Diário de um confinamento na China

Sócio de uma empresa na cidade de Shenzhen, o brasileiro Luciano Drehmer foi colocado pelo governo chinês em um isolamento de 14 dias na volta ao país. Do quarto, ele relata a experiência à Trip

por Fernanda Nascimento em

Faz três anos que Luciano Drehmer chegou à China pela primeira vez. Depois de uma temporada numa comunidade de nômades digitais na Tailândia, ele desembarcou em Shenzhen, cidade conhecida por ser o Vale do Silício asiático, onde abriu uma empresa com um sócio chinês. Nos últimos meses, o brasileiro passou um tempo fora e assistiu de longe a epidemia do coronavírus tomar a China. Ele esperou o número de casos baixar antes de voltar para o país mas, quando chegou, foi encaminhado para uma quarentena de 14 dias imposta pelo governo chinês mesmo depois de seu exame dar negativo para o vírus. Pelo telefone, no quarto de hotel onde está confinado, Luciano contou à Trip sua experiência.

Fronteira entre Hong Kong e Shenzhen - Crédito: Arquivo pessoal

“Eu estava em Bangkok quando a epidemia do coronavírus estourou e manadas de turistas chineses começaram a chegar na Tailândia. Resolvi sair de lá porque o país tornou-se um possível foco da doença e fui para Portugal esperar na Europa. Fiquei lá por uns dois meses e, quando o bicho pegou, vi que a situação estava melhorando na China. Eu pensei: ‘É hora de voltar’. Desembarquei em Hong Kong, que é um lugar bem liberal e nem precisa de visto para brasileiros, mas tudo já foi mais burocrático que o normal, com muitos formulários e perguntas na imigração. Fiquei dez dias lá para tirar meu visto de trabalho antes de ir para Shenzhen, já que ainda não tenho o permanente. Na verdade Shenzhen e Hong Kong são quase a mesma cidade, mas divididas por um muro – tipo um Muro de Berlim contemporâneo. É possível cruzar essa fronteira por balsa, trem-bala, metrô, carro… São dez pontos, chamados de checkpoints, mas só um deles estava aberto. Quando cheguei, já vi que o clima estava meio tenso. Sempre achei a fronteira da China fácil de atravessar quando você tem um visto, mas dessa vez foi mais difícil.

Recepção do hotel onde Luciano Drehmer, na foto à direita, está isolado - Crédito: Arquivo pessoal

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As perguntas eram muito mais rigorosas. Primeiro pediram meu histórico de viagem, o número do voo, o assento do voo. Isso porque, caso você tenha o vírus, eles conseguem rastrear e saber se tem mais gente contaminada no seu avião. Dali eles te colocam numas triagens com pessoas com roupas especiais como aquelas usadas no ebola e tiram sua temperatura umas 500 vezes. Perguntam seus sintomas, os países por onde você passou, novamente seu assento no voo. Acho que eles fazem isso umas quatro vezes e depois pegam seu endereço e contatos porque vão te rastrear na cidade o tempo todo. Vão literalmente bater na sua porta.

Fronteira entre Hong Kong e Shenzhen - Crédito: Arquivo pessoal

Até aí eu achei que estava tudo bem, né? Quando passei a imigração, cheguei numa outra fila e outro pessoal com roupa especial estava separando todo mundo por setores. Chegou uma tradutora perguntando: 'Onde você mora?'. Eu falei: 'Não tenho casa, estou com visto de trabalho e vou ficar com meu sócio'. 'Então vamos ter que te encaminhar para um alojamento do governo', ela disse. Eles não deixam você ficar numa casa com outra pessoa pelo risco de contaminar alguém. Como é tudo muito rápido e essas políticas vão mudando de um dia para o outro, você nunca sabe o que está acontecendo na imigração. Todo dia é uma coisa nova e ninguém tem informação. 

Hotel preparado pelo governo chinês para colocar os turistas em isolamento - Crédito: Arquivo pessoal

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Aí, fiz um cadastro, mediram de novo minha temperatura, perguntaram mais uma vez endereço, contatos, assento do voo, histórico de saúde, sintomas e tal. Quando passei o endereço do meu escritório, me colocaram numa fila para a minha região. Ali, perguntei onde ia e ninguém sabia responder. Só dizem que um carro vai te buscar e levar para um alojamento. Chegou uma minivan para buscar meu grupo, que tinha em maioria pessoas de Hong Kong atravessando a fronteira e uma turista russa. Encostamos em um hotel e pensei: 'Ufa, vão colocar a gente aqui'. Mas estava lotado. Bom demais pra ser verdade. Foram três paradas até chegar em um hotel com vagas. Todos são preparados pelo governo: fecham o hotel, tomam conta e colocam uma equipe médica lá dentro, tudo protocolo hospitalar mesmo. Mas eu achei o trato deles bem humanizado.

Cadastro no hotel para cumprir os 14 dias de isolamento; à direita, material distribuído para higiene - Crédito: Arquivo pessoal

Fizemos mais um cadastro para entrar no hotel e nos informaram os protocolos: não pode fumar nem consumir bebida alcoólica no quarto, você recebe três refeições por dia e uma equipe aparece a cada três ou quatro horas para medir sua temperatura. Achei que ia chegar no hotel, fazer o exame e sair quando desse negativo. Mas descobri que ia ter que ficar 14 dias fechado no quarto – ainda estou, neste momento. De fato, você faz um exame de coronavírus na chegada. É um cotonete que passam no fundo da língua e em um dia o resultado chega por SMS. O meu deu negativo mas, como sou um turista com visto de trabalho retornando para a China, tenho que cumprir os 14 dias de isolamento. Muita gente está cumprindo essa quarentena aqui, inclusive pessoas que eu conheço. Existem casos de pacientes que foram testados e o resultado deu negativo e depois positivo. Pode ser a razão deste protocolo que estão seguindo. Não sei. Eu provavelmente vou testar de novo no último dia.

Recepção e quarto do hotel para onde Luciano foi levado - Crédito: Arquivo pessoal

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Dois ou três dias depois de chegar no hotel, me ligaram e disseram que eu teria que ir embora de lá porque tinham me colocado no setor errado. Entrei numa van e, quando o carro encostou, vi que estávamos no Hospital de Infectologia de Shenzhen. Perguntei para a chinesa que estava comigo no carro se era ali que a gente ia ficar. Pedi que ela perguntasse para o motorista, mas ele não respondeu. Aí ela começou a chorar, ligou para a mãe e eu também fiquei preocupado. Pensei: 'Será que o exame deu positivo e vão me colocar aqui?'. Não. O motorista só passou lá para pegar um negócio e a gente ia seguir viagem para outro hotel. Como eu já morava aqui, não estranho mais essa coisa deles não falarem nada, não darem explicações. Já me acostumei. Mas imagino que agora quem fizer visto vai começar a ser avisado sobre essa política de quarentena. 

Pratos das três refeições servidas diariamente durante o isolamento - Crédito: Arquivo pessoal

O lugar para onde te mandam é meio loteria. Tem o hotel espelunca, o hotel cinco estrelas… O governo pega, toma conta e coloca as pessoas dentro. Não dá pra escolher: 'Ah, quero pagar por classe executiva'. Você vai passar o endereço na imigração e eles vão te alocar num hotel daquele bairro, qual tiver vaga. E como todo mundo que chega fica de quarentena eles estão bem cheios. Só no que eu estou devem ter umas 200 pessoas. Quando cheguei, me perguntei se teria que pagar por isso e, sim, quatro dias depois chegou a conta. É um bom hotel, com um quarto grande e bem limpo. Cada diária, com estadia, alimentação e exames, vai me custar cerca de 400 yuans por dia – o que dá uns 300 reais. Eles me mandam tudo o que eu preciso, mas não posso sair do quarto. A comida quase sempre é boa, mas às vezes é para um paladar mais exótico, tipo uma sopa com pé de frango. Quando não consigo comer, peço comida pelo telefone, já que pedir delivery está autorizado. Pelo WeChat, o WhatsApp chinês, eles mandam os horários de tudo e você fica em contato direto com o médico. Te dão um termômetro na chegada e a toda hora perguntam sua temperatura. Eles também ligam no telefone do quarto. Basicamente é um hospital com internet, TV a cabo, banheira e roupão. 

Nem todos os pratos servidos no quarto pareciam apetitosos, mas o delivery de comida foi liberado - Crédito: Arquivo pessoal

Como não falo chinês, peço para o meu sócio me ajudar com os problemas de comunicação que tenho com eles. Mas a sensação que eu tenho aqui é de muita segurança. Eles estão cuidando muito bem da gente. E sei que, se eu sair na rua, não vou pegar coronavírus porque todos os casos que estão surgindo na China estão sendo filtrados por este sistema. Até um mês atrás meu sócio estava confinado dentro do apartamento, mas agora está tudo normal em Shenzhen. A cidade está funcionando, todo mundo sai de máscara. Nos dias que fiquei em Hong Kong, antes de atravessar a fronteira, também estavam todos 100% de máscara. Não tem um boteco que você entra e não tiram sua temperatura. Não existe uma loja de conveniência sem um totem de álcool gel para limpar as mãos antes de entrar. Eles são muito rígidos com higiene. Eu vejo eles aqui, vejo o que estão fazendo no Brasil, e fico apavorado. Eu estou me sentindo muito protegido e sei que o que os chineses estão fazendo está mantendo a situação sob controle. Eu sou muito grato por tudo isso porque é uma forma de proteção."

Créditos

Imagem principal: Arquivo pessoal

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