Espião

?Somos insanos e nos equilibramos precariamente em cima do gelo escorregadio da lucidez?

por Redação em

Antes que a noite se arrebente em dias, eu precisava dizer algo. Algumas coisas bastam por si mesmas, como a dor, por exemplo. Não precisa de mais nada para nos fazer sofrer. Tenho sido um espião de mim mesmo. O que tenho observado é que tenho pressa, não sei bem do quê. Talvez de mim mesmo porque tem muita coisa que está dominando meu interesse, mas nenhuma delas me seduz de verdade.

No que me diz respeito, a vida, de modo algum, pode ser esse hábito que dela tenho feito. Não pode ser esse monte de mesquinharias e essa pobreza de motivos existenciais que tenho escolhido sem perceber direito. Sim, eu sou humano; portanto falível. Mas único em minha diversidade e individualidade. Daí por que exigir, querer o melhor de mim.

Às vezes me pergunto por que a vida dos outros é tão importante para mim. Às vezes, parece até mais interessante que a minha. Somente em uma coisa sou mais que os outros. Sou mais preocupante do que qualquer outra pessoa. Vivo preocupado comigo. Certo de que tudo que quero depende dessa concentração em me auto vigiar. Sou um espião de mim mesmo. Mantenho-me em constante observação, atento aos menores movimentos.

Vivo em uma briga irracional (se é que pode haver outro tipo de briga) comigo mesmo para me adaptar às minhas condições existenciais. Infelizmente, sem muito sucesso. Sempre achei que sou ansioso e acelerado. Em compensação, vivo apertando a vigilância sobre mim mesmo. Tenho certeza de que posso render muito mais e de que posso chegar mais presente aos outros. Sei que posso ser feliz de verdade. Já vivi momentos muito felizes. Mas somente quanto exigi de mim tudo que era capaz, e mais um pouco.

Ontem, por exemplo, levei meu filho mais velho, Renato, de 9 anos, para conhecer o mar. O moleque é doce e vive com sorriso no rosto; ao defrontar-se com a imensidão do mar quase explodiu de alegria. Havia um receio ao mesmo tempo que uma vontade de entrar para dentro daquela explosão de espumas. Agarrado a mim, ele tremia nervoso e indeciso.

Abracei-o fortemente e fui pulando as ondas com ele grudado em minha pele. Fui dizendo ao seu ouvido como era maravilhoso tudo aquilo que a natureza nos dava tão gratuitamente. Apontei o infinito azul encontrando-se com aquela imensidão esverdeada ao longo do olhar. Navios pequenos com suas pontas de ferro, intrusos invasores, roubavam os olhos do menino.

Aos poucos foi criando coragem. Levei-o para o raso. Mas ele queria tudo. Senti o menino fremir, vibrar qual um ciclone. Em pouco tempo já estava subindo por cima de mim e pulando para dentro das ondas. Então foi minha vez de tremer, de medo de o danadinho se entusiasmar demais e sumir naquelas águas.

Dei mais uns passos para dentro e uma onda bateu em minha cara, como que a me cobrar coragem. E as águas vieram loucas. Só então lembrei de que não sei nadar. Respirei fundo e dei uma arrancada em direção à praia, procurando o menino, começando a me preocupar. E ele estava ao meu lado, boiando e nadando ao mesmo tempo, me observando. Ele teve tempo e espaço para aprender, lembrei. Quando nossos olhos se encontraram percebi o quanto ele estava sendo feliz. E aquela foi uma das melhores sensações que já senti em minha vida.

Passei todos os dias de meus longos anos de prisão, depois que Renato nasceu, sonhando em chegar em casa e poder ainda participar da vida e da educação dele. Aquele estava sendo um momento de realização. Meu coração parecia um tambor e minha vontade era juntá-lo ao meu peito e continuar chorando (porque choramos quando somos felizes?), já que as lágrimas desciam sem que eu percebesse.

O menino sentiu, antes que soubesse, e veio com braços e pernas comprimir-se a mim com todas as suas forças. Quase afogo nós dois, desequilibrando-me. Dei um meio passo trôpego para trás, firmei o pé e segurei nosso peso contra as ondas e areias escorregadias. Ficamos ali agarrados um ao outro por cinco ou menos minutos eternos. A paz, estranhamente, expandiu-se de meu coração naquela nova hora que iniciava cada um de meus movimentos.

Sempre achei que havia alguma felicidade, mas jamais aquela tão sonhada que tanto feriam quanto protegiam (sim, protegiam de muitas coisas, principalmente de mim.). Acreditava em um tipo de felicidade trabalhada. Fruto da luta pelo equilíbrio e pela sensatez; essas tais virtudes nem sempre possíveis para pessoas assim tortas como eu. Podem dizer o contrário, mas eu continuo achando que somos insanos e que nos equilibramos precariamente em cima do gelo escorregadio da lucidez.

E ali estava eu, despido dos meus problemas insolúveis, a gozar de uma alegria que ameaçava engolfar-me, de tanta. E assim natural, sem esforços, apenas por existir, ser pai e amar com os olhos abertos qual dedos de dentro da palma da mão. Sim, mas só eu sabia o quanto havia me custado chegar até aquele momento. Foram muitos os desencontros para que pudesse chegar àquilo que viria a ser. Foi uma luta insana, trabalhando dentro da prisão para cumprir minha obrigação de sustentá-lo condignamente, como pai que sou. Devo agradecer a muitos que me ajudaram, mas principalmente à mãe dele que soube cuidar, amar e trazê-lo até aqui bem e bom como ele é.

Viverei novas emoções tão grandiosa? Com certeza. Ainda tenho mais um menino de 5 anos, Jorlan, a quem ainda vou ensinar o mar. Junto com os dois quero aprender matas, rios, árvores, sol e noites estreladas. É meu vir a ser, aquilo que viverei, essa força que se move densa até os ossos, rumo ao que serei. Eu me espio, mantenho à frente de meu olhar, contra a parede, mas sei que é vasto demais. Entender mesmo, não acredito muito que consiga, mas certamente aprenderei a conviver comigo mesmo e com minhas dificuldades.

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