Facundo Guerra: o dono da noite paulistana

Um dos mais bem sucedidos empresários do país é tímido e verborrágico, fumante e corredor, brasileiro e argentino. Colecionador de bichos empalhados, com mestrado e doutorado em política

por Fernando Luna em

Crédito: Gil Inoue

Mesmo alguém chamado Facundo já foi criança um dia. E, num desses dias, Facundo zanzava entre as gôndolas de um mercado perto de sua casa, quando deu de cara com um aprazível saco de balas, que lhe pareceu absolutamente irresistível – não fosse um detalhe. Seu preço estava além dos trocados que trazia no bolso.

Para sua alegria, o código de barras ainda era ficção, e o valor de cada uma daquelas centenas de mercadorias coloridas estava marcado em etiquetas. Etiquetas removíveis. Assim, num rompante de malandragem peso pluma, trocou o preço de seu açucarado objeto do desejo pelo de algo cujo valor coubesse em seu orçamento juvenil.

Naturalmente, o caixa sacou a mutreta e acionou o gerente, que por sua vez ligou para o responsável do dimenor. E lá se foi o doutor Onofre Guerra, médico homeopata, resgatar o filho daquele castigo no quartinho dos fundos da loja.

“Quando ele chegou, me disse uma coisa que nunca vou esquecer”, lembra Facundo, que recita as palavras com sua voz mansa: “Ó, teu sobrenome tá emprestado. Teu avô foi torturado por ele. Já me fodi muito pra não enlamear esse nome. Não me foda o Guerra por 1 cruzeiro”. 

PERNAS ARGENTINAS

Facundo Guerra nasceu há 41 anos em Córdoba, na Argentina, justamente porque seu avô foi torturado e seu pai se fodeu muito.

No pequeno município paulista de Presidente Bernardes, José da Silva Guerra, o avô, levava uma jornada dupla de médico e militante do Partido Comunista Brasileiro. Se a popularidade com os pacientes não foi capaz de impedir uma penca de detenções brutais durante a ditadura militar, serviu ao menos para que lhe poupassem a vida.

Vendo o regime apertar no início dos anos 70, recomendou ao filho, que lhe herdara tanto a vocação profissional quanto política, que fosse estudar medicina na Argentina, então voltando a respirar ares civis. Onofre trocou a Juventude Comunista pela provinciana Córdoba.

Entre uma aula e outra, gamou na jovem vendedora do quiosque instalado em frente à universidade. Ela também achou graça naquele brasileiro, que sempre pedia para ver o que estivesse na prateleira do alto – obrigando a argentina a subir no banquinho e revelar toda a plenitude de suas pernas.

HIPSTERLAND

Três filhos e uma abertura política depois, a família Guerra decide se estabelecer no Brasil. “A gente era classe média baixa, não vou dizer pobre porque não era, mas não tinha grana pra porra nenhuma”, resume Facundo. “Morava em Santa Cecília [região central paulistana], que não era a hipsterland que tá se tornando.”

Graças a bolsas de estudo, frequentou os colégios de elite Mackenzie e Bandeirantes. Graças ao sotaque hermano e à timidez, frequentou o punho dos valentões da escola. “Eu era o argentino bobão”, reconhece, hoje do alto de seu 1,85 metro cevado em treinos de boxe e corridas de 10 quilômetros.

Bom nerd, cursou engenharia de alimentos no Instituto Mauá de Tecnologia (bolsista, de novo). A diversidade de interesses o levaria a uma pós-graduação em jornalismo internacional e, depois, ao mestrado e doutorado em ciências políticas. Sua carreira de executivo passou pelas multinacionais Tetra Pak, American Express e Aol, até ser bruscamente interrompida pelo estouro da bolha da internet: aos 30 anos, perdeu o emprego de gerente na gigante norte-americana de tecnologia.

MARRETADA

Em vez de preparar um currículo, Facundo aceitou o convite para abrir uma boate com um amigo que já era do ramo, atual ex-amigo (“Conhecer o [José] Tibira foi a melhor coisa que me aconteceu. A segunda melhor foi me afastar dele”).

Nascia o Vegas, que logo virou referência na revitalização do Baixo Augusta. Revitalização? “Falar em revitalização é quase fascista, né? Não existia vida antes, se pobre frequenta não tem vida?”, rechaça Facundo. “Não tinha essa coisa heróica, tava interessado em aluguel baixo.” Sete anos depois, baixaria as portas, vítima do hype que ajudou a criar, inviabilizando os aluguéis da região.

Mas o Grupo Vegas já era realidade. Hoje, emprega cerca de 300 funcionários para atender, segundo Facundo, mais de 800 mil pessoas por ano nos bares Z Carniceria, Volt e Riviera, e nas casas noturnas Lions, Yatch e Cine Joia – todos em São Paulo.

Facundo quer mais, muito mais. Planeja abrir quase dez novos espaços nos próximos dois anos. Dois deles, já em obras: o Museu do Agora, espaço de cultura no que restou do Belvedere Trianon, próximo à avenida Paulista, e uma casa de shows onde ficava o legendário Aeroanta, no Largo da Batata. Um terceiro, o bar PanAm, no topo do Maksoud Hotel, abriu no final de janeiro. “Tá na hora da marretada, então vou marretar até me estraçalhar”, diz. “Tô com uma mão muito boa.” 

Trip. Você postou no Facebook: “Um salve para aquele que será o melhor ano da minha vida. 2015, te tenho pelos chifres”. Pelos chifres?

Facundo Guerra. É que não acredito em sorte. Há dez anos, invisto na minha reputação. Empresário brasileiro é meio extrativista, tenta tirar o máximo de lucro no menor tempo possível. Desde que abri o Vegas, aposto no meu capital social, na minha reputação, e não no capital financeiro, pra colher os frutos mais pra frente.

O ano promete ser difícil, você não fica preocupado em abrir tantos lugares novos? São quase dez espaços novos entre 2015 e 16, mas não tenho medo. Os projetos precisam de pouco investimento, todos têm um aluguel muito baixo, um ticket médio baixo. E o entretenimento sofre menos com a crise. Por mais que a pessoa tenha se fodido, precisa de escapismo para suportar.

O tamanho dos seus negócios mais que dobraria. Mas os projetos não são variações sobre o mesmo tema. Não tô montando mais um barzinho... No Maksoud Hotel, vão ser o bar PanAm, o café com comida orgânica e floricultura Planta e o cinema em parceria com a rede francesa MK2. O restaurante no terraço do prédio da Gazeta, na avenida Paulista...

Esse em parceria com o chef Alex Atala? Isso, queremos fazer também um parque público lá no alto. Tem também uma casa de shows onde era o antigo Aeroanta, no Largo da Batata. O Drive In, uma sala de cinema no Belas Artes. O Clube,um clube de música via crowfunding. O Museu do Agora, no Belvedere Trianon, dedicado a artistas sem galeria, músicos sem casa, iniciativas sem espaço. E estamos tentando fazer uma parceria público-privada para operar os planetários dosparques do Ibirapuera e do Carmo.

Planetários? Em toda cidade que aterrisso, a primeira coisa que faço é ir ao planetário. Não consigo acreditar que em São Paulo não tenha um planetário funcionando. Uma cidade que não tem horizonte, que não tem estrela...

O risco não aumenta quando você sai da sua área? O que você aprende em uma, replica na outra.

O que casa noturna tem a ver com planetário, cinema e floricultura? O serviço, a programação e a relação da pessoa com o espaço. Tudo isso você vai encontrar dentro dessas estruturas de entretenimento.

Qual o faturamento do Grupo Vegas? Sinceramente, não sei. Não me preocupo com número.

Alguém tem que se preocupar com número. Aí tenho um sócio que cuida só da parte financeira, com a equipe dele. Meu homem da máxima confiança. Ele me diz se tá tudo bem, se posso relaxar. Sempre tive uma relação quase virtual com dinheiro. Muito dinheiro passou na minha mão, muito dinheiro foi embora… Quanto dinheiro preciso acumular? Vou pegar meus milhõezinhos e investir em que, cobertura na Vila Olímpia? Em carro importado, casa em Maresias?

''Quanto dinheiro preciso acumular? Vou pegar meus milhõezinhos e investir em que, cobertura na Vila Olímpia? Carro importado, casa em Maresias?''

A casa noturna Club Yacht - Crédito: Divulgação

Qual seu patrimônio pessoal? Tenho um apartamento de 90 metros quadrados na [rua] Bela Cintra, e não fica no lado do Jardins. Reinvisto tudo, tudo, tudo [em novos negócios]. Tô num jogo de pirâmide: tudo que ganho num empreendimento coloco no outro. E depois no outro.

Pirâmide parece meio irresponsável. De certa maneira, não tô sendo o cara mais responsável do mundo. Vou cacifando, porque acredito no que tô fazendo. Também tenho que ter lucro, não sou ONG. Não tô a fim de pagar pros outros se divertirem.

Você é sempre sócio majoritário? No Volt, no Z e no Joia sou majoritário. No Yatch, Lions e Riviera tenho 50%.

Mesmo assim não junta dinheiro? É engraçado, porque todo mundo me vê meio como Tio Patinhas. Tiro entre 15 e 20 paus por mês, salário de executivo de médio escalão. Como meu custo de vida é baixo, ainda sobra. Meu colchão deve ser de 150 mil reais, se tanto. Não é questão de pagar de pobre, de modesto. Só que os lucros que os lugares geram financiam novos lugares. Nunca tô num lugar, estou sempre no próximo.

É uma ansiedade, você não consegue curtir o lugar? Nunca consigo curtir o lugar. Vou me arrepender em algum momento, tenho certeza, mas não consigo relaxar o rabo.

Consegue ficar sem fazer nada? Nunca, tô sempre fazendo alguma coisa.

Você compartilhou no Kindle um trecho do Henry Miller que tem a ver com isso: “Manter a cabeça vazia é um feito e tanto”. Alienação é uma coisa chave na minha vida. Não leio jornal, não tenho cabo há anos, não me relaciono com TV aberta. As notícias respingam em mim via redes sociais, um feed que vou silenciando cada vez mais... O único veículo que acesso é o Gizmodo gringo, que me fala de amanhã a partir de hoje.

Queria não fazer nada? Queria, sou um vagabundo de espírito. Um dia faço isso, mas agora é meu tempo. Tô superpotente, com aquela energia de jovem-leão-velho. É a hora da marretada, então vou marretar até me estraçalhar. Tenho muita sorte de viver isso. Muita gente apaga antes do tempo, nem carbura. Tô vivendo uma vida foda. Tô com uma mão muito boa.

''Por mais que eu recupere símbolos da cidade, no fundo vendo álcool. [...] Na minha cabeça, como botequeiro, sou um dealer legitimado pelo estado''

O que é mais difícil no Brasil: ser argentino ou empresário? Ser argentino hoje em dia nem é mais uma questão. Escolhi ser brasileiro, tenho dupla cidadania. Sou mais brasileiro que muito cabra que conheço... Ser empresário no Brasil tem a burocracia pesada, a dificuldade de acesso à tecnologia, tudo isso. Por outro lado, tem um mercado foda, um monte de coisas que ninguém fez. Vai no Brooklyn montar mais um café... Fodeu, já tem 30 cafés diferentes. Aqui, não.

Você tinha sotaque quando chegou? Tinha, meu primeiro idioma foi lá na Argentina, me confundia muito no português. Minha mãe fala que fiquei uns anos mudo quando cheguei ao Brasil. Só voltei a falar com uns 5 anos.

Era zoado na escola? Mano, eu era o argentino bobão. Meu número no colégio era 24, foda... Era péssimo em esporte, nunca tinha treinado. Nasci com os calcanhares esmigalhados, não andava direito. Usava aquelas botas ortopédicas pesadonas, sentia muita dor. Tive que colocar pino de platina.

Com quantos anos? Uns 12, não podia ser operado antes porque meu pé estava crescendo. Fiquei dois anos em recuperação, na cadeira de rodas. Também não cortava o cabelo direito, minha mãe achava lindo meu cabelo de cuia... E ainda era cu de ferro, sempre fui o melhor aluno ou estava entre os cinco melhores.

Apanhava no colégio? Levava tanto cascudo que parei de ir pro recreio e ia pra biblioteca. Em cinco anos li toda a enciclopédia Conhecer, a coleção Os Bichos, Asterix, Tintim.

Quando começou a devolver? Ah, mais tarde. Uma hora você cansa de apanhar. Como já tinha apanhado muito, tinha uma vantagem: não tinha medo de apanhar. Quem batia muito não tava acostumado a apanhar. Era uma vantagem minha... Não sei se tô romantizando, mas sempre tive a impressão de ser underdog. Não fui fazer pós, mestrado ou doutorado à toa: foi porque a imagem que tinha de mim mesmo foi deformada pela minha [baixa] autoestima. Sempre me vi menor do que aquilo que fazia. Até hoje, acho tudo uma paspalhada. Na minha cabeça, como botequeiro, sou um dealer legitimado pelo estado.

 ''A noite é um outro mundo. Você é um office boy, mas na noite se veste de mulher, tem outro cacife social. São Paulo, superconservadora de dia, berço do malufismo, é libertária pra caralho à noite''

Quebrando tudo no antigo Aeroanta, casa de shows ícone dos anos 80 e um de seus novos projetos - Crédito: Gil Inoue

Por vender álcool? Não é moralismo? Não é uma questão moral, é ética mesmo. O álcool é uma droga, tenho amigos que mascaram a dependência indo beber na boate... Por mais que eu possa ter a melhor infraestrutura, recupere um símbolo de identidade paulistana, a papagaiada que for: no final das contas, vendo álcool.

Seu maior faturamento vem da bebida? É, no final das contas é isso que tô vendendo. Tudo bem, no Riviera vendo álcool e comida. No Joia vendo só álcool, às vezes a bilheteria equilibra o custo do artista, o lucro vem do álcool.

O que incomoda no álcool: ser legitimado pelo Estado ou ser uma droga? Ser uma droga, não. Cada um escolhe seu veneno, poison of your choice. Me incomoda é participar dessa indústria... Uma vez me encontrei com o presidente global de uma marca de vodca. Vem um gringo pra São Paulo, os caras me chamam pra conversar sobre o mercado. Sou aquela membrana do underground possível pra uma corporação...

O cara se sente seguro. Exatamente, sou limpinho. O gringo falou: “Você trabalha com noite, é tão glamoroso, as pessoas estão sempre celebrando a vida”. Truta, onde você esteve?! Boate não é necessariamente o lugar mais feliz do mundo. Ao mesmo tempo, cumpre uma função superimportante, de escapismo. Então, tenho uma relação meio tensa com vender álcool, esse álcool coberto por uma camada dourada.

O que bebe quando sai à noite? Água, nem energético bebo mais. Não bebo álcool e também não gosto de refrigerante.

Você nunca bebeu? Devo ter tomado uns dois porres na vida. Como comecei tarde minha vida social, passei longe dessa afirmação da hombridade pelo álcool. Tentava beber, botava um pouquinho de vodca e enchia de Fanta, mas não suportava o gosto do álcool.

Qual foi a última vez que bebeu? Anos 90, num porre com uns amigos de infância... O banheiro do bar era muito podre. Acordei todo mijado, abraçado a uma latrina. Sou incompatível com o efeito e o sabor do álcool, do ponto de vista organoléptico mesmo.

E outras drogas? Nunca tive uma relação muito forte com droga. Tenho medo de me prejudicar fisiologicamente, de impactar meu cérebro, meu poder de processamento. Uso cannabis pontualmente. Reservo a velhice para o consumo de entorpecentes. Nos meus 60 anos, vou me drogar todo santo dia [risos].

Por quê? Não é comédia, acho que as drogas são consumidas no momento errado das nossas vidas.

O que planeja usar? Anfetaminas, porque acho que vou precisar de uma carga extra de energia. Ácido, ecstasy. Quando você é jovem, a vida já te apresenta muita chance de experimentar outras sensações, sem drogas. Quando a vida vai ficando mais entediante, a droga é uma ótima maneira de se livrar do peso da velhice.

O que já experimentou? Experimentei tudo uma vez: ecstasy, maconha, ácido, cocaína, mescalina, ópio, heroína…

Como foi com heroína? Injetando e dando tiro, mas foram poucas vezes. O problema é que dissolve seu ego, ao ponto de você deixar de existir como indivíduo. Me lembro que dei um shot de he- roína e por pouquíssimo tempo fui uma almofada, de um jeito muito bizarro... O [filósofo Félix] Guattari e o [Gilles] Deleuze falavam dos devires, da capacida- de de você ter uma alteridade dentro de si mesmo. Quando tomei Bentyl, um xarope, me lembro que virei um gato, fiquei de quatro miando a noite inteira.

Tô com medo de perguntar o que você virou quando tomou ácido. Tomei ácido uma vez no show do AC/DC, foi uma merda. Porque tem a droga e a circunstância... Um dos poucos preconceitos que tenho na vida é com a cocaína, acho uma droga horrorosa.

Por quê? É uma droga produtiva. Não cria uma alteração de consciência, você reforça quem você é. E você tá reforçando o tráfico, os fabricantes de arma, todo esse círculo vicioso que passa pela ilegalidade. Acontece com qualquer substância proibi- da, mas com a cocaína é em maior escala.

A solução é legalizar as drogas? Legalização geral. Não sei de que maneira... Impedir a busca por um alterador de consciência é impossível. E a ilegalidade só cria um regime de controle de negros e pobres. Droga é ilegal um pouco também por causa desse mecanismo de controle.

Seu mestrado fala da resistência à sociedade de controle. Tava preocupado com o seguinte. A resistência no século 19 passava pela sabotagem, jogar tamanco na linha de produção... No século 20, pela revolução. Por onde passaria no século 21? Quando a internet apareceu, era aquela coisa utópica. Quando escrevi a tese, dez anos atrás, já falava: não, se a internet tem uma origem no Estado, se foi apropriada pelo Estado, o controle vai ser do Estado.

"Tomei ácido uma vez no show do AC/DC, foi uma merda. Um dos poucos preconceitos que tenho na vida é com cocaína, acho uma droga horrorosa"

Sofria preconceito no mestrado? Não sei se preconceito, mas não me levavam mui- to a sério. E tudo bem. Meu mestrado afetou profundamente a maneira como eu ve- jo o mundo. Você não sai incólume quando entra em contato com Deleuze, Foucault, Nietzsche ou, sei lá, Clastres... É um pensamento muito vivo, muito potente. Tem um esgarçamento da sua visão de mundo.

Depois você ainda faria doutorado. Pra que fui fazer doutorado? Pra porra nenhu- ma, até hoje não fui buscar meu diploma. Fiz pra provar pra mim mesmo que podia, pra me sentir menos imbecil, menos bur- ro. Por que abri sete boates, e vou abrir mais dez lugares? Pensa, vou ter que lidar com essa parada toda pelo resto da minha vida, vai ser minha maldição. Hoje tô bem, abrindo um monte de lugares, recebendo atenção... Daqui a 20 anos, malandro, vou desmontar tudo isso, e ninguém vai estar aqui pra me ajudar. E vai ser duro, quanto mais você cresce, maior o tombo. Pode ser que eu leve um puta tombo, pode ser que tenha um final feliz...

O que pensa em fazer quando parar? Dar aula, se tiver dinheiro suficiente para sobreviver com salário de professor.

Carreira universitária? Não tenho paciência pra dar aula pra gente que está entediada, fingindo que tá te ouvindo. Penso em voltar a dar aula, tive muito prazer nisso durante bastante tempo. 

Dava aula de quê? De redação pré-vestibular, na PUC. Era meio social, a gente cobrava dois blocos de sulfite de alunos que não podiam pagar o cursinho, conseguimos convênio com a xerox da universidade pra imprimir as apostilas. Foram uns quatro, cinco anos. Já era dono do Vegas.

Dono de boate e professor. Trabalhava à noite, chegava às 7 da manhã pra dar aula até 4 da tarde. Não aguentava, minha saúde começou a detonar. Uns anos depois, quando já tava com o Lions, também dei aula de alfabetização para adultos por dois anos.

O que te interessava nessas aulas? Essa relação entre professor e alunos de mundos completamente diferentes é muito rica. Você aprende pra caralho, e não tô jogando chavão. Você começa a medir a sua realidade como uma cota da realidade do outro, você se sente mais afortunado porque tem acesso às coisas...

O paulistano tá mais orgulhoso de São Paulo? Tá ficando. Carioca bate no peito, gaúcho é quase separatista... Paulistano nunca teve orgulho da cidade. Sempre teve uma relação de extrativismo. “Vou fazer minha vida e fujo quando tiver 40 anos.” Agora a gente tá criando amor pela cidade de São Paulo.

Como é viver de entretenimento numa cidade que só pensa em trabalho? O entretenimento é proporcional ao trabalho. Onde se trabalha muito, se festeja muito. E a gente trabalha pra caralho. Precisamos escapar da vida modorrenta, do trânsito, da violência. Não sou eu que digo, é a imprensa gringa: São Paulo tem uma das maiores noites do mundo.

''Tô superpotente, com aquela energia de jovem-leão-velho. É a hora da marretada, então vou marretar até me estraçalhar. Tô vivendo uma vida foda. Tô com uma mão muito boa"

Quantas vezes por semana você sai à noite? Saio uma vez por mês, se muito. Ba- sicamente, pra ver show. Acordo às 8 e vou dormir 11, meia-noite no máximo.

E quem cuida das suas casas noturnas? Pessoas em que confio, meus sócios... Minha função não é mais ficar na operação.

Como saber o que funciona à noite sem sair? Acompanho tudo pelas redes so- ciais. Um amigo vai numa festa e vejo o line-up, as fotos do espaço, ouço o podcast. As redes me libertaram da necessidade de estar no lugar. Mas, como nunca olhei mui- to para a concorrência, o que o vizinho tá fazendo não me importa muito.

Por que a noite é especial? A noite é um outro mundo. Ela te permite ser um ou- tro, exercer outro papel. Você é um office boy, mas na noite se veste de mulher, tem outro cacife social. É muito estra- nho: São Paulo, que é superconservadora de dia, berço do malufismo, é libertária pra caralho à noite. Essa tensão entre dia e noite faz São Paulo vibrar como nenhuma outra cidade no mundo.

Tem uma Parada Gay gigante e, ao mesmo tempo, o cara apanha na Pau-lista por ser gay. Acho até obsoleto ficar falando de opção sexual das pessoas, di-zer “sou hétero” ou “sou gay”... É um me- canismo de compartimentação. No meu microcosmo, a sexualidade não importa mais. Eu não me importo mais, mas já foi um tema pra mim.

Se preocupava em ser visto como gay? Sou hétero, mas tenho um clube gay. Sempre gostei das festas gays. A música é melhor, o ambiente, mais festivo. Conheço mais gays que héteros: são meus amigos, meus sócios, os padrinhos da minha filha.

Recebe muita cantada de homem? Muito mais do que de mulher. Tudo bem, lido da mesma maneira.

Já teve vontade de ter uma experiência gay? Não, porque tenho pavor de homem. Não tenho nenhuma atração pelo macho arquetípico, pelo corpo do homem.

Pavor não é meio extremo? [Ri] Hummm, pode falar: “Ih, é gay, escorregou no quiabo!”. Não gosto do corpo do homem, ao mesmo tempo cumprimento meus amigos com beijo no rosto, abraço, dou tapa na bunda, não tenho nenhum problema... Mas a ideia do pinto me causa uma certa repugnância. Quando soube que teria uma filha, parecia que tinham me falado que eu tava curado de um câncer.

"Acho obsoleto ficar falando de opção sexual, dizer 'sou gay'. É um mecanismo de compartimentação. No meu microcosmo, a sexualidade não importa mais. Eu não me importo mais"

Como assim? Porque não teria que lidar com homem desde o começo. Homem é violento, predador. São características mi- nhas, reconheço, e são incômodas. Preciso de suavidade do outro lado. Não quero ter que lidar com outro homem: é sempre um duelo de alces, medindo forças.

Você é competitivo? Sou, mas todo mun- do que vive em São Paulo é, senão você não sobrevive. São Paulo não permite que você seja hippie.

E hipster? Aí ela te abraça. [Ri] Se você não tem um pouco de violência dentro de si, como sobrevive em São Paulo? Não dá, é uma cidade cruel nesse sentido.

Incomoda ser chamado de hipster? Sou o tiozão dos hipsters! [Risos] Fui no casamento do Pat Mahoney, do LCD Soundsystem, quer coisa mais hipster que isso? O hipster virou uma grande caricatura. Qualquer coisa é hipster. O cara resolve mexer na própria moto: hipster. Resolve ter barba: hipster.^^~-_-

Você se identifica? Se a pessoa precisa dessa categoria, vou fazer o quê? Não me ofende. Também não vai mudar as coisas de que gosto.

Você também é competitivo com seus amigos? Não, com meus amigos, não. Também porque tenho uma visão muito minúscula daquilo que faço. Tô fazendo uma obra, não tô fazendo um clube. Então a minha relação é um pouco como um peão ou empreiteiro de obra. Hoje nem cuido tanto de obra, mas até o Cine Joia cheguei a dormir na obra. É foda, você coloca pra fora uma parte tua. É meio como escrever um livro... Hum, tô falando besteira.

Mas seus lugares têm mesmo uma narrativa: o Lions montado como um clube de cavalheiros, o Yatch naquele clima gay- Querelle, o Riviera olhando pra própria história... Você cria os conceitos? Sim, crio a armação. Mas depois vem cenógrafo, arquiteto, meus sócios. Os projetos dificil- mente têm autoria... No momento que você coloca alguma coisa pra fora, vai ser julga- do. Tem gente que odeia o que eu faço.

Por quê? Ah, me julgam o Eike Batista da boate. Acho engraçadíssimo. Ah, beleza, você faz melhor? Pelo menos tô produzin- do, fazendo coisas. Tenho muito preguiça de pit bull de lan house. Mas não consigo resistir, eu bato boca.

Discute com comentarista de internet? Sei que tô errado... É que tenho uma questão com a covardia. Se olhar nos meus olhos e disser “Você é o Eike Batista da bo- ate”, vou dar a minha opinião: o Riviera ia virar uma Drogasil, o que seria melhor? Se a gente divergir, beleza. Agora, fazer isso pelo Facebook é muito baixo.

Você conhecia esse cara? Conhecia, mas viramos desafetos. Engraçado é que trombei esse cara do Facebook no super- mercado, no dia de Natal. Fiquei dando com o carrinho no calcanhar dele, e fa- lei: “Você é meu Chester hoje, fala aqui na minha cara”. Um cara que faz crítica no Facebook e quase chora quando te encontra... Vai usar fralda! Não consigo baixar a cabeça. É bom ter uns inimigos, não preciso ser unanimidade.

Pra que serve inimigo? Se for bem esco- lhido, pra medir potência com você. Um bom inimigo você respeita tanto ou mais do que um amigo. É teu antípoda, teu nêmesis. Meu sobrenome não é Guerra à toa. Sobrenome é uma sentença.

Qual foi a última vez que você brigou? Foi este ano. Tava no Belvedere Trianon, e tinha um ponto de crack ali dentro. Quando a GCM [Guarda Civil Metropolitana] veio para limpar a turma, eu, humanista do caralho, falei: “Calma, são dependentes, deixa eu conversar com os caras”.

Como foi? Aí conheci o Carioca, o dono da boca. Ele tinha acabado de sair da prisão. Chegou pra mim trincado, sem ca- misa, rosto comido: “Tenho seis [assassinatos] comigo, você é meu sétimo”. Faço boxe, não tenho medo de muita coisa, mas fiquei com medo. Comecei a andar com taser, estilete, tenho aquela carteira que abre e vira uma faquinha.

Ia armado mesmo? Vou até hoje.

Chegou a sair na mão com o cara? Não, mas tive um confronto: “Porque tá falando que vai me pegar por trás? Vem”. Não chegou a descambar, provavelmente o cara ia me estraçalhar. Prefiro resolver tudo no campo das ideias, me sinto mais confortável ali. Mas tem figuras com quem a troca de sopapos acaba sendo uma forma de comunicação. Se o cara me leva para esse lugar, aceito. Já aconteceu na boate... As pessoas ficam selvagens com álcool.

O que houve? Pisei no pé do cara e pedi desculpa. Ele falou “desculpa o caralho, sai andando”. Não vou sair andando. Aí o cara me dá um soco na orelha! Prefiro perder todos os dentes da boca do que perder es-sa ideia obsoleta que tenho de honra.

Como terminou? Com o cara sendo arrastado pelo chão do Vegas, como se fosse um trapo sujo. Com testemunhas. Tem esses momentos de explosão, mas já parei. Não vai me colocar como um cara violento, que sai brigando a torto e a direito, pelo amor de Deus! Mas se a coisa descamba pra esse lado…

"Sou o tiozão dos hipsters! [Risos] Fui no casamento do Pat Mahoney, do LCD soundsystem, quer coisa mais hipster? Qualquer coisa hoje é hipster. O cara resolve ter barba: hipster" 

Chamar um segurança não seria melhor? Ah, não. Não chamo ninguém pra fazer meu trabalho sujo. O cara não é meu segurança, é um segurança patrimonial... O cara não pode fazer o que quiser, ele tem que encontrar um obstáculo à sua violência. Tá no campo da ética: não inva- de meu espaço.

Já passou perto da morte? Uma vez levei uns tiros. Não me acertaram. Tinha uns 20 e poucos anos, foi um desentendimen- to numa festa, saí do prédio. Não sei se o cara tinha uma arma no carro, só sei que voltou. Ainda bem que não era um atirador experiente. Eu tava subindo na moto, deu três tiros. Você ouve aqueles silvos perto. Aí eu olhei, o cara me olhou... Acho que ele continuou apertando [o gatilho], mas não aconteceu mais nada.

Briga de festa. Um empurrão, não foi mur- ro, não. Nem prestei queixa, e pouquíssi- mas vezes falei disso. Teve outra vez um acidente feio de moto, que eu deveria ter desaparecido. Fui projetado por uns 15 me- tros, meu capacete chegou a rachar. Não aconteceu nada comigo, nem um roxinho. Me lembro do corpo no vazio, girando três vezes no ar e caindo feito ovo frito no chão.

Usa moto no dia a dia? Não fosse pela moto, eu teria outra relação com a cidade. O carro te fecha numa bolha e te isola da cidade, você olha pra cima e vê o teto. Na moto, vê os prédios. Pelos menos uns três lugares já achei de moto, o Joia, o Lions, o próprio Riviera... Se vejo uma placa de “aluga-se” de carro, comovou parar no trânsito? Não para. De moto, paro, entro, fuço.

Qual sua moto?É uma BMW RnineT, 1200 cilindradas. A primeira moto que compro em dez anos. Pô, tenho uma fi- lha, minha moto tava sem freio! Preci- so de um ABS. É uma moto de 50 paus, financiada, tá tudo certo.

Com a filha, Pina, e suas tatuagens de veia à mostra

 "Não gosto da ideia de morte lenta. O suicídio é uma ideia linda, a maneira como Hemingway morreu: um tiro de escopeta de caçar elefante e pronto, desmaterializou sua cabeça"

Você queria ter filho? Queria, mas não tinha planejado. Quando tive a Pina [há dois anos, com a companheira Vanessa Rozan], tava montando o Yacht e o Lions, tinha uma dívida de R$ 2 milhões e faltavam dois me- ses pra entregar minha tese de doutorado, que tava no primeiro capítulo.

Como sua filha mudou sua vida? Ah, dá uma consciência meio ilusória de permanência, de transcendência da morte. E uma preocupação de manter o sobreno- me limpo, pra ela herdar. Você começa a se preocupar com a memória que você vai deixar pro teu rebento. Você não é nada mais que um exemplo... Tive uma reação completamente louca, comi a pla- centa da minha filha.

Que gosto tem? De carne humana. Quan- do você vai conseguir quebrar o tabu do canibalismo se não for com a placenta?

Tem uma onda meio hippie de comer placenta, né? Não sabia... Foi bizarro. A Pina nasceu na água, e o cara cortou a placenta e me deu num saquinho. Que porra faço com isso? Ele disse: “Bota numa árvore e agradece aos céus por sua filha ter nascido saudável”. Saí com a placenta num saquinho de supermercado. Cheguei em casa e coloquei no freezer. Dois dias depois, a Pina chorando a noite inteira, acordo de manhã, pego a placenta, pico em cubinhos, misturo com um monte de frutas vermelhas e bato no liquidificador. Foi muito instintivo. Tomava todos os dias de manhã, colocava no suco.

Você se considera excêntrico? Engraçado, nessa coisa de excêntrico tem uma questão social muito forte. Po- bre nunca é excêntrico, pobre é louco. O excêntrico é sempre o rico [risos].

Tem que poder pagar a análise pra ser excêntrico. Devo ser, todo mundo é ex- cêntrico visto de perto. Tem gente muito mais estranha que eu, que se esforça pra isso. Sei lá, acho fazer botox excêntrico pra caralho! Tem coisas que me trazem prazer estético, intelectual. Nem sei se a taxidermia é excêntrica, colecionar coisas estranhas virou norma. Se isso é mórbido, se isso é diferente...

As pessoas costumam deixar bicho morto na geladeira, você deixa na sala sua coleção de animais empalhados. O que é a morte? Vida e morte são proces- sos químicos. A morte é uma transfor- mação. Não em alma, mas em verme, planta, carbono, hidrogênio. Pra mim taxidermia tem a ver com um prolonga- mento da vida, não com a morte.

Muita gente se dá conta da morte ali pelos 40 anos... A morte começa aos 40 anos, fica mais palpável. Envelhecer é pra macho, respeito muito quem consegue envelhecer bem. Na noite do meu aniver- sário de 40 anos, vomitei sem parar.

O que causou tanto incômodo? A concretização e materialização do fim. Fazia uns 15 anos que não vomitava. Me depa- rei com o fim físico. Parece que comecei a sentir o processo de decadência quase em nível celular... Não gosto da ideia de morte lenta. O suicídio ativo é uma ideia linda, a maneira como Hemingway mor- reu: um tiro de escopeta de caçar elefan- te e pronto, desmaterializou sua cabeça.

Suicídio é uma ideia que tá na sua cabeça? É um direito fundamental. A so- ciedade valoriza a vida o tempo inteiro, a biopolítica. Você tem que prolongar tua vida... Se você é vítima de um cân- cer terminal, que conforto vai ter pro- longando um sofrimento que não tem nada a ver com o que você viveu?

Por que resolveu tatuar sua própria veia? Na época do doutorado, li um texto do Deleuze que falava “o mais profundo é a pele”. Essa porra virou meio que um TOC, ficou ricocheteando no meu crânio quase um ano. O mais profundo é a pele, o mais profundo é a pele…

O que te pegou nela? Tenho terror à trans- cendência, à crença em alguma coisa abs- trata. Pra mim, o que os sentidos capturam já é complexo demais. Sempre fui alérgi- co a qualquer coisa tipo “um deus maior governa o mundo”. “O mais profundo é a pele” resumia tudo em que eu acreditava.

Pra encerrar: agora é sexta-feira à noite, o que você vai fazer? Responder e-mails, tenho uns 30 pra agora. E 20 mensagens do WhatsApp. E mais quatro chamadas.

Tá começando o expediente? De certa forma não interrompe nunca, lazer e tra- balho andam juntos. Essa é a tristeza do empresário da noite.

Crédito: Gil Inoue
Crédito: Arquivo Pessoal
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Crédito: Debby Gram/Editora Trip
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