Elzyo não morreu
Com vocês, Elzyo, o espírito do irmão do Elvis Presley! Aprovado por Raul Seixas, entrevistado pela Trip
O show está prestes a começar no Panelinha Baiana, um modesto mas animado bar que existia na rua Deputado Lacerda Franco, no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. O locutor da casa, onde normalmente se revezavam trios de forró, música brega e sertaneja, toma o microfone para chamar uma atração diferente, que se anuncia no cartaz toscamente diagramado na portaria como "the espiritual brother of Elvis Presley:
— Com vocês, Elzyo, o espírito do Elvis Presley!
Elvis, de fato, não morreu. Nem se transformou num anônimo caminhoneiro rodando pelas estradas de Memphis, como reza a lenda. Na verdade, ele habita um quarto-e-sala nas imediações do Largo da Batata, na capital paulista, e toca, em sociedade com Nenê, seu irmão (biológico, não espiritual), uma pequena loja de ferragens e manutenção de eletrodomésticos, a Comércio Eletro Pais Leme Ltda. Elvis, no caso, é o baiano Elzo José da Silva, 44 anos, vulgo Elzyo Presley ou, mais recentemente, Elzyo Silver.
Se na noite em que o locutor do Panelinha Baiana tomou liberdades para com o idioma de William Shakespeare o espírito de Elvis não baixou mesmo na casa (e há quem acredite nisso, como você vai ler adiante), uma coisa é certa: a voz, pelo menos, estava lá. Não há quem não se assombre ao ouvir Elzyio cantar sucessos como It's Now Or Never, Love Me Tender e American Trilogy com timbre quase idêntico ao original. Foi o caso de Raul Seixas, que ficou de cara ao conhecer Elvis mulato, no início da década de 80.
Mas quer deixar avexado esse nativo de São Tomé, vilarejo no meio do sertão baiano, próximo a Campo Formoso, que se mudou para a capital paulista com 2 anos idade, é chamá-lo de "imitador" ou "cover" do Rei do Rock. "Sou um intérprete das canções dele e de outros autores, sempre na praia do Elvis", explica Elzyo, do alto de seu 1,73 metro. O que ninguém explica é o que levou esse nordestino humilde emotivo a se apaixonar pela música do ídolo norte-americano desde que um amigo lhe mostrou Kiss Me Quick pela primeira vez, em 1969. Pouco depois, Elzyo iniciaria uma carreira que já dura incansáveis 25 anos.
Aprovado por Raul Seixas
Em 1984, numa tarde de janeiro, Elzyo caminhou os vinte metros que separam sua loja do restaurante Estrela do Norte, na rua Pais Leme. O salão simplório com meia dúzia de mesas de lata e ares de botequim era muito frequentado por Raul Seixas, que matava ali as saudades da culinária natal. Elzyo foi interceder por um amigo músico que queria gravar uma canção de Raul. "Já que você veio pedir por alguém, deve ter bom coração. Senta aí", disse o Maluco Beleza.
Entre garfadas de feijão-de-corda e carne de sol, descobriram o ídolo comum. No final do almoço, Elzyo deixou com Raul uma surrada fita cassete com suas gravações. "Ao chegar em casa, ele ficou impressionado com a interpretação e o timbre da voz do Elzyo", lembra o músico cearense Elton Frans, 50 anos, misto de empresário, produtor e babá de Raul Seixas na ocasião. Às 9 da manhã do dia seguinte, o autor de Metamorfose Ambulante irrompia como um alucinado na Comércio Eletro Pais Leme, eufórico com a ideia de gravar com o novo amigo um disco de tributo a Elvis Presley.
"Estive em Las Vegas em 83, num concurso de imitadores de Elvis", disse Raul: "O melhor deles, se te visse cantar, entrava debaixo da mesa e sumia de vergonha". Até hoje a lembrança dessas palavras deixa os olhos de Elzyo marejados. De lá para cá, passaram-se 18 anos até que o CD se tornasse realidade - com lançamento previsto para este mês pela RVN Music, uma gravadora do Rio de Janeiro.
Gospel no Prato Que Comeu
A infância humilde não impediu que Elzyo Silver tivesse uma formação musical de responsa. Aos 9 anos, ele já cantava música gospel no coro da Igreja Batista de Vila Mariana. A voz de tenor baritonado chamou a atenção de Miss Litha, norte-americana que representava a igreja em São Paulo. Em pouco tempo, o garoto regia o coro de 12 pessoas. Além de aulas de canto, a religiosa deu a Elzyo suas primeiras lições de inglês.
Ainda adolescente, o futuro Elvis tornou-se crooner das orquestras de baile dos maestros Silvio Tancredi e Élcio Álvares. Foi este quem descobriu a semelhança entre o timbre de voz de Elzyo e o do cantor de Memphis. Numa tarde de 1969, maestro Élcio colocou um compacto com Kiss Me Quick na vitrola para Elzyo ouvir. Foi uma iluminação: "Até aí, eu cantava outras coisas, mas não sentia que aquilo encaixava", conta ele, "mas quando ele me mostrou o Elvis, senti que realmente tinha a ver com a minha personalidade".
Foi o tempo de agremiar uma banda e nascer a carreira de Elzyo Presley. Colecionou apresentações no Clube Atlético Ipiranga, Sírio-Libanês, choperia Inverno e Verão, Avenida Clube, fez shows para as embaixadas norte-americana e angolana, viajou pelo interior do estado e para a Bolívia e o Paraguai. Em 1994, fez uma temporada de um mês no Playcenter, animando as "Noites do Terror". O público esvaziava as filas da Montanha Russa e da Casa do Monstro para ver Elzyo cantar.
Em 1997, no final de um espetáculo numa churrascaria em Itapecerica da Serra, uma mulher se aproximou de Elzyo com lágrimas nos olhos. "Ela disse que era vidente e que tinha visto Elvis Presley ao meu lado no palco", diz ele. Segundo ela, Elvis teria morrido antes de concluir sua obra, que agora se realizava na voz de seu intérprete nordestino. Embora tenha trocado a religião batista pelo kardecismo, Elzyo fica constrangido de especular sobre essa suposta ligação sobrenatural com seu ídolo.
I'M Not Him
Apesar da proteção espiritual e de uma agenda compromissada de shows, o baiano nunca pôde abandonar a loja de ferragens (que, diz, dá o suficiente "para comer e pagar as contas") e viver só de música. Nem encontrou uma grande gravadora que apostasse no seu trabalho. Sua maior oportunidade aconteceu em 1982, quando o amigo Élcio Álvares e a produtora Loja Chinello o levaram para um teste na RCA, em São Paulo - a mesma gravadora que detinha os direitos de Elvis Presley, morto cinco anos antes, em 1977.
Impressionados, os executivos o levaram para nova audição na matriz do Rio de Janeiro, dessa vez com a presença de um produtor norte-americano. Elzyo conta que cantou sobre playbacks feitos para Elvis, e o técnico da mesa de som, em dado momento, não sabia mais de quem era a voz de quem. "Perguntaram pra mim se eu não estaria disposto a cantar como se fosse o Elvis sobre alguns playbacks inéditos que estavam prontos antes de ele morrer", diz Elzyo, que ficou com medo da proposta. "Achei que seria muito atrevimento. Coisa do Elvis só ele pode colocar a voz". Por causa desse episódio, Elzyo compôs a música I'm not him, onde frisa que não deseja ser confundido com seu ídolo. "O Elvis é único, o maior do mundo", emociona-se, "ninguém pode se comparar a um homem coo aquele."
Essa também é a razão pela qual Elzyo nunca quis gravar um disco com versões em português dos clássicos do cantor. Engana-se quem pensa que esse Elvis mulato renega a música brasileira pra pagar pau para a cultura dos gringos. "Quero fazer o contrário, versões em inglês das músicas brasileiras e levar coisas nossas lá para fora", argumenta ele, que incluiu no disco de tributo a Elvis uma versão do hit brega Morango do Nordeste, de Walter de Afogados e Fernando Alves, que na tradução virou Strawberry of America. Para marcar essa nova fase da carreira, Elzyo trasmutou em Silver o Silva de seu sobrenome e trocou pelo Presley que usava no nome artístico.
Banho de Interpretação
O quarentão Elzyo continua solteiro. Já morou com duas mulheres, mas nunca se casou no papel. "É difícil mulher entender a vida de artista", explica. "A gente chega tarde, elas ficam com ciúme..." Quanto ao assédio das fãs, encantadas com seu vozeirão, ele disfarça, diz que é sossegado. "Alguma coisinha pinta", acaba confessando.
O cantor ensaia todas as quintas-feiras num karaokê na rua Cardeal Arcoverde, antes de a freguesia chegar. Ele está agora num pequeno palco de dois por três metros, regendo - de camisa xadrez, calça jeans e sapatilha chinesa - a banda que já está com ele há dez anos: o guitarrista Isaías, o baixista Beto, os tecladistas Rodrigo e Christian e o baterista Pecos. "Come here, right now", brinca dele quando entra no bar a reportagem da Trip - que dias depois, ganhou uma ducha Corona como cortesia da loja de Elzyo.
A banda está bem ensaiada. Afinal, o CD Elzyo Silver Live In Memory The King of Rock foi gravado ao vivo na danceteria Woodstock, em São Paulo - num evento organizado pelo fã-clube paulistano Gang'Elvis, que existe desde 1967 e é uma das 560 associações oficiais de culto a Elvis Presley existentes no mundo inteiro. "Elzyo não tem a cara bonita, mas é só ele começar a cantar que emociona os fãs mais exigentes", elogia Walteir Tercianim 54 anos, fundador do Gang'Elvis.
VEJA TAMBÉM: O TripTV reencontra Elzyo Silver 'Presley'
Elzyo canta Let It Be Me e It's Now Or Never de Presley, ataca a versão de Morango do Nordeste, manda Proud Mary, do Creedence Clearwater Revival. É uma experiência à parte ouvi-lo interprentar clássicos do rock e da música pop da maneira como Elvis o faria. No fim do ensaio, a banda vai de Yesterday, dos Beatles, e as poucas pessoas presentes no boteco da rua Cardeal Arcoverde têm a oportunidade de imaginar como teria soado uma versão do Rei do Rock para a canção mais executada de todos os tempos.
A fama ainda não chegou, mas o espírito do irmão do Elvis continua vagando por aí.
Créditos
Christian Gaul