Entrevista com Ricardo Guimarães

Ele se tornou uma das fontes de um pensamento que aponta para o futuro que fez a Trip se tornar o que é. Dezoito anos após a primeira coluna, Guimarães é o entrevistado nas Páginas Negras

por Ariane Abdallah em

A casa paulistana do consultor mineiro Ricardo Guimarães, 67 anos, é cheia de pedras espalhadas. Pedras de diferentes texturas, tamanhos, cores, formatos, origens. Espalhadas, porém, não significa jogadas. Elas se integram à decoração como obras de arte contemporânea. Mais do que pura estética, propõem experiências aos visitantes. A primeira “instalação” se vê logo na entrada, passado o portão que dá para a rua. O caminho até a entrada principal é composto de pedras que abrem uma trilha sobre a água. Além de formarem um belo visual, obrigam o passante a prestar atenção por onde pisa.

Dentro da casa, no quintal e nas sacadas, vê-se uma série de pedras empilhadas como esculturas. O hobby começou em 1982, quando um médico recomendou que Guimarães fizesse exercícios com as mãos e as pernas. Ele, então, começou a mexer com jardinagem. À medida que ganhava intimidade com a terra e as plantas, familiarizou-se também com as pedras. Desde então, constrói bancos, mesas, calçadas e muros com a matéria-prima, que decoram não só a casa em que mora com Lili, sua mulher há 44 anos – mãe de seus quatro filhos e avó de seus três netos –, mas também a casa de praia, que ele construiu em 1978, em Itamambuca, Ubatuba, litoral norte do estado.

Foi em Itamambuca que se nutriu boa parte da amizade de Guimarães com Paulo Lima, fundador da Trip Editora, a quem ele chama de “Caro Paulo” nas colunas que assina na última página desta revista desde 1998. Os primeiros encontros entre os dois, no entanto, aconteceram na rua, em São Paulo, por acaso, quando a primeira casa que servia de sede à Trip era vizinha à agência Guimarães Profissionais. Só foram apresentados formalmente anos mais tarde, pelo filho de Guimarães, Tiago, que conheceu Paulo em uma viagem de surf. Ali começou a amizade que dura até hoje.

Ao longo desses 18 anos em que escreve mensalmente uma carta pública ao amigo Paulo, sobre grandes reflexões da humanidade ou questões cotidianas, Guimarães se desfez de sua agência de publicidade. E fundou a Thymus – nome dado em referência à glândula timo, que exerce papel crucial no sistema imunológico humano. Trata-se de uma consultoria especializada em mergulhar nas empresas para buscar sua identidade e, em seguida, comunicá-­la ao mundo da maneira mais precisa e impactante possível. Seu objetivo é encontrar o tão perseguido diferencial competitivo na essência da própria marca – e não em pesquisas de mercado que, grosso modo, reproduzem o padrão esperado pelos consumidores.

Crédito: Kiko Ferrite

Igual a tudo na vida

Nos anos 80 e 90, Guimarães sacou esse caminho, de dentro para fora, antes da maioria de seus concorrentes. Foi por conse­quência desse olhar que deixou a carreira em grandes agências de propaganda, como Norton e J. Walter Thompson, para propor um modelo de negócios que invertia a lógica do mercado. O ex-publicitário falava em brand equity (valor de marca) em uma época em que ainda não se usava o hoje tão desgastado termo branding para se referir ao trabalho de construção da identidade das marcas.

Essa visão peculiar do consultor nada mais é do que reflexo de suas escolhas de vida. A busca pessoal de Guimarães tem entre seus pilares filosofias orientais como I-ching e taoismo, uma paixão por diversas vertentes do estudo do comportamento humano, da arte à psicologia, e uma observação paciente (e sorridente) da realidade. Seu mérito reside em ter ligado pontos que estavam ali para quem quisesse ver, e em traduzir essa mistura para o mundo como uma oferta de trabalho. Quando a publicidade lidava basicamente com ideais, ele foi pioneiro ao usar mulheres reais, anônimas, com corpos fora do padrão e com nome, sobrenome e idades expostos, em um comercial da empresa de cosméticos Natura.

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Já naquele tempo, o que Guimarães buscava era o mesmo que busca hoje: respeitar a identidade natural das empresas para encontrar a maneira mais convidativa de expressá-las. Uma combinação que ele chama de “verdade com estética”. Ele relaciona o conceito à condição das pedras que faz questão de deixar em seu caminho. O olhar sobre o próprio hobby entrega o segredo de seu sucesso profissional: “A pedra é o estágio mais primário da natureza, o mais rude e imutável, que menos dá a liberdade para se adaptar. Diferente de uma planta, que se movimenta em busca da luz”, diz ele. Faz, então, a interferência própria de seu ofício: “Quando trabalho com uma pedra, tenho que encontrar a maneira de encaixá-la a outra sem quebrar, sem usar cimento nem força. Eu a ajudo a encontrar o lugar dela. É uma relação, ao mesmo tempo, de limite e de articulação. Você só pode se acomodar ao que já existe”.

O mesmo vale para todos os outros assuntos da vida de Guimarães. Não à toa, ele repetiu 29 vezes a palavra “identidade” durante as 3 horas e meia de duração desta entrevista. A seguir, os melhores momentos da conversa.

Trip. Você disse que lidar com as pedras é lidar com o conceito de identidade dos elementos e com o limite. De que maneira essas ideias têm a ver com seu trabalho como consultor? Ricardo Guimarães. Quando trabalha com uma pedra, você precisa encontrar uma estética que respeite os limites que foram impostos pela natureza. Ao mesmo tempo, o trabalho tem que ficar proporcional, harmônico, passar a sua intenção. Esse é um projeto de vida para mim. Tudo é uma coisa só. Eu me tornei empresário porque não gostava da estética dos lugares em que trabalhava. Eu os achava muito feios. E queria viver em um ambiente em que achasse tudo bonito, que fosse uma extensão da minha casa.

Por que achava os ambientes feios? Porque sempre havia uma falta de identidade. Você não sabia onde estava. Uma agência de publicidade tem cara de agência de publicidade, escritório de consultoria tem cara de escritório de consultoria. Todos os lugares ficam iguais. O mundo corporativo é muito “manualizado”. É desalmado. Fica tudo como “deve ser” – e não como poderia ser. Como seria possível ter uma corporação com alma e com uma estética diferente?

Mas provavelmente não foi só a questão estética que o levou a abrir sua empresa... Não. Eu fiz uma carreira no mercado de publicidade como redator e diretor de criação. Na minha visão, eu tinha que levar a verdade do produto para o consumidor. E a verdade nem sempre faz parte de uma estratégia publicitária. O modelo de negócios desse mercado impedia uma reflexão mais profunda sobre quem era a empresa, o que era o produto.

Por quê? Por causa do modelo de comissionamento do mercado. Este modelo funciona assim: o cliente chega com uma verba de R$ 10 milhões para divulgar um produto. A agência vai planejar como serão gastos aqueles R$ 10 milhões. O fee [taxa] mensal cobrado pela agência é baratinho. Porque, na verdade, ela vai ser remunerada pela Rede Globo ou outro canal no qual veicular o que recomendou ao cliente. Ou seja, o que vai pagar seu trabalho é o caixa do veículo, e não o do cliente. Então, a tendência é você gastar esse dinheiro o mais rápido possível e todo ele na propaganda de TV, que é o mais rentável para a agência: dá menos trabalho para fazer e o maior retorno financeiro. Com esse modelo, você coloca o comercial no ar mais rápido do que deveria. Deveria planejar mais, distribuir a verba, usá-la para melhorar pontos de venda, embalagem. Há um conflito de interesse na origem da relação. Equivale a você fazer uma consulta na farmácia, em vez de ir ao médico. O farmacêutico vai falar: “Toma isso”. Porque a remuneração dele não vai ser pela consulta, mas pelo remédio. Existe um movimento mundial para acabar com esse modo de se relacionar. Mas no Brasil há uma lei que obriga a ter a comissão [Lei nº 4.680, de 1965, que garante às agências o valor de 15% sobre os gastos de produção e 20% sobre a verba investida em veiculação]. Por isso, mesmo trabalhando com gente honesta e talentosa, eu não conseguia fazer o que precisava. 

Família unida em 1955 (Guimarães é o da direita, com gravata borboleta); no colo da avó Izilda, em Itabirito (MG) - Crédito: Arquivo pessoal

Antes de entrar na publicidade, você estudou direito. Como foi essa escolha?Quando criança, eu estudei no colégio São Luís, que é jesuíta. Sou de uma família conservadora. Para o meu pai, tinha que ser engenheiro, médico ou advogado. Mas fui fazer direito porque me apaixonei pelo direito criminal. Especificamente, pela ciência penitenciária, porque eu tinha uma visão idealista. Me filiei a uma escola socialista do direito penal. Mas na São Francisco [faculdade de direito da USP], onde eu estudava, meus professores não estimulavam a ideologia que eu havia adotado.

Você chegou a trabalhar na área? Fui procurar um estágio no Instituto Latino-Americano de Criminologia, que era da ONU e existia em três lugares do mundo: Bruxelas, Tóquio e na rua Rego Freitas, no centro de São Paulo. Quando cheguei lá, vi uma recepcionista passando a lixa na unha e um office boy sentado na escada, lendo um  gibi. Eu falei: “Queria me oferecer para fazer estágio”. A mulher olhou para mim, tirando sarro: “Mas estágio do quê? A gente não faz nada aqui”. Eu falei: “Como não faz nada? Isso não é um órgão da ONU de nível continental?”. “Ah, não. Isso aqui é um órgão político, só existe para dar prestígio para o presidente.” Fiquei indignado com aquela descoberta. Voltei para a rua e fiquei parado, olhando em volta, com os meus olhos marejados. Sabe quando o ruído da rua fica ao fundo e você só ouve sua própria cabeça? Meu idealismo foi embora naquele momento. Eu pensei: “Quero trabalhar com uma coisa que tenha a menor necessidade de estudo e que pague muito”. Larguei o curso de direito no quarto ano, virei hippie e não fazia mais nada. Até que fui trabalhar no Sesc como orientador social.

O que fazia como orientador social? Saía com companheiros de cultura e esporte, na Unidade Móvel de Orientação Social, pelas cidades do Brasil. Íamos com uma perua Veraneio equipada com mimeógrafo, redes de futebol, de vôlei, de pingue-pongue, projetor de filmes, instrumentos musicais. Mobilizávamos a cidade e, quando íamos embora, deixávamos grupos formados de teatro, de esportes. Era um trabalho maravilhoso. Uma vez, na estrada, paramos em um restaurante dentro de um posto de gasolina, que tinha uma televisão ligada. Estava passando uma entrevista com publicitários como Enio Mainardi e Alex Periscinoto. Eram pessoas muito bem- vestidas, falantes, com uma agressividade que me agradou. E eu, com aquela ideia de ganhar dinheiro, fiquei olhando e falei: “Nossa! Quero isso!”. Foi meu primeiro contato com a publicidade. O segundo foi quando eu estava lendo o jornal e vi uma notícia de que o Neil Ferreira, um diretor de criação, recebeu um Porsche como luvas para ir da [agência] Denison para a Norton. Aí veio o negócio do dinheiro mesmo. Falei: “Eu sei escrever, vou trabalhar nisso”. Um tempo depois, um amigo falou que estava sendo aberta uma faculdade de publicidade. E resolvemos fazer o vestibular. Acabei entrando, mas ele não.

Onde começou sua carreira? Na Norton, em 1969. Quando contei para o meu pai que eu havia largado a faculdade de direito e estava fazendo publicidade, ele falou: “Isso é profissão de marginal”. Ele era diretor de banco, e disse para, então, eu ir trabalhar na agência que prestava serviço para o banco. Passei pela Proeme, do Enio Maniardi, e pela CBBA, do Renato Castelo Branco. Eu tinha uma base de educação careta, com valores. Queria sempre fazer a coisa correta. E tinha opiniões, ideias. Isso me levou a ganhar responsabilidades. As pessoas confiavam no jeito que eu pensava. Ao mesmo tempo, os conflitos eram cada vez maiores. Porque comecei a questionar o modelo de negócios de comissionamento. Então, em 1980, fui para a Globo, fazer criação e produção de merchandising para novelas, o que não tinha nada a ver com meu trabalho até então. Passei um ano e não me adaptei àquele ambiente também. Não sabia lidar com a vaidade das pessoas que estão no ar. Elas precisam daquilo para garantir a sua autoestima. Se não estão no ar, não existem, ninguém as convida para festas, elas têm que pagar a conta nos restaurantes. Cheguei a montar a agência PPR, que era um braço da J. Walter Thompson, com o Jô Cortez, o Ricardo Van Steen e o Ucho Carvalho. Mas, de novo, não fiquei porque não concordava com o modelo de comissionamento. Um pouco mais tarde, em 1983, fundei minha empresa porque não encontrei nenhuma agência que trabalhasse de outra forma. E eu não ia trabalhar em algo que não acredito.

Como foi o início da sua agência? Eu tinha um cliente, a água Perrier no Brasil, que propôs financiar os custos. Me deu uma sala na fábrica deles, com secretária e telefone fixo. Falei: “Preciso arranjar um sócio porque não sou empresário”. Então, chamei o Dennis Giacometti [hoje sócio-presidente da Giacometti] e começamos a Guimarães e Giacometti, com um modelo que só tinha o fee mensal, não trabalhava com o comissionamento.

“"O mundo corporativo é muito 'manualizado'"”
Ricardo Guimarães

Definimos o que era comunicação para nós: o exercício da identidade. Algo muito simples, que é a base do meu trabalho até hoje.

Como funcionava a metodologia de vocês? Comecei a ter uma metodologia de trabalho para investigar e conhecer o cliente. Esse modelo me permitiu olhar e trabalhar toda a manifestação da identidade do cliente em tudo o que ele fazia, em vez de olhar só para a mídia. Durante muito tempo, a Globo dizia que éramos arrogantes. Porque a emissora chamava para uma reunião, as agências iam correndo, e a gente, não. Nossa prioridade era o cliente. Tinha inclusive um dinheiro de bonificação na Globo para nós, que não íamos buscar. Achávamos que não era nosso. Depois tivemos que fazer algumas adaptações, mas a essência continuou aquela [o fee passou a corresponder a cerca de 80% do faturamento da agência]. Estávamos levando à Globo novos clientes, que tinham receio de trabalhar com as agências, como Lojas Riachuelo e Grupo Ultra. 

Na formatura do colégio São Luís, em 1964; Na praia de Juquehy, em 1966, com os amigos Mané Gouveia, Silvio Rocha, Eugenio Frota e seu primeiro carro, um fusca 1963; Em sua primeira empresa, Guimarães e Giacometti, com Graça Craidy, Caio Junqueira, Frank, João Simoni e Newton Pacheco - Crédito: Arquivo pessoal

Por que se separou do Dennis? Ele tinha outros interesses e, em 1988, resolvemos separar. O nome da minha empresa passou a ser Guimarães Profissionais de Comunicação. Depois da cisão, a Natura entrou como cliente. Procuravam uma agência que trabalhasse a identidade deles. Era tudo o que eu queria. Fizemos uma campanha com pessoas reais. E éramos responsáveis por tudo o que a Natura fazia, da embalagem de produto ao canal de venda, passando pelas propagandas na TV e eventos. Isso impulsionou muito a nossa metodologia e o nosso aprendizado sobre a nossa identidade. Nessa época, eram muito importantes também os clientes Yázigi, a Droga Raia e a revista Capricho [da editora Abril].

Quando você começou sua agência, a palavra branding não era tão popular quanto é hoje. Hoje muita gente diz que faz esse trabalho... Mas o que outros fazem não é o que fazemos. Fazer branding com publicitário ou designer é a mesma coisa que fazer uma cirurgia no seu cérebro com o cabeleireiro. Ouvi essa frase na Madison Avenue [em Nova York] e concordo com ela.

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Como você define o seu trabalho de branding? O discurso hoje é “temos que fazer diferente, temos que inovar”. E onde você busca inspiração? No mercado? O mercado vai dizer a mesma coisa para todo mundo. Você tem que buscar inspiração no seu jeito de ver a vida.No jeito que você vê seu negócio. Por isso, deve aprofundar a sua perspectiva individual para, a partir dela, olhar o mercado através do seu filtro. Você é o maior especialista no assunto que está fazendo. Vai perguntar o que deve fazer para o consumidor? Tem uma frase que diz: “O consumidor sabe o que quer, mas também quer o que não sabe”. O branding entra nesse capítulo de “quer o que não sabe”.

Festa de 50 anos com Luiz Seabra, Pedro Passos e Guilherme Leal, da Natura; Em Sintra (Portugual), no Natal de 2004, com os quatro filhos: Tiago (Ti), Silvia (Shubi), Helena (Leca) e Pedro (Peu); fazendo a poda de uma árvore em seu jardim; com os filhos em 1985; seus netos Tonico, Tetê e Joca em Itamambuca, 2015 - Crédito: Arquivo pessoal

Como foi a transição da Guimarães Profissionais para a Thymus? Inicialmente, aquilo que eu fazia porque queria, de investigar a identidade da empresa, começou a ser uma demanda dos clientes – até se tornar um imperativo, como é hoje. Isso começou a impactar muito o custo da agência de publicidade. A nossa rentabilidade começou a cair.

“O consumidor sabe o que quer, mas também quer o que não sabe. O branding entra nesse capítulo de 'quer o que não sabe'”
Ricardo Guimarães

Chamei uma consultoria para me ajudar a reorganizar a empresa. A consultoria me mostrou que uma parte do que eu tinha dentro da Guimarães não pertencia ao negócio da agência. Era uma empresa de consultoria. Portanto, eu tinha que separar os dois negócios. Coloquei as pessoas da minha consultoria em outra sala, pintei a porta de vermelho e assim nasceu a Thymus Identidade de Marca. A Guimarães começou a perder minha atenção. Até que vendi 40% da empresa para a Holding Prax. Meu combinado era me dedicar à Thymus, que estava indo muito bem. Mas a Guimarães começou a sofrer. Eu falei: “Não vou deixar essa agência morrer. Vou matá-la”.

Como foi o processo? Demiti todo mundo. Eram cem profissionais. Foi um horror. Mas foi também um gesto de libertação para mim. Porque eu não acreditava mais na publicidade. Eu sei que as pessoas gostavam muito da agência, mas aquilo, para mim, não significava mais nada. E eu avisava às pessoas: “Gente, não está dando certo. Eu estou tendo que me envolver e não quero mais isso...”. Esse processo foi finalizado em 2003.

Como os funcionários reagiram? Acharam que foi uma traição. Com o tempo fui vendo o quanto as pessoas ficaram magoadas. O fato de elas nunca mais falarem comigo, apesar de serem pessoas de quem gosto muito, deixou isso claro. E eu sinto muito por isso. Mesmo assim, acredito que valeu a pena porque era a minha vida que estava em risco.

E internamente, como você sentiu o fim da agência? Olha, eu lido muito bem com a morte. Tenho muita intimidade com o fim das coisas. Renasço muito rápido. Acredito que isso tem a ver com você ser resignado com os limites que a vida oferece. Um dos meus livros preferidos é O poder dos limites [do arquiteto húngaro György Dóczi]. Eu gosto muito do taoismo [filosofia oriental]. Tao significa caminho. E caminho é um fluxo com determinado desenho, feito pelos limites que a vida vai oferecendo. Eu lido bem com o inverno da vida. Sigo com tranquilidade. Quando meu irmão morreu, eu fiquei impressionado com como passei bem pelo momento. Quando me separei do Dennis, foi muito difícil, mas passei bem. Na hora em que você decide dentro de você, lida bem com as coisas de fora. Quando não aceita dentro, fica embromando fora. E aí dói mais.

A sua presença na Thymus é muito importante para a identidade da empresa. Como lida com o futuro? Está preparando um sucessor? Eu não tenho a vaidade de ter a empresa perenizada. Vai me dar muito trabalho perenizar. Não tenho medo de que ela termine comigo. O que mais me preocupa é que a filosofia, a metodologia e a experiência da Thymus sejam usadas pelo mercado. Para mim, sucesso é isso. Meu filho Tiago trabalha lá e está indo muito bem. Ele tem pique, visão e crítica. Ao mesmo tempo, há consultorias enormes interessadas na experiência que a gente tem e no tempo de trabalho que eu ainda tenho – talvez dez anos. Nesse período, posso capacitar mais equipes na metodologia.

Como é sua estrutura hoje? Mudamos de escritório no ano passado. O modelo de negócio hoje é formado por um núcleo sênior e enxuto e consultores autônomos. Essa foi uma providência que tive que tomar também com relação à crise. Eu não podia ter custos fixos muito altos em uma turbulência tão grande.

No centro cultural de Vigário Geral, com José Junior e amigos; Na fazenda da família em Nazareno (MG), escrevendo sua primeira coluna para a Trip, em janeiro de 1998; Em 2000, com a equipe da Thymus em Nova York - Crédito: Arquivo pessoal

Como você enxerga essa crise e essa turbulência que o Brasil vive hoje, envolvendo instituições privadas e públicas? A humanidade está tendo que enfrentar limites, o que antes não era necessário. Por isso as ideologias começam a ficar presas a duas ou três alternativas de solução. Antigamente, havia muitas nuances de como fazer. Hoje, o aquecimento global, por exemplo, é um problema coletivo, não importa a ideologia. Quando o papa Francisco fala “nossa casa” e abre mão de falar apenas com os fiéis dele, está trazendo essa noção de um coletivo de humanidade. Então, o nacionalismo que fragmenta o planeta passa a ser o maior obstáculo para a gestão daquilo que é compartilhado. O “nós” versus “eles” é uma mentalidade juvenil que prevaleceu nos últimos anos. O jovem é tribal, guerreiro. Mas, na hora que você reconhece que a interdependência é dada, não tem “nós” versus “eles”. Tem um grande “nós”. Reconhecer isso está se tornando um imperativo. Significa que o mundo já está funcionando de outro jeito. A minha leitura do Brasil, com todas essas turbulências, tem muito a ver com a sociedade em rede, com a conectividade das pessoas, com o grau de exposição que as mazelas estão tendo, com o cair das máscaras. Isso não tem a ver com o Brasil, mas com a época. Agora está todo mundo desesperado, falando: “Como me comporto neste cenário?”.

“O nacionalismo que fragmenta o planeta passa a ser o maior obstáculo para a gestão daquilo que é compartilhado”
Ricardo Guimarães

As pessoas estão ficando honestas, não por virtude para ir para o céu, mas por necessidade de sobrevivência neste mundo. O Brasil tinha um monte de bastidor, um monte de coisa malfeita em todas as instituições, porque era possível tocar a vida assim. De repente, as coisas vêm à tona. As instituições perdem confiabilidade. E você começa a confiar na rede. Chamo o que estamos vivendo no Brasil de “atalho para o futuro”. Estamos aprendendo a viver com a diversidade.

Mas os debates acalorados em torno de temas políticos e sociais parecem estar afastando pessoas, fragmentando grupos de amigos e famílias... Não. Isso é um processo de amadurecimento. A sociedade está aprendendo a conviver com a opinião do outro. O Brasil está aprendendo a conviver com o diverso, está aprendendo a negociar. E a solução não é a exclusão do outro. Temos uma noção de que a ausência de tensão é boa, mas uma pessoa que não tem tensão está morta. A tensão boa, para o corpo humano, é a de 12 por 8. Para viver legal, você tem que gerenciar essa tensão. Viver é passar por altos e baixos. Tem muita gente irritada e brava com o diferente, porque o diferente está muito presente – coisa que não estava anos atrás. As pessoas que são violentas com gays, negros, judeus, mulheres e outras minorias é porque todos esses grupos foram muito reprimidos, e hoje estão muito afirmados. As pessoas repressoras estão perdendo lugar na sociedade. É sintoma de que estamos indo em uma direção de uma diversidade maior.

Como essas mudanças aparecem no mundo corporativo? Na quantidade de jovens que se recusa a trabalhar nas corporações que vieram com o sucesso do século 20, por exemplo. Eles falam: “Eu quero uma coisa mais integrada com a minha vida pessoal”. O mundo está hoje vivendo três mundos simultaneamente. Um é onde estão os recursos físicos: roupa, comida, casa. O segundo é o que o homem loteou. “Esse pedaço é meu, esse é seu, vamos fazer um contrato”. É o mundo das relações, das leis, dos direitos e deveres entre as partes.

“Tenho muita intimidade com o fim das coisas, renasço muito rápido. Isso tem a ver com você ser resignado com os limites que a vida oferece”
Ricardo Guimarães

Agora estão criando o mundo onde as pessoas estão conectadas entre si, é o mundo do indivíduo vivendo em rede, criando um fenômeno chamado self organizing system [sistema auto-organizado]. Essa rede  se organiza sem ninguém ter que gerenciar. O que estamos vendo hoje nas manifestações populares nas ruas é essa autonomia de uma galera enorme se autogerenciando.

O mundo em crise hoje está dizendo: “Parem com essas idealizações de como a vida deveria ser e prestem a atenção em como é. As leis, os contratos, as estruturas que vocês têm nesta sociedade não servem mais para a dinâmica que estamos vivendo em rede. Refaçam as leis. Mudem as estruturas”. Sou otimista em relação ao futuro. Mas não sou ignorante. Reconheço que há um risco muito grande. Estamos em uma transição, que é a troca das ferramentas. Se não trocar as leis, se não trocar a fiscalização, vamos ter uma anarquia desastrosa. Se não entendermos rapidamente esse novo padrão da sociedade, vamos entrar no caos.

Você acompanha a Trip há pelo menos 18 anos. Na sua opinião, qual o papel dela no contexto atual? A Trip tem o germe desse mundo novo. A Trip já era tudo isso em 1986. Ela sempre foi uma comunidade. Nasceu como um veículo de uma comunidade. Não foi um empresário que resolveu dizer: “Qual é o segmento que vamos atingir?”. Não foi planejado. Ela nasceu espontaneamente. O Paulo Lima já pertencia àquela comunidade e falou: “Vamos fazer uma revista para conversar com todo mundo”.

Qual é o futuro da revista, da editora? Assim como o Prêmio Trip Transformadores é uma iniciativa que procura mobilizar experiências bem-sucedidas que olham para o mundo com a pergunta “o que posso melhorar?”, talvez o próximo passo da editora seja buscar sinergia entre outras iniciativas. Precisamos muito desse potencial de comunidade. A pergunta é: quais são os novos Paulos Limas? Quem são os visionários, corajosos, que acreditam. Você pode fazer um monte de análise econômica, tecnológica, sociológica, mas vai ter sempre um Paulo Lima que verá antes dos outros, de forma diferente dos outros. E a galera fala: “Vai lá que eu estou com você”. Esses vínculos hoje não são mais aqueles da carteira de trabalho, de a empresa ter propriedade e exclusividade sobre os profissionais. Nesse contexto, é importante não confundir autonomia com independência. Autonomia significa que você tem consciência de que faz parte de um todo maior e pode falar pelo todo. Independência é quando você não se reconhece como parte do todo, só olha para a sua parte e coloca o sistema em risco de colapso. O mundo está caminhando para pessoas mais autônomas e relações interdependentes.

E nas relações pessoais, como funcionam esses conceitos? Você é casado há 44 anos. O que faz um casamento durar tanto? Eu não tenho uma filosofia. Eu tenho uma história. Estivemos para separar algumas vezes, e em todas elas eu descobri que o casamento estava abafando nossa individualidade. Naquela época, eu falei: “Um mais um não é igual a dois. Um mais um é igual a um mais um”.Na primeira vez que nós nos estranhamos, eu fiquei muito mal e consultei o I-ching. Ele falou: “Quando você for brigar, antes de brigar, decida se quer terminar a briga amigo ou inimigo da pessoa com quem está brigando”.

Aquilo mudou totalmente a maneira de eu enfrentar as nossas divergências. Na perspectiva de 50 anos, o que é um fim de semana sem se falar? O que é um ano? Aquela imagem de um casal sentado juntos em uma varanda, velhinhos, falando da história, fazendo companhia com a perspectiva passada, me sensibilizou muito, me trouxe outro ponto de vista para lidar com os problemas. Entendi que estamos construindo uma coisa. Construindo, no gerúndio.

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Imagem principal: Kiko Ferrite

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