Do surf eu vim, pro surf voltarei

Thyola se desfez da sua megafábrica de pranchas e voltou a surfar como nos velhos tempos

por Caio Ferretti em

Thyola não tinha como esquecer aquela cena. Era início da década de 60 e o moleque de apenas 12 anos pegava uns jacarés nas marolas do Guarujá, no litoral de São Paulo, quando viu um surfista cortar a onda que vinha em sua direção com uma prancha de madeira. Até então ele nunca havia presenciado algo parecido. No máximo dropava algumas ondas em cima de sua planonda, que, na verdade, era um simples pedaço de isopor, nada perto do que ele tinha acabado de ver. Aquilo sim era novidade. E ele precisava experimentar. Não demorou muito e Thyola conseguiu emprestado aquele madeirite flutuante para tentar repetir a cena que o surpreen­dera, mas dessa vez atuando como personagem principal. Foram poucas tentativas até conseguir, de fato, surfar. A partir daquele momento Thyola decidiu que viveria em função do surf. Só não imaginava que um dia seria dono de uma das maiores fábricas de pranchas da América Latina – e que, ironicamente, isso o afastaria das ondas.

A relação de Thyola com o mar se intensificou rapidamente depois daquele primeiro drop. O moleque que morava em São Paulo e só ia para o apartamento da família na praia durante as férias passou a fazer visitas mais constantes ao litoral. Às vezes, viajava por vários fins de semana seguidos, de ônibus, só para se juntar ao grupo de surfistas que começava a surgir na década de 60 no Guarujá. O problema é que esse costume era demais para o conservadorismo de seu pai. Advogado, o pai de Thyola parou de lhe dar dinheiro quando sentiu que o filho havia se afastando da família para se dedicar ao surf. A tática teve efeito contrário. Para levantar uma verba e poder se virar sozinho Thyola mergulhou ainda mais fundo no mundo das ondas.

Ao lado do amigo Antonio Brito [ver perfil da Trip #172 em http://tinyurl.com/mpgddql], começou a consertar e fabricar pranchas de fibra de vidro em garagens alheias, ainda em São Paulo. Tudo de maneira muito artesanal. “O Brito pegava umas revistas americanas de surf, escolhia as melhores fotos das pranchas, desenhava quadradinhos em cima e montava uma escala. Dali nós tirávamos as medidas para fazer nossas próprias pranchas”, lembra. Numa cena de surf que estava apenas começando, a dupla logo passou a ser requisitada. “Era pra gente mesmo usar, mas o pessoal via na praia e pedia pra comprar. Aí fazíamos outra, e outra.” Assim criaram a antiga marca Moby Surfboards – e Thyola conseguiu juntar dinheiro para fazer sua primeira surf trip, ao Peru, em 1972.

Lá ele finalmente conheceu uma fábrica de pranchas de verdade e aprendeu algumas técnicas novas usadas na fabricação. Nessa época, o shaper Neco Carbone apenas sonhava em começar na profissão e via em Thyola um exemplo. “Ele foi ainda muito jovem para o exterior e trouxe uma tecnologia de lá a que poucos tinham acesso. Isso serviu de inspiração para todo mundo que começou a fazer prancha depois. Ele era a referência”, diz.

De volta ao Brasil e ainda sob boicote financeiro do pai, Thyola continuou a trabalhar ao lado de Brito. Sempre com o mesmo objetivo. “Eu fazia pranchas pensando em viajar pra surfar. O objetivo era juntar um dinheiro pra ir atrás da onda perfeita.” Foi o que fez quando percebeu os caixas da Moby cheios o suficiente para bancar uma nova surf trip, dessa vez mais ousada. Foram seis meses de 1974 cruzando as Américas até conseguir alcançar o destino final, a Califórnia. No trajeto surfou no Peru, no Equador, no Panamá, na Costa Rica, em El Salvador e no México, mas chegou à costa oeste americana sem nenhum trocado no bolso. Precisou ligar para o irmão Mádio Chiarella, o Madinho, no Brasil e pedir para que ele organizasse uma rifa entre surfistas com uns quadros que pintava de passatempo. Deu certo. Recebeu dólares o suficiente pra passar um mês desbravando as ondas californianas que ele admirava nas fotos de revistas. “Ele assumiu esse lifestyle desde o início, ou seja, fazer pranchas pra surfar e viver do surf. Eu mesmo tive uma Moby dele”, lembra o amigo Sidão Tenucci, surfista e criador da marca de surfwear Op.
Mas as pranchas não foram a única fonte de renda de Thyola na primeira metade da década de 70. Ele havia entrado na faculdade de arquitetura e precisava bancar as mensalidades sozinho. O surf seria de novo sua salvação. Entre idas e vindas do Havaí ao Brasil, o shaper americano Mark Jackola começou a trazer para cá filmes de surf que, até então, só existiam no exterior. Foi a deixa para que o salão de festas do prédio de Thyola, na aristocrática rua dos Ingleses, em São Paulo, virasse um cinema improvisado. “Lotava. A gente dava dez ingressos para cada surfista que conhecíamos e eles saíam vendendo. Quem vendia todos entrava de graça. Quando mostrava um cara entubando a galera gritava, era demais. Marcaram época esses filmes.”

Assim como também marcaram época os campeonatos de surf que Thyola organizava no Guarujá. De tão iniciante que era a cena do esporte na época, era possível montar competições com surfistas eleitos por voto popular. “Eu passava uma lista com nomes de surfistas pra um pessoal e eles votavam. Os escolhidos competiam. Naquele tempo era o Almir e o Picuruta Salazar, o Cisco Araña, o Sidão Tenucci.” Thyola julgava. Uma experiência que lhe rendeu currículo para ser juiz de campeonatos internacionais na Austrália nos anos seguintes.

Da salinha ao galpão
Por volta de dez álbuns de fotografia estavam espalhados sobre a mesa do apartamento de Thyola no Guarujá enquanto ele conversava com a reportagem da Trip. Ao folhear cada um deles e passar os olhos por fotos das primeiras pranchas produzidas, das ondas surfadas na Indonésia e das paisagens visitadas no Havaí, Thyola suspirava e soltava frases do tipo “como era bom esse tempo” e “preciso voltar a fazer isso”. O ritmo de vida acelerado tirou dele uma de suas principais diretrizes de vida: vender pranchas para conseguir viajar atrás de ondas. Até certa idade ele conseguia viver dessa forma, mas já fazia anos que não era assim.

O destino de Thyola começou a ser desenhado quando, em 1975, o mesmo Mark Jackola que trazia filmes de surf para o Brasil importou a lendária marca Lightning Bolt (leia box na pág. 117) e o convidou para uma parceria. Mark faria o shape das pranchas e Thyola cuidaria de sua especialidade, a pintura e o acabamento com resina. Para usar a marca, pagariam royalties aos criadores da
Lightning Bolt nos Estados Unidos, Gerry Lopez e Jack Shipley. Já fazia um ano que havia deixado o apartamento dos pais em São Paulo para morar definitivamente no Guarujá. “Abrimos uma fábrica bem pequena, com duas salas. Mark trabalhava em uma e eu, em outra. Mesmo assim chegamos a fazer umas 60 pranchas por mês. Nessa época eu ainda conseguia sair por mais de dois meses para viajar e surfar”, lembra.


Naqueles tempos alguns dos shapers mais renomados do mundo, como Barry Kanaiaupuni, Dennis Pang e Erick Arakawa, vinham ao Brasil para fazer pranchas ao lado de Thyola. “Cada vez que vinha um gringo desses fazer shapes era uma revolução. Antes de eles pisarem aqui todas as pranchas já estavam vendidas sob encomenda”, lembra. E o irmão Madinho, completa: “Naquela época os caras não sabiam nem onde era o Brasil, não sabiam nem onde ia pousar o avião, mas meu irmão conseguia trazê-los”.
As coisas começaram a mudar quando Thyola resolveu sair do pequeno espaço de duas salas para ocupar um megagalpão, em 1990. Era o início daquela que viria a ser uma das maiores fabricantes e exportadoras de pranchas da América Latina. “Cheguei a mandar de uma só vez mais de 130 pranchas para o exterior.” Da produção artesanal em garagens ao gigante empreendimento, Thyola ganhou mais dinheiro, mas perdeu a liberdade de poder surfar quando quisesse. As encomendas e as responsabilidades eram grandes demais para ele fechar as portas por meses só pra curtir umas ondas na Indonésia ou no Havaí. Pior, eram grandes o suficiente para que ele não conseguisse cair regularmente nem no mar que fica a dois quarteirões de sua casa.

Bastou. “Estou com 57 anos, acho que já está na hora de pensar em acalmar. Hoje eu ainda tenho força pra pegar onda, então quero aproveitar. Eu sei que tem surfista de 80 anos em atividade, se eu começar a surfar agora com certeza vou conseguir chegar lá.” Decidido a mudar, Thyola acaba de se desfazer da megafábrica que levantou, alugando tudo, para poder fazer exatamente o que fazia quando tinha 20 anos de idade.

O grande galpão onde funcionava a fábrica foi praticamente loteado. Enquanto alguns shapers alugaram salas menores para trabalhar, a maior parte do espaço ficou com Luis Felipe Gontier, o Pipo, que já trabalhava ao lado de Thyola – e também foi um de seus aprendizes. Dono da GZero, loja que introduziu no Brasil novidades nos esportes de prancha como o stand-up paddle, Pipo pretende usar as máquinas que ali estão para fabricar shapes e protótipos para diversos fins.
Thyola voltou a ter apenas uma pequena salinha para fazer algumas pranchas sob encomenda. “Quem quiser algo de nível vai me procurar. Quero ver se com esses 40 anos de experiência faço uma tabela de preços diferenciada do mercado”, diz. E completa em tom de brincadeira, mas com fundo de verdade: “Se o mar estiver muito bom, perfeito, vou cobrar a tabela de preços A. Se estiver ruim é a tabela C. Agora é o mar que vai dar o preço das minhas pranchas. Se quiser que eu trabalhe num dia bom pra surfar vai pagar caro. A ideia é mudar mesmo, mudar radicalmente. Ter um modo de vida diferenciado. Surfar mais e trabalhar menos”.

A Ferrari das pranchas
“Aquele raio desenhado na prancha sempre chamava muita atenção.” Thyola tem razão. Nos anos 70 e 80, o símbolo da Lightning Bolt impunha no universo do surf um respeito equivalente ao cavalo da Ferrari para os aficionados por carro. Os melhores surfistas da época viviam aparecendo na capa das maiores revistas ostentando pranchas com o tal do raio. Ele era sinônimo de design arrojado, de alta performance, de uma revolução sobre as ondas. Thyola resume: “Era a top, a melhor prancha”. E o fato de ele ter introduzido a marca no Brasil já dá um bom indicativo da importância do shaper para o surf nacional.

A Lightning Bolt original foi criada em 1970 em Honolulu, no Havaí, por dois mitos do surf, Gerry Lopez e Jack Shipley. O momento era de transição no mundo do surf com a shortboard revolution, quando as pranchinhas começaram a ocupar o lugar dos longboards e os australianos chegaram ao Havaí com um surf de manobras antes impensáveis para os vagalhões do arquipélago. Gerry e Jack souberam aproveitar as mudanças para criar pranchas que dominaram a cena levando agilidade inédita ao esporte – uma novidade que fez de Gerry o rei do tubo em Pipeline e transformou o australiano Mark Richards em um mito quatro vezes campeão mundial.

A imagem do raio associada aos ícones do surf fez a marca se espalhar pelo mundo, criando uma longa hegemonia no esporte. Hoje a Lightning Bolt continua ocupando uma faixa importante do mercado, mas seu brilho agora é dividido com outras marcas inovadoras.

Crédito: Aequivo pessoal
Crédito: Arquivo pessoal
Crédito: Arquivo pessoal
Crédito: Arquivo pessoal
Crédito: Arquivo pessoal
Crédito: Arquivo pessoal
Crédito: Merkel/A-Frame
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