Que Brasil queremos?
Nenhuma utopia para o país faz sentido se ela se limitar a pensar no que queremos. A única utopia que vale o esforço, hoje, é pensar em como
Tentar encontrar a identidade nacional é uma verdadeira obsessão entre nós. Talvez porque sejamos uma nação multirracial de fala portuguesa, em região tropical, tornada independente por príncipe europeu (é possível que você tenha aprendido na escola que o verde e o amarelo da nossa bandeira representam a floresta e o ouro, mas a verdade é que são as cores das casas reais de Bragança e Habsburgo, às quais pertencia D. Pedro I). Mas aí eu olho para o Canadá, nação americana bilíngue cuja soberana é a rainha da Inglaterra, com grande população indígena e imigrante, e não o vejo assim tão preocupado com a própria identidade. Enfim...
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Identidade nacional não é apenas dizer quem somos no mundo e o que nos faz peculiares. É, também, tentar compreender de onde viemos e para onde queremos ir. A questão nasceu com a independência, quando nossa elite se viu impelida a se diferenciar da antiga metrópole; e escolheu os índios (bastante estilizados, de preferência extintos) para nos representar. Dessa sopa vieram os poemas de Gonçalves Dias e os romances de José de Alencar. Já no século 20, a discussão foi deixando de se limitar ao campo da arte, passando a incluir história, sociologia e economia. Houve Euclides da Cunha e Os sertões (1902), mostrando que o sertão e o sertanejo também eram Brasil; os modernistas de 1922 defendendo a ideia da antropofagia cultural, em que os brasileiros deglutiriam o que vinha de fora para criar algo novo e único; Paulo Prado, com o livro Retrato do Brasil (1928), puxando a sardinha para os bandeirantes paulistas na construção da nossa identidade. Depois vieram Gilberto Freyre com Casa-grande & senzala (1933), alegando que nossa escravidão havia sido relativamente suave e gerado uma relação harmoniosa entre as raças; e Sérgio Buarque de Holanda, com Raízes do Brasil (1936), apontando as origens de nossa eterna confusão entre o público e o privado.
Olhar para o futuro
Mais tarde, nos anos 1960 e 1970, enquanto a visão antropofágica de 1922 se reciclava com o Tropicalismo, uma nova variante econômica da interpretação se impunha, agora numa leitura marxista que enfatizava o status dependente do Brasil no capitalismo internacional. Aqui se destacaram Caio Prado Jr. e Celso Furtado, entre outros. Em 1977, com Ao vencedor as batatas, Roberto Schwarz discutia se as ideias brasileiras eram originais ou transplantadas. Anos depois, João Ubaldo Ribeiro mostraria, em seu romance Viva o povo brasileiro (1984), que o viés literário do debate continuava bem vivo. E também bem vivo permanecia o recorte histórico-sociológico, retomado por Darcy Ribeiro em O povo brasileiro (1995). E agora aparece Eduardo Giannetti com Trópicos utópicos (2016), propondo-se a olhar mais para o futuro do que para o passado, ou seja, mais para onde queremos e poderemos ir do que de onde viemos. O que ele busca, no fim das contas, é estabelecer uma nova utopia nacional. É um belo herdeiro de nossa obsessiva busca pela identidade. Como os antecessores citados aqui (cada um a seu modo, maravilhoso), parte de uma premissa que eu pessoalmente considero um tanto quanto complicada: a de que existe "um Brasil". Pois eu acho que isso não existe. O Brasil de cada um é diferente do de seu vizinho.
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O que somos é uma nação com 400 de nossos 500 anos vivendo sob a escravidão e ainda mais tempo sob ditaduras (explícitas ou disfarçadas). Temos pouquíssimo jeito para a prática democrática. À esquerda e à direita, sabemos linchar, sabemos gritar palavras de ordem, mas somos péssimos para ouvir e tolerar. Nenhuma utopia para o Brasil faz sentido se ela se limitar a pensar no que queremos. A única utopia que vale o esforço, hoje, é pensar em como. Como nos relacionar, como nos respeitar, como conversar. Se não conseguirmos nos acertar quanto a isso, jamais nos entenderemos quanto ao nosso destino.