolvimento da região.
Quem nos recebeu em Pristina foi Ideal Vejsa – ex-refugiado que teve parte da família massacrada pelo exército sérvio e hoje é CEO do Maden Group, um dos icônicos escritórios de arquitetura que vêm transformando a cara do país. Já ganharam reconhecimento internacional nas principais publicações do setor. Dez anos depois da fundação do grupo, Ideal e seu ex-sócio, Memli Dushi, orgulham-se de terem contribuído para redesenhar o país e sua capital através do design e da arquitetura contemporânea.
Perguntei aos dois que efeito as tragédias pessoais e guerras pelas quais passaram tiveram em suas vidas. “Nós fomos refugiados. Tínhamos que ser fortes e lutadores. Mas precisávamos olhar para o nosso futuro, mudar nossa realidade e nosso país”, comenta Ideal. Foi mantendo a criatividade em primeiro plano que Ideal e Memli colocaram seu escritório no mapa da arquitetura mundial, com prêmios internacionais e, atualmente, exportando seu trabalho criativo para Alemanha e Bélgica.
Um de seus projetos transformadores é a Escola Americana do Kosovo. “Nossas emoções estão por trás desse projeto. Pensamos em como era a escola quando éramos criança e como gostaríamos que ela fosse no futuro. Criamos algo que incorpora a natureza a amplos espaços coloridos, multifuncionais e que oferecem um ambiente positivo e energético para nossas futuras gerações”, conta Ideal.
Visitamos a escola e lá conversamos com Keith Miller, professor americano recém-chegado ao país estimulado pelos bons salários oferecidos a professores estrangeiros e o baixo custo de vida local. Ele acredita que o país experimenta um importante momento de transformação, mas que ainda tem muitas lutas pela frente. “O sentimento das crianças e adolescentes ainda é muito diverso. Há os que se veem permanecendo no negócio dos pais já bem sucedidos, mas há outra parte engajada em buscar um futuro diferente. ”, explica Miller. “Nós tentamos promover a ideia de que eles são os agentes dessa mudança”, conclui.
Quando perguntado se teve receio de se mudar para um país tão isolado, Keith esclarece: “Apesar de ter pesquisado bastante, não sabia exatamente o que encontraria aqui. A verdade é que a comunicação é fácil, sempre há alguém que fala bem inglês e é tudo muito seguro. Minha filha pega transporte escolar sozinha e me espera em um restaurante perto de casa, onde vou para encontrá-la, sem problemas”.
Vida noturna
Durante a noite, Ideal e Memli nos guiaram pela noite Kosovar, conectando-nos com nomes quentes que têm se engajado na ebulição cultural do país.
Um deles é Genc Salihu, músico e ativista cultural há mais de 25 anos, hoje à frente do Dit & Nat, uma popular livraria-bar que concentra o público jovem descolado e reúne bandas, escritores e outras personalidades da cena artística. Era uma terça-feira, a casa estava lotada e a energia era absurdamente vibrante. Perguntamos a Genc (pronuncia-se Gantz) de onde vinha essa energia. “O Kosovo está efervescente porque está completamente isolado. Quando há isolamento, há muita energia concentrada. Muita foi usada para bobagens, mas pessoas talentosas usam-na para seguir em frente, para transformar, independentemente do que acontece na política do país”
Um dos ícones desse fervor criativo é a cantora Dua Lipa, de origem kosovar. Seus pais fugiram de Pristina na década de 1990, durante a guerra, e se refugiaram em Londres. Em 2018, já mundialmente famosa, Dua Lipa voltou com seus pais ao Kosovo para organizar o Sunny Hill Festival com o objetivo de colocar o Kosovo no mapa da música mundial – 25% de toda a arrecadação de ingressos foi revertida para a Sunny Hill Foundation, que investe em jovens criativos do país.
E qual o sentimento dessa jovem população em relação ao futuro do Kosovo? Genc responde: “ Eu não acho que eles têm uma visão clara do que querem, infelizmente. Não há liderança no país. Mas aí já estamos falando de política. Há muita angústia, muita frustração. Estamos em um país pequeno, mas ainda que extremamente alinhado com os interesses americanos, há muita espontaneidade no que se cria aqui e usamos essa energia criativa para seguir em frente."
Algumas burocracias contribuem para essa falta de visão de futuro. Os kosovares praticamente só podem viajar sem visto para a Turquia. Além disso, conseguir autorização para viajar a qualquer outro país fora da região pode ser um tormento. Muitos desistem sem sequer tentar. “O que nós precisamos é de mais troca cultural com o mundo. Mas não podemos ir até ele, precisamos que o mundo venha até nós. Eu quero expressar minha gratidão pelo que vocês estão fazendo. Aqui é extremamente seguro e quaisquer que sejam seus interesses ou orientações sexuais, a diversão aqui está garantida“ vibra Genc quando convidado a mandar uma mensagem aos brasileiros. Dali, seguimos todos para outros dois bares badalados e lotados até o amanhecer da quarta-feira, quando, ainda em êxtase, voltamos ao Mami's Hostel (com design assinado pelo Maden Group).
(Apoio: David Cordeiro e Victor Gurgel)
Um país que consideramos isolado, perigoso e desconhecido guarda uma das mais belas, hospitaleiras e talentosas pessoas que já conheci. Perigoso mesmo é a desinformação. O problema é que ignorância e indiferença machucam. E nossa zona de conforto não nos permite perceber.
Créditos
Imagem principal: Pablo Guterres