Nosso corpo. Nossas regras?
Eles mexem com nossos sentimentos e atitudes, podem até nos fazer mais ou menos felizes, consumistas, autoritários. E ainda assim pouco sabemos sobre eles, os hormônios
Se perguntarmos a uma pessoa (você, por exemplo) quem está no controle de suas ações, quem manda no que você sente, faz e fala, ou até mesmo no que você compra, é possível que a resposta seja bem trivial. Algo como: “Eu, né?!”. Quase. Não está errado, com certeza, mas também não há pouco de ilusão nisso. E não estamos falando sobre ninguém ser subjugado. O assunto aqui é oxitocina, melatonina, adrenalina, testosterona… Quer dizer: hormônios. Pouco falamos sobre eles, mas têm muita – muita mesmo – importância na definição daquilo que somos e fazemos, mais do que normalmente temos consciência.
E não são poucas essas substâncias. “Como a biologia molecular trouxe mais ferramentas de identificação de moléculas e existem muitas moléculas que são consideradas hormônios, esse número cresceu para mais de uma centena”, explica a neuroendocrinologista Maria Bernardete Cordeiro de Sousa, precursora no Brasil de pesquisas sobre hormônios (os conhecidos) que têm alguma influência em nosso comportamento. Em 1996, ao voltar de um pós-doutorado na University of Wisconsin, nos Estados Unidos, Bernardete criou a disciplina endocrinologia comportamental na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ainda que não seja uma área nova na neuroendocrinologia (começou a ser estudada nas faculdades norte-americanas nos anos 50), a UFRN ainda é uma das únicas instituições no Brasil que têm essa disciplina formalizada na graduação e na pós-graduação.
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É em Natal, dentro do Instituto do Cérebro, que fica o Laboratório de Endocrinologia Comportamental, coordenado por Bernardete. O trabalho no laboratório é focado em criar modelos experimentais e em investigar a associação entre hormônios e cognição – o que, geralmente, implica uma associação entre vários hormônios que atuam no cérebro. “Os neurônios se comunicam por sinapses e várias dessas sinapses são moduladas pelos hormônios, que dão inclusive o nosso estado de humor”, explica a neuroendocrinologista. Por humor, podemos pensar tanto nas alterações diárias de felicidade e tristeza quanto em quadros clínicos de ansiedade e depressão. Passam por esses estados também a agressividade de doidos por guerra que comandam alguns países, como o norte-coreano Kim Jong-un.
Chumbo trocado
Todas as nossas atitudes, de alguma forma, dialogam com nossos hormônios – e, inversamente, tudo o que fazemos tem influência na produção dessas substâncias. Por essa razão, o neurocientista Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro e especialista em questões ligadas ao sono, ressalta a importância de sermos melhor orientados a respeito deles. “O conhecimento de hormônios é muito útil para o cidadão médio, para ter saúde, saber educar os filhos, saber conduzir a vida em rotinas”, ele diz. “A gente não respeita nosso ciclo biológico. Você chega em casa cansado do trabalho e aí, de repente, vai ver televisão, internet, o que seja, até 2 horas da manhã.”
Sendo assim, se não há como ignorar a atuação dos hormônios, tampouco podemos culpá-los. “Os hormônios por si só não são substâncias que determinam os comportamentos. Eles estão envolvidos com a expressão dos comportamentos, intensificando ou atenuando as respostas”, explica Bernardete, lembrando ainda o peso de outros fatores fisiológicos e genéticos, além de experiências prévias, idade, sexo e contexto social. Não arrume desculpa para a sua parte. “O hormônio modifica o comportamento e o comportamento modifica o hormônio. É uma relação bidirecional.”
Não é (só) culpa dos hormônios
Ao debater a constante queda de braço entre gente como Donald Trump e Kim Jong-un, como não se perguntar: há algo de hormonal em tudo isso? Uma disrupção, um descontrole? Em defesa do bom senso (e nunca em defesa deles), não é o caso de ignorar fatores culturais e sociais preexistentes, assim como princípios éticos, morais e de honestidade. Mas há, sim, influência biológica em certos padrões beligerantes. Segundo detalha Bernardete, para esses comportamentos de dominância, “existem evidências científicas que demonstram uma associação entre o comportamento agressivo e a testosterona”. E o que pensar de nossa infindável lista de políticos flagrados por corrupção? “Algumas evidências científicas associam a testosterona ao comportamento corrupto”, conta a cientista. “Em situações em que os líderes amplificam seu poder, aumenta a corrupção, o que é acompanhado por níveis mais elevados de testosterona em testes realizados em ambientes de laboratório”, completa.
Dormir não é brincadeira
Conversar sobre hormônios é, inevitavelmente, conversar sobre um equilíbrio biológico. E, se a relação que temos com essas substâncias é de chumbo trocado, esse equilíbrio só é possível em uma rotina de vida também equilibrada, que respeite nossas necessidades fisiológicas. Por exemplo: o sono. “O sono é fortemente regulado pelos hormônios. Melatonina no início da noite, cortisol no final da noite, ao despertar”, explica Sidarta Ribeiro. “Existe uma regulação hormonal muito complexa que une sono, apetite e aprendizado.” Segundo o cientista, não dormir corretamente pode perturbar o equilíbrio hormonal e acarretar diversos problemas. Ele lista: ansiedade, depressão, problemas cognitivos, problemas de memória, obesidade, e é fator de risco para Alzheimer. “Os hormônios são um tipo de mecanismo fundamental do corpo para se manter em equilíbrio”, diz Sidarta, que destaca a importância de corrigir a rotina antes de optar por remédios: “Muitas pessoas, em vez de tentar voltar ao equilíbrio pela rotina, tendem a voltar farmacologicamente. ‘Olha, eu vou tomar um negócio aqui que vai resolver’. Na hora, resolve, e o sistema vai ficando cada vez mais dependente de fatores externos”.
O mal do século é coisa nossa
O sistema nervoso central e as glândulas adrenal e hipófise formam um de nossos mais importantes mecanismos de regulação hormonal. É a partir da interação entre eles que produzimos uma substância chamada cortisol. Bernardete resume em uma frase a importância dessa substância: “Cortisol é o cara!”. Ela explica a importância do hormônio: “Esse eixo é fundamental para nossa sobrevivência, pois permite que apresentemos uma resposta fisiológica, com energia e repertório comportamental, adequada ao contexto, algo essencial para fazer frente a desafios do dia a dia”. No entanto, motivada por razões reais (um assalto à mão armada, por exemplo), psicológicas (estresse decorrente do trabalho, relacionamentos abusivos etc.) ou mesmo pelo estilo de vida superestimulado do mundo de hoje, uma sobrecarga nesse sistema pode fazer com que o cortisol, conhecido também como hormônio do estresse, seja produzido em excesso. Esse desequilíbrio é o principal responsável por doenças mentais como ansiedade, depressão e síndrome de burnout.
Harmonia hormonal
Os praticantes de meditação afirmam há alguns milhares de anos todas as coisas boas que a prática pode fazer para o corpo e a mente, mas foi só a partir dos anos 2000 que comprovações científicas começaram a se empilhar. Meditar, descobriu-se em laboratórios do mundo todo, diminui estresse e ansiedade, ajuda a largar o vício em drogas e causa até mudanças anatômicas no cérebro. No Brasil, uma série de pesquisas orientadas pelo médico Carlos Eduardo Tosta busca a causa de algumas dessas melhoras na influência da meditação sobre os nossos hormônios. Interessado num ramo da imunologia de nome complexo – a psiconeuroendocrinoimunologia – que estuda como nosso comportamento e nossas emoções afetam os sistemas imunitário, endócrino e nervoso, Tosta fundou, em 2007, uma linha de pesquisa na pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília para avaliar o impacto da meditação nesses sistemas. Tosta e seus alunos descobriram que a meditação pode reduzir a produção de hormônios associados ao estresse, principalmente de um precursor do cortisol, e pode até, em alguns casos, aumentar os níveis de melatonina. O Laboratório de Endocrinologia Comportamental, no Instituto do Cérebro, também começou pesquisas sobre o assunto, mas elas ainda estão em fase de coleta de dados.
Vê se relaxa, amigo
A mudança de ambiente, assim como ocorre com a meditação, tem um inegável impacto nos hormônios. Não é novidade que aspectos do meio urbano – medo da violência, trânsito, entre outros – causam muitos desequilíbrios e muitas doenças, até do coração. Mudar de ambiente, buscando um lugar mais tranquilo, é essencial para o bem-estar, mesmo que não seja uma mudança definitiva. “Há pesquisas que mostram que, mesmo que seja só no período de férias, na volta da praia, por exemplo, a pessoa apresenta índices bem mais baixos de cortisol”, explica Bernardete. E, do mesmo modo que viagens, muitas outras formas de lazer têm efeito positivo em nossa regulação biológica, como lembra Sidarta ao pensar em modos de manter o nosso equilíbrio hormonal: “Diversos tipos de meditação, de contemplação da natureza, atividades lúdicas, capoeira... A cultura do ser humano é extremamente rica em tecnologias culturais para fazer essa regulação”.
Criado em 1985, em Nova York, o grupo anônimo Guerrilla Girls usa uma linguagem repleta de ironia e violência poética, com o objetivo de combater o sexismo e o racismo. A busca por igualdade de gênero e racial é debatida em forma de artes impressas em pôsteres e livros, em ambientes digitais ou qualquer outro suporte gráfico. Na criação acima, elas aconselham a adoção do estrogênio, hormônio responsável pelas características femininas, como antídoto para a testosterona que rege o mundo desde sua criação, com os resultados catastróficos que conhecemos: “O mundo precisa de uma nova arma: a Bomba de Estrogênio. Solte a bomba em cima de ditadores, oligarcas, ultranacionalistas, fundamentalistas, gângsters, patriarcas e CEOs em toda parte. Eles irão baixar suas grandes armas, abraçar uns aos outros, se desculpar, para então se livrar do racismo, da misoginia, homofobia, transfobia, islamofobia, da negação das mudanças climáticas e da desigualdade social. Quer que o mundo seja um lugar melhor? Fabrique uma bomba de estrogênio".