Ana Lucia Villela, a força por trás do Instituto Alana
Entrevista com uma das ativistas mais produtivas do país e referência internacional na luta pela proteção da infância
Em 1994, Ana Lucia Villela e seu irmão Alfredo descobriram que um enorme terreno que herdaram no Jardim Pantanal, na extrema zona leste de São Paulo, havia sido ocupado por milhares de famílias pobres. A solução mais óbvia para o problema seria chamar um advogado e pedir a reintegração de posse. Mas, então com 20 anos, Ana Lucia já não se pautava pelo óbvio. Ela e Alfredo enxergaram ali a possibilidade de concretizar um ainda vago desejo de empregar parte de sua riqueza em um projeto de transformação social. Nascia, assim, o Instituto Alana, ONG batizada a partir da junção dos nomes dos irmãos.
Manter ou ceder o controle? Como no caso do terreno do Jardim Pantanal, essa questão se colocou diversas vezes como uma bifurcação no caminho de Ana Lucia. Em geral, ela escolhe a trilha menos percorrida. Antes do Alana, o nome de Ana Lucia de Mattos Barretto Villela – 42 anos, reservada e avessa a entrevistas de cunho pessoal – sempre vinha acompanhado de apostos como “a mais jovem bilionária brasileira” ou “um dos maiores acionistas da holding Itaúsa” (ao lado do irmão Alfredo) – que controla o Itaú-Unibanco, a Duratex e outros empreendimentos. Bisneta do fundador do banco, Alfredo Egídio de Souza Aranha, Ana Lucia aparece na lista de bilionários da revista Forbes. Como uma das maiores acionistas da holding (com participações das famílias Setúbal e Moreira Salles), Ana Lucia poderia ter papel decisivo nos rumos do Itaú – com todo o poder econômico, político e simbólico que isso representa.
Depois de anos participando do Conselho das empresas, ela cedeu o controle das decisões sobre seus negócios ao irmão. Não foi uma decisão fácil: Ana Lucia e Alfredo fizeram juntos três anos de terapia e analisaram exaustivamente o status e a culpa associados às palavras “bilionário” e “banqueiro”. Ao final do processo, ela diz ter conhecido a maior sensação de alívio de sua vida.
Na hora de ceder o controle, Ana Lucia talvez tenha sido ajudada pela consciência precoce de que ele, o controle, é uma ilusão – algo que aprendeu de forma dolorosa observando as duas pontas que amarram uma vida: os pais e os filhos. Quando tinha 8 anos (e seu irmão, 12), Ana Lucia perdeu o pai Alfredo e a mãe Maria Silvia quando o avião particular em que voavam chocou-se com o pico do Frade, na região de Paraty (RJ), em 1982. De um dia para o outro, ela precisou reinventar sua vida. Foi criada por tios/tutores amorosos (Alberto, irmão de sua mãe, e Elena), alimentou amizades fora do círculo e dos códigos de sua classe social, formou-se em pedagogia pela PUC-SP, tornou-se professora em escolas privadas e públicas, adotou um estilo de vida sem ostentação e casou-se com Marcos Nisti – advogado que veio de família simples e se tornou o CEO do Alana. Quatro anos atrás, Ísis, a segunda filha do casal, nasceu com síndrome de Down. Esses dois lances imprevistos do destino – a morte dos pais quando ela era criança, o nascimento da filha com Down – reforçaram em Ana Lucia o sentido de seu projeto de vida: honrar e proteger a infância. E aí, novamente, entra o Alana.
TRÊS TEMPOS
Ana Lucia divide o trabalho do Alana em três fases. Na primeira, a ONG se firmou como um caso de filantropia, digamos, mais clássico: ofereceu programas socioeducativos, culturais e profissionalizantes no Jardim Pantanal, ajudou na formação de estudantes e professores, ergueu creche e escola em um belo espaço comunitário. Ela e o irmão já contrataram quatro escritórios de advocacia para transferir a posse do terreno para a comunidade, mas no Brasil até boas intenções esbarram em obstáculos legais – e eles seguem tentando.
Na segunda fase, o Alana virou caso de sucesso no Brasil e no mundo, sobretudo graças ao projeto Criança e Consumo, que combate a propaganda e o marketing voltados ao público infantil e seus efeitos nefastos, como a epidemia de obesidade e a erotização precoce. Surgiram grandes brigas (com centenas de reclamações protocoladas contra poderosas corporações), vitórias decisivas (como a decisão do STJ de proibir a publicidade para crianças e a venda casada de alimentos com brindes) e filmes de enorme repercussão (como Muito além do peso [2012], de Estela Renner).
Na terceira e atual fase, sem abdicar das duas anteriores, o Alana vem apostando não apenas no combate aos maus exemplos, como também na defesa dos bons. Ampliando sua atuação para além da questão do consumo, o instituto abraçou projetos como o Escolas Transformadoras (que identifica, apoia e conecta instituições de ensino brasileiras com práticas inovadoras) e o Criativos da Escola (que faz algo parecido com estudantes).
É neste novo momento que vem à luz mais um filme que promete enorme impacto social: O começo da vida, também dirigido por Renner, percorre o mundo para mostrar a importância de cuidar da chamada primeira infância (entre a gestação e os seis primeiros anos de vida) para que cada um possa desenvolver plenamente seu potencial – tema que sempre foi caríssimo ao Alana.
O documentário, produzido em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Bernard Van Leer e a Unicef, estreou no dia 5 de maio nos cinemas e no VideoCamp.com, plataforma gratuita com mais de 3 mil obras audiovisuais sobre transformação social que também é obra do instituto. Em junho, tem lançamento global para iTunes e Netflix.
Ana Lucia acredita que a nova fase vai ajudar a transformar também a imagem do Alana, ainda marcada pelas batalhas judiciais contra grandes empresas. “Eu já ouvi coisas do tipo: ‘Ah, você é aquela louca xiita que quer dizer o que meu filho deve ver na TV’. Ou então: ‘Você acha mesmo que não pode ter brigadeiro na festinha da minha filha?’. Algumas pessoas acham que a gente quer controlar a vida delas, mas nós buscamos o contrário: que as crianças não sejam controladas pela publicidade, pelo consumismo, pela violência. Queremos que elas sejam livres.”
Trip. Quando você e seu irmão descobrem que um terreno da família foi ocupado no Jardim Pantanal, como vocês decidem transformar o problema em projeto?
Ana Lucia Villela. Desde a adolescência, eu e o Alfredo conversávamos muito sobre a ideia de abrir um projeto social nosso. A gente já tinha o desejo e o dinheiro em comum, mas não sabia nem por onde começar. Aí um dia o Alfredo me liga e fala: “Ana, estou analisando tudo que a gente herdou dos nossos pais, dos nossos avós. E um dos bens foi um terreno em um lugar longe pra caramba. Meu faro me diz que esse terreno foi ocupado, porque o caseiro não vem pegar o salário dele há quatro meses. A gente não tá querendo fazer projeto social? Então, vai ver que estão adiantando esse processo pra gente. Você não quer ir lá na zona leste dar uma olhada?”. E eu: “Mas como é que eu chego lá? Nem carro eu tenho”. “Pega algum amigo e vai.” E foi isso que eu fiz. Peguei um amigo que tinha sido meu monitor num programa de intercâmbio, levamos 3 horas e meia pra chegar. Era uma ocupação gigantesca. Para você ter uma ideia, hoje há 30 mil famílias vivendo lá. Mas a gente acabou encontrando o tal do caseiro e pediu para ele nos ajudar a chegar nas lideranças da ocupação. E aí falamos: “Do que essa comunidade precisa? Podemos ajudar vocês?”.
Não era perigoso chegar numa ocupação e se apresentar como herdeira do terreno? No começo, a gente disse que era estudante da PUC e que estava lá fazendo um trabalho de faculdade. Só mais tarde meu irmão contou que éramos os donos. Os moradores acharam curioso. Quem estranhou foram os políticos que estavam por trás. A gente recebeu uns telefonemas, umas ameaças. Nos disseram: “Se você pedir a reintegração de posse, eu consigo fazer bem rapidinho pra você. Te devolvo o dinheiro, você me dá 30%”. Imagina eu, com pouco mais de 18 anos, escutando essas ligações...
Você não tinha noção do perigo. Eu era aluna do Paulo Freire na PUC naquela época. E ele tinha aquela crença de que todo ser humano tem potencial, falta só uma aposta naqueles que não tiveram chances. Eu estava apaixonada por essa ideia.
Depois de 22 anos lidando com a prática, e não com a teoria, a frase ainda faz sentido para você? Mais do que nunca.
Porque a realidade pode ser dura... Porra, e como! [Risos] Não foi fácil. Levei muito tapa na cara, chorei muito. Um dia meu irmão virou e falou: “Não aguento mais, vou embora, isso é uma utopia”. Aí eu disse: “Então vamos começar tudo de novo, de outro jeito”. Porque a gente apostou na ideia de fazer tudo junto com a comunidade. Nós dois estávamos no conselho da comunidade, mas nem tínhamos direito a voto. Era tudo demorado e difícil. Dez anos depois não tinha luz, não tinha esgoto encanado, o governo ignorava, era desesperador. Aí eu falei: “Vou fazer uma supercreche, uma escola para as crianças, dar cursos para adultos e idosos”. E a gente fez o Espaço Alana, uma espécie de mini-Sesc, mas com foco maior nos primeiros anos de vida. A ideia era dar para aquelas crianças pobres da zona leste o mesmo conteúdo que uma criança de classe média alta da zona oeste recebe. E aí ver o que acontece. Será que, com essa outra formação, eles vão entrar em boas faculdades, ter empregos melhores?
E o que aconteceu? Aconteceu tudo isso. A gente viu resultados lindos. Centenas de educadores que nasceram naquela comunidade e passaram pelo Espaço Alana entraram em ótimas faculdades e estão hoje espalhados pelo mundo, como professores, coordenadores, diretores de escolas públicas e particulares. Isso me mostrou que o Paulo Freire estava certo.
Em algum momento você decidiu ampliar o foco do Alana e partir para outras frentes. Por quê? Comecei a me perguntar: será que eu estou no lugar certo? Eu, Ana Lucia. Será que meu papel é vir pessoalmente nessa comunidade todos os dias? Porque tem outras pessoas que podem fazer isso, talvez até melhor. Mas eu tenho acesso a muita coisa que outras pessoas não têm, a grandes universidades, políticos, empresários. Aí aconteceu algo marcante para mim: eu comecei a me encontrar mais vezes com jovens herdeiros e empreendedores do mundo inteiro, que tinham as próprias fundações e a vontade de fazer um mundo diferente. Foi algo muito importante, porque eu não conseguia entender as pessoas que têm muito dinheiro, mas que são cegas para os outros. Hoje em dia mudou muito. Mas naquela época as pessoas achavam que eu era louca. “Ah, ela perdeu os pais e ficou meio doidinha...” Eu não tinha com quem trocar. Aí eu começo a me encontrar com esses caras sérios, nerds mesmo, mas muito simples e relaxados, que buscavam maneiras de transformar a sociedade. E eu me lembro de pensar: “Eu podia ser como eles. Posso pagar a consultoria dos maiores economistas do país e pedir para eles passarem um tempo olhando a questão da pobreza de outra maneira... Vixe Maria, posso muita coisa nessa vida!”. Não é que eu não soubesse, mas eu estava muito focada no Jardim Pantanal... Eu percebi que precisava ampliar esse foco.
E como surgiu a questão do combate à publicidade voltada a crianças? Quando dava aulas em escolas públicas, particulares ou no Alana, eu já tinha um incômodo de ver como as crianças estavam ficando homogeneizadas, com valores distorcidos, independentemente da classe social. Eu vi criança de 2 anos chorando na porta da creche porque não queriam deixá-la entrar de salto alto. Nós íamos visitar as famílias do Jardim Pantanal, olhávamos a geladeira e não tinha água, só refrigerante. E a gente perguntava a quantas horas de TV a criança assistia por dia, e muitas vezes a resposta era “11, 12 horas”. Mas como foi que isso aconteceu? Encontrei a resposta em um artigo do The New York Times, que um dia eu li voltando de um curso em Boston: “Marketing dirigido para crianças aumenta não sei quantos por cento”. Aquilo quase me fez vomitar, mas me deu um clique.
E desse clique nasceu o projeto Criança e Consumo? Não, não foi automático assim. Aquilo ficou na minha cabeça. Aí em 2005, quando conheci meu futuro marido, eu disse a ele que meu sonho era montar um museu de brincadeiras para crianças. E ele, que trabalhava com marketing, falou: “Isso, vamos chamar umas empresas para fazer umas ações”. E aí eu virei um bicho: “Como assim? Você está embrulhando meu sonho pra vender?”. A gente teve uma DR de umas 5 horas [risos]. E aí o Marcos, que é um cara muito sábio, disse: “Eu nunca vi você assim. Você tem que correr atrás disso. Esse é seu sonho, muito mais que o museu”. E aí de noite ele deu um Google: “criança, marketing, consumo”. E descobriu que haveria um encontro em Washington para discutir a relação da criança com o consumo dali a dois dias. Ele me disse: “Amor, você precisa ir nesse encontro. Eu vou com você”. Foi lá que eu conheci a [psicóloga americana] Susan Linn, que estudava o tema e virou mentora e amiga. Ela despejou sobre mim livros, artigos, nomes, eu juntei com minha experiência para montar o Criança e Consumo, que agora está completando dez anos. Foi o projeto que nos mostrou como a gente trabalha melhor. A gente faz advocacy como poucos, sabe comunicar, sabe fazer vídeo, consegue criar e potencializar redes, chegar nas pessoas.
E também são bons de briga. Como foram as batalhas com as empresas que anunciavam para crianças? Assim como foi no Jardim Pantanal, onde eu andava pra lá e pra cá de bicicleta, talvez eu não tivesse a dimensão dos riscos envolvidos. Mas era um problema real, a questão da publicidade para crianças, e ninguém queria falar sobre isso. As pessoas ficavam meio que rindo da minha cara. Então, se não vai ser por bem, vai ser por mal...[risos]. Às vezes tem que usar a força também para as pessoas escutarem.
Ninguém iria mudar só na conversa? No começo, não. Dez anos atrás, quase todo mundo achava normal o McDonald’s dar brinquedinho, a Coca-Cola fazer anúncio pra criança. Então o que a gente fez foi começar a ver TV o dia inteiro, identificar os abusos e enviar as reclamações para o Ministério Público. E a gente também foi identificando as poucas pessoas que falavam do assunto: uma mãe lá do Rio Grande do Sul que reclamou do comercial, uma psicóloga que escreveu tal artigo, o deputado que citou o tema na Câmara... Localizamos umas 40, 50 pessoas, e eu fui me apresentando: “Oi, eu sou a Ana Lucia, estou preocupada com as crianças e queria juntar todo mundo para conversar sobre isso”. Daí a gente trouxe essas pessoas para São Paulo e fez nosso primeiro congresso. E esse grupo nos ajudou a construir redes pelo Brasil inteiro e nos acompanha até hoje. E, neste ano, veio a cereja do bolo de todo esse trabalho: a decisão do STJ [Superior Tribunal de Justiça], por 5 votos a zero, de que a publicidade para criança e a venda casada são ilegais. A gente achou que essas vitórias chegariam em 25 anos de trabalho. Elas vieram em 10.
Por que foi mais rápido do que vocês pensavam? Eu acho que foi pelo poder do audiovisual. A gente fazia um trabalho de formiguinha, ia para as escolas, para as universidades, mostrava fotos, comerciais, conversava com os pais, dava bolsas para quem estudava marketing voltado a crianças. E tudo isso era ótimo. Mas a gente percebeu que ia demorar um século. Porque já havia estudos mostrando que a linha da obesidade infantil segue a linha do marketing no Brasil. Mas os pediatras não sabiam comunicar isso, e os jornalistas não se interessavam. Então o que a gente fez foi juntar tudo isso no audiovisual e jogar pro mundo de um jeito interessante. Você não consegue imaginar o impacto que os filmes da Maria Farinha, como Muito além do peso, Criança, a alma do negócio (2011) e Tarja Branca (2014) têm na vida das pessoas, quanta gente vem agradecer a Estela chorando. A gente conseguiu despertar um inconsciente coletivo sobre a questão do marketing para crianças.
E como as empresas reagiram a isso? Não muito bem... Nós fomos ameaçados algumas vezes. Eu recebi ligações de empresários dizendo: “Olha, eu tô ligando porque sou teu amigo, eu conhecia teu tio, teu pai. Você tá entrando num lugar que não lhe pertence, que é uma furada. Tudo bem você gostar de criança, mas você está sendo partidária”. Outro ligou meio que fingindo que era um aviso fofo de um tio: “Olha, é melhor você parar com esse projeto, isso não vai levar a lugar nenhum. Você fez boas faculdades, vem de boa família. Vamos parar com essa brincadeira. Já tá bom, né?”. Algumas pessoas que faziam parte do meu convívio pararam de falar comigo, de me convidar para as coisas. Eu chegava em casamentos, jantares, exposições, e eles não se dirigiam a mim, não falavam bom-dia, boa-tarde, boa-noite. Até vinho no vestido eu recebi, numa festa, de um grande empresário. Porque a gente estava mexendo em algo sagrado para eles: o lucro.
E como você reagiu aos telefonemas, ao vinho jogado? Para as pessoas que ligavam, eu dizia: “Olha, eu estou à disposição para conversar sobre o assunto, ouvir seus argumentos. Mas eu estou muito tranquila em relação a que eu acredito. Você também está?”. E eu fui a essas duas empresas. Foram reuniões muito duras, uns caras muito suados, muito nervosos, sabe? Eu saí com vontade de chorar, fiquei mal alguns dias, mas passou. No caso do vinho, eu apenas me limpei e disse pro cara: “Quando você pensar um pouco sobre isso por causa dos seus netos, você vai querer conversar comigo. Então tá aqui o meu cartão”.
E seus parentes, que têm amigos e parceiros nesses círculos, nunca lhe disseram: “Você tem certeza de que é isso mesmo que quer fazer?". Não quero puxar a sardinha para o nosso lado, mas acho que nossa família é bem bacana. Claro que muitos são empresários que acreditam no mercado, que estão preocupados com o lucro, mas, pode parecer antagônico, eles têm valores pessoais muito fortes. Eu convivi muito com eles, entrei no conselho do banco com 21 anos, fiquei uma década lá. Apesar da riqueza de todos, eram pessoas de uma simplicidade atroz, sem nenhuma ostentação. Uma vez, no começo do Criança e Consumo, eu dei uma entrevista para a TV sobre o projeto. Algumas horas depois, o Olavão [Olavo Setúbal, primo da avó de Ana Lucia, foi presidente do conselho do Itaú por décadas, prefeito de São Paulo e ministro das Relações Exteriores] me ligou em casa. Eu tomei um susto! Ele nunca tinha me ligado na vida. E telefonou para dizer que tinha visto o programa! Aí ele me disse [imitando a voz grave de Setúbal]: “Eu estou muito animado. Acho que você está fazendo um trabalho excepcional. Quero estudar mais o assunto, me mande o que você tem de melhor sobre isso. É uma escolha difícil, mas a gente tem que cuidar dos valores das pessoas, principalmente das crianças”.
Alguma vez o Alana bateu de frente com o Itaú? Sim, algumas vezes, com o Itaú, com a Duratex. Nós tratamos como qualquer outra empresa. Outro dia recebemos uma denúncia de que o Itaú fez uma ação para crianças no Rio de Janeiro com bicicletinhas que vinham com o logo do banco. Era só um dia. Mas não dá, né? Tivemos que fazer a reclamação.
O que a elite brasileira precisa fazer para ajudar mais o país? Em primeiro lugar, precisa estar aberta para conversar francamente sobre o país. Precisa colocar as questões sociais e ambientais na agenda, porque a verdade é que, na maioria dos casos, elas não estão. Precisa também exercer a empatia e olhar para os que estão do outro lado. Precisa parar de pensar apenas no lucro imediato e enxergar o longo prazo, ver que o mundo dos netos deles está ameaçado. Mas, como sou otimista, acho que as coisas avançaram nos últimos dez anos. As gerações mais novas estão mais engajadas. Tenho dialogado com muito mais pessoas da elite que estão batalhando para mudar o país. Vejo o crescimento do pensamento socioambiental dentro das empresas e a eficácia do mundo empresarial contaminando o processo de gestão das organizações da sociedade civil.
No começo da entrevista, você disse que já na adolescência queria criar um projeto social. De onde veio esse desejo? Às vezes a vida lhe dá umas lentes de aumento, para olhar as coisas de uma forma menos corriqueira. Em geral isso ocorre quando as coisas saem do controle. No meu caso, a primeira vez foi quando eu perdi meus pais. Aí eu tive a noção completa de que não tinha controle algum sobre o mundo e comecei a pensar um pouco diferente: “Já que a vida pode acabar amanhã, vou fazer as coisas de que gosto”. Então, com 8 anos, eu comecei a fazer algumas escolhas.
E a olhar mais para os outros? Sim. Quando as coisas tiram você do lugar comum, acho que você automaticamente olha mais para o outro. Além disso, toda criança já nasce empática, nós é que fazemos o desserviço de roubar a empatia dela. Depois que meus pais morreram, eu me lembro de estar no apartamento olhando pela janela e ver uma mulher andando com uma criança na calçada. Aí eu pensei: “Será que aquela pessoa é a mãe dela? Será que tem outras pessoas na mesma situação que eu?”. Outra lente de aumento que a vida me deu de bandeja foi uma viagem de intercâmbio que eu fiz para as Filipinas. Por acaso, eu fiquei hospedada na casa do sobrinho da Imelda Marcos [viúva do ditador Ferdinando Marcos, conhecida por sua coleção de 3 mil pares de sapato]. E um dia eu fui dormir na casa dela, em um condomínio fechado e murado. E ali do lado tinha uma pilha de lixo com um monte de criança procurando comida. E eu pensei: “Será que no Brasil é assim? Mas por que é assim?”. Eu nunca tirei aquela cena da minha cabeça e nunca mais parei de pensar no assunto.
O fato de você ter tido uma infância interrompida pela morte dos seus pais ajuda a explicar por que anos mais tarde você decide trabalhar para defender a infância dos outros? Ou é psicologia barata? Não, não é. Acho que foi a forma que encontrei para cuidar também da minha própria vida. Quando fiz mestrado em psicologia da educação, eu fui estudar a questão da inclusão. Era um tema que me afetava, porque me senti muitas vezes excluída. Eu me lembro de um ou outro bullying: “Ah, ela é a órfã?”. Também me lembro do desconforto de me perguntarem: “Essa é sua mãe?”. E eu ter que responder: “Não, é minha tia”. Quando meus pais morreram, meus tios moravam nos Estados Unidos com minhas primas e voltaram ao Brasil para morar na casa onde a gente vivia e cuidar da gente. E minhas primas viraram meio irmãs, são pessoas que adoro até hoje. Mas, quando vieram morar com a gente, elas ficavam falando em inglês para eu e meu irmão não entendermos. Foi mais uma coisa que reforçou esse sentimento de inadequação. E eu me lembro de pensar: “Imagina a inadequação de ser negro no Brasil? De ser pobre?”. Então, acho que todas essas coisas despertaram esse desejo de proteger a infância, de dizer para as crianças: “Vocês pertencem a um lugar, vocês são importantes pro mundo, vocês precisam ter uma moradia, uma escola que cuide de vocês, um Estado que olhe por vocês”.
Com o passar do tempo, você chegou a ver esse tio e essa tia como figuras paterna e materna? Ou, depois de oito anos, o registro de seus pais já era marcante o suficiente para durar uma vida toda? Meu irmão nunca teve dúvida: nossos pais eram nossos pais, nossos tios eram nossos tios. Mas, para mim, houve uma certa confusão no começo. Por muitos anos meus tios ocuparam, sim, o lugar de pai e mãe. Mas, depois de adulta, talvez até por causa das mil terapias que fiz na vida, fui aos poucos tentando recolocá-los no lugar de tios muito importantes, de tios tutores, mas de tios, porque eu tenho pai e mãe.
Você falou sobre uma série de inadequações que sentiu pela perda dos pais. Mas havia também uma inadequação com os valores e os códigos de sua classe social? Eu era uma ovelha negra. Meus amigos eram de fora desse universo. E eu nunca namorei ninguém da família “não sei das quantas”. Acabei me casando com um cara que estudou a vida inteira em escola pública, filho de pescador.
Como vocês se conheceram? O Marcos foi um dos criadores da primeira loja de comércio justo do Brasil, no Projeto Terra. E eu fui lá conhecer para saber como poderia usar esse conceito para ajudar os jovens que passavam pelo Alana no Jardim Pantanal.
E como ele entrou para o Alana? Quando fiquei grávida de minha segunda filha e tirei uma licença mais longa, sugeri que ele largasse o trabalho e assumisse o instituto. Ele tinha o perfil perfeito, com uma inteligência diferenciada e uma carreira em milhões de lugares. Eu falei: “Se você estiver comigo, a gente faz nossos sonhos acontecerem”. Porque nosso projeto de vida nunca foi só de formar a nossa família, mas um projeto para um mundo melhor, bem utópico mesmo, que é o Alana.
E como sua família viu seu casamento com um cara de origem simples? A origem não foi um problema. Mas sim o fato de ele ter sido casado duas vezes antes e ter duas filhas. Só que o Marcos conquistou todo mundo com duas conversas. Porque ele tem uma trajetória muito diversa, um advogado que fez MBA em economia, passou pela publicidade e pelo marketing, por empresas e pelo governo. Ele já havia circulado em vários mundos, então conseguiu dialogar com todos. Ele trouxe leveza para uma família que é mais séria, quebrou a monotonia dos jantares em que as pessoas falavam quase só de trabalho.
Você diz que as pessoas da sua classe social colocaram você na gaveta da excêntrica. Fora do seu meio, você acha que é colocada na gaveta da “bilionária”, da “banqueira”? Acho que tem gente que coloca e tem gente que não coloca. Com o tempo a gente fica safa nisso, né? Você já olha no olho da pessoa e sabe quem faz isso ou não. Mas eu sei que quem convive comigo de perto muitas vezes esquece que eu tenho dinheiro. Porque eu também me esqueço. Não vivo em função do dinheiro. Dos meus 20 aos meus 30 anos, eu observava como minhas amigas viviam, para ter um certo parâmetro de normalidade. Então eu tentava levar uma vida com gastos parecidos, sem excessos. Eu pensava: “Não vou viajar para tal lugar porque isso não é o normal”. Eu ficava me testando para me sentir um pouquinho mais normal.
Qual foi a importância da terapia para isso? Os tios que me criaram não acreditavam muito em terapia. Mas, quando eu tinha uns 15 anos, outra tia, a Milu [Villela, presidente do Itaú Cultural], que é psicóloga, sugeriu que eu fosse a um ginecologista, porque eu estava demorando a ficar menstruada e ela achava que eu não queria abandonar a infância. Era um médico antroposófico, todo fofo, que me fez mil perguntas. E foi a primeira vez que chorei em público porque meus pais tinham morrido. Eu não chorava. Quando minha tia falou que era a primeira vez, ele disse: “Terapia urgente!”. Fui fazer um trabalho corporal, de sentir meu contorno, minha pele, meu tamanho. E foi muito importante. Acabei fazendo milhões de tipos de terapias, alguns terapeutas eram bons, outros nem tanto, mas todas foram importantes.
A culpa é muito presente na sua vida? Muito. Tudo pra mim era culpa, inclusive a culpa de ter dinheiro. Fui aprendendo a lidar com ela, estou aprendendo, acho que melhorou.
Você trabalha muito para preservar a infância. Mas no dia a dia a realidade às vezes se impõe. Na sua casa, você consegue dar limites para suas filhas? A minha maior crise é não me achar uma mãe suficientemente boa. Mas pelo menos elas não me veem chegando com sacolinhas na mão, né? A gente tenta servir de modelo, mas o mundo é essa coisa insana. A coisa da tela eu consigo segurar bastante. Elas gostam de celular, querem pegar o meu, mas eu tento controlar. Na TV, faço uma curadoria do que entra ou não lá em casa, mas comecei a liberar um pouquinho mais pra Nina, para ela poder fazer parte do mundo também, né? Ela já tem 7 anos. Mas acho que a Ísis, que acaba de completar 4, só gosta de George, o curioso [filme infantil de animação].
Como você recebeu a notícia da síndrome de Down? Ah, foi difícil pra mim, por muitas razões. A primeira delas foi que eu me achava uma pessoa mais ou menos legalzinha e eu fiquei mal com a notícia. Senti várias formas de culpa: como assim ficar mal só porque ela tem Down? Será que eu engravidei muito tarde? Será que não tomei ácido fólico o suficiente? Mas, juro que não estou sendo piegas, hoje agradeço a Deus por ele ter me dado esse presente. Eu não tenho nem palavras pra descrever o que é ter essa menina na minha vida.
No mês passado você foi convidada para falar na ONU no Dia Internacional da Síndrome de Down. O convite surgiu por conta da sua experiência como mãe da Ísis? Não. Foi porque, a partir do nascimento da Ísis, a Alana Foundation, que criamos nos EUA para financiar pesquisas disruptivas, decidiu patrocinar um estudo com pesquisadores do mundo todo sobre a inclusão de crianças com necessidades especiais em escolas convencionais. No dia 26 de junho a gente vai divulgar os primeiros resultados, a prova científica de que a inclusão é boa para todo mundo: o desempenho do aluno fica melhor convivendo com alunos com necessidades especiais, porque ele aprende a lidar com a diversidade, aprende a ser empático, o professor fica melhor, o funcionário fica melhor, o diretor fica melhor e assim por diante.
Isso dá filme... Dá sim. Um filmaço. Já estamos planejando. A gente já tinha um projeto sobre inclusão no Alana chamado Outro Olhar. Mas aí nosso próprio time pediu: “Não faz sentido segregar um projeto sobre inclusão”. Então essa questão, de contemplar a diversidade das pessoas, se espalhou por todos os projetos do Alana e está muito presente no documentário O começo da vida. A Estela conseguiu fazer isso de um jeito mágico, porque não tem diferença entre o depoimento da Gisele Bündchen e o depoimento de uma mulher que vive em um cortiço; as falas delas têm absolutamente o mesmo peso no filme. Você esquece se o entrevistado é chinês, é negro, é pobre, é rico, se é pai de uma pessoa com Down ou de uma pessoa sem Down. São apenas pais e filhos.
Créditos
Imagem principal: Gabriel Rinaldi