Pedala, parceiro
"Eu não tinha história na bike, minha família não tinha, o Brasil não tinha e foi possível construir um caminho até o topo do mundo”, reflete o primeiro brasileiro campeão mundial de mountain bike
Quando alguém manda você pedalar, a dica é não esperar nada de ninguém e correr atrás do que deseja. Em papo reto: se vira! Quando era criança e ficava horas sentado à beira de alguma montanha em Petrópolis, Henrique Avancini sabia apenas que tinha o desejo de desbravar cada uma delas e daria um jeito de ir atrás disso. “Passei a infância toda observando e pensando em fugir, subir todas aquelas montanhas até o topo”, lembra. Aos 8 anos, o pequeno Avancini ganhou o presente que daria a liberdade desejada: a bicicleta.
Foi seu pai, Ruy Avancini, dono de uma bicicletaria, que se virou com o que tinha para construir uma magrela a partir de um quadro quebrado. O mimo foi possível porque um cliente tentou entrar na oficina com uma bicicleta no teto do carro. “Meu pai cortou o quadro, juntou peças que outros clientes descartaram por lá e montou uma bicicleta. Para mim, era a melhor bike do mundo”, lembra.
Agora, 21 anos depois, Avancini tornou-se o primeiro brasileiro campeão mundial da maratona de mountain bike. O título foi conquistado na Itália, no dia 15 de setembro, em uma prova em que percorreu 102 km, a 4 mil metros de altitude. As mais de cinco horas da prova não foram nada para quem começou ainda na infância com o desejo de pedalar cada vez mais longe, mesmo quando a distância parecia inalcançável.
Se liga no salto
Em 2010, na véspera de viajar para competir, Avancini recebeu um telefonema do manager da equipe. “Ele disse que era para eu, sinceramente, repensar a carreira porque eu não era bom o suficiente para competir entre os melhores. Foi um tapa na cara”, conta. Ele não gosta do papel de vítima, faz a ressalva, mas diz que resolveu divulgar essa história porque acha que pode servir para inspirar outras pessoas.
A pedalada para sair da situação foi entender que realmente não tinha o talento que os caras tinham, mas que poderia buscar algo que eles não tivessem. “Na preparação física, mental e de estratégia, encontrei esse caminho”, acredita o atleta.
Apesar de ser segundo do ranking mundial e destaque na equipe Cannondale, ele ainda garante não ter tanto talento quanto seus concorrentes. Conforme evoluía nos treinamentos, percebia que seu grande salto poderia estar guardado no trabalho mental, qualidade que considera sua principal força no esporte. E, assim, lá está ele, sempre batendo guidão no pelotão da frente do ciclismo mundial.
Mundial na mala, tudo pronto para buscar o ouro na Olimpíada de Tóquio? Calma. Avancini é um atleta obstinado, mas obcecado jamais. O tal do poder mental. “A minha carreira caminha para eu largar bem em Tóquio, como candidato a medalhas. Mas não tenho obsessão por uma prova, a Olimpíada dá uma chance apenas. Ficar obsessivo me limita. Vou trabalhar para chegar bem, mas não a coloco como necessária para seguir a minha missão”, diz o ciclista.
Conexão cidade-montanha
Avancini acredita que seu sucesso como atleta possa dar um gás para mudar a cultura em torno da bike no país, especialmente pelo recente incentivo da magrela em grandes centros urbanos. O que ele considera fundamental, pelo poder transformador que vê no veículo. “Estamos em um momento precoce e seguimos atrasados. Mas é algo positivo para sair desse momento e se tornar algo cultural, um modal válido e aceito de fato, encarado como eficiente, porque ele é”, diz, imaginando que essa transformação possa impactar no esporte.
Uma vez plenamente incorporada ao ambiente urbano, a bike poderia também crescer como opção de lazer e ainda impactar na relação das pessoas com o sociedade e com a vida. “A bicicleta instiga isso de ir mais longe, a entender melhor a experiência da vida, é uma escola de muito valor. Sempre que subo na bike, aprendo alguma coisa nova. Não é só para ser um biker, um atleta, é uma coisa legal viver essa experiência. E não se preocupe com o que se tem. Não importa o equipamento, a condição da rua, a bicicleta que você vai andar, se você está fazendo certo ou não”, indica.
Do começo ao fim da picada
Avancini é de Petropólis, cidade formada no Vale da Serra da Estrela, a 65 km do Rio de Janeiro, com o entorno recheado de encostas íngremes e montanhas largas, cenário ideal para forjar um mountain biker. Mas querer pedalar apenas não basta, precisa ter um lugar pronto para isso. E ele não se furta da missão. “A montanha é viva, tem chuva, erosão, o mato cresce. Tem que fazer manejo e isso vai mudando”, explica, ao lembrar que costuma fazer esse trabalho, desde a abertura das trilhas até a limpeza e a manutenção, acertos necessários em curvas, e até lidar com a presença de animais — até uma onça já cruzou seu caminho. Ganha a natureza e o atleta. “O pessoal tende a cuidar mais de um lugar que está bem tratado. E, para quem faz a trilha, também a pilotagem fica diferente”, ensina o campeão, que vê nesse trabalho parte importante de sua carreira.
Assim, se cruzar pelo caminho dele, não será raro encontrá-lo em cima da bike, mas não estranhe se o vir percorrendo as trilhas de enxada, picareta, foice e facão nas mãos.
A preocupação de preservar a trilha é também deixar o caminho mais fácil para os outros. Inspirar é algo que o move no esporte, não só a busca por vitórias. “Se não estou mudando nada na vida de ninguém, estou perdendo. Sei que posso inspirar o outro a ser melhor para a vida. Eu não tinha história na bike, minha família não tinha, o Brasil não tinha e foi possível construir um caminho até o topo do mundo.”
Quando fala do caminho que construiu, o mountain biker lembra que a chave para buscar o que se deseja é “delegar menos e pensar no que pode ser feito para agregar e melhorar a situação individualmente, sem deixar de pensar como isso vai impactar no coletivo”, o que inclui tirar o lixo do caminho, por exemplo. Ele pensa que esta é a melhor maneira de conscientizar as pessoas. “Quem faz isso, vai ficar sem graça de descartar algo quando perceber que está tudo limpo. A limpeza coíbe e a pessoa é influenciada com mais eficiência”, pensa.
E quando pensa no individual, na carreira, para dar um salto de qualidade no esporte, optou por desbravar as montanhas em competições na Europa, ao lado dos melhores do mundo. E, mesmo que por lá não precise limpar e cuidar das trilhas com o mesmo empenho, o hábito de percorrer os trajetos caminhando não ficou para trás. Há, porém, outro objetivo: “Faço isso mais para conhecer as trilhas e me conectar à natureza local antes da competição”.
O poder mental, sempre.