Em nome de quem?

Ainda em 2017 começa a trabalhar a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância no Rio; crimes do tipo cresceram quase 5000% no Brasil

por Paulo Cezar Soares em

Há três anos, o terreiro de candomblé Kwe Cejá Gbé, A Casa do Criador, comandado pela mãe de santo Conceição D’Lissá, foi vítima de intolerância religiosa. Localizado em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, o lugar sofreu um incêndio criminoso, que atingiu o segundo andar da casa. Destruiu o teto, móveis, eletrodomésticos, roupas de santo e de integrantes do terreiro. A despeito da repercussão que o caso teve, a polícia não conseguiu prender os responsáveis pelo crime. “Nada de concreto aconteceu. Não há nenhuma pista dos autores do incêndio”, recorda a mãe de santo.

Essa demora gera um clima de impunidade, em um ambiente que parece claro de perseguição. Conceição é uma entre um número grande e crescente de vítimas da intolerância religiosa, crime em que os praticantes de religiões de matriz africana são a principal vítima, contabilizando 90% das denúncias.

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Nesse cenário, ainda em 2017, começa a trabalhar a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), no bairro da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro, que deve se dedicar a casos do tipo. A iniciativa na capital fluminense, uma das mais afetadas por essa questão, é oportuna, uma vez que as delegacias de bairro que normalmente ficam responsáveis pelas investigações das ocorrências de invasões a templos de umbanda e candomblé não conseguem ir até o fim, raros são os casos em que são identificados e presos os agressores. O que pede medidas como essas, para investigar e punir, mas não podem se limitar a criação do Decradi, tampouco apenas ao poder público.

Incêndio no terreiro de Ylê Axé Oyá Bagan, dirigido por Mãe Baiana em Brasília, foi uma vítima recente dessa violência. Ninguém ficou ferido, mas o local foi completamente destruído - Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil

Com o aval do Ministério Público Federal, todas as grandes igrejas evangélicas serão chamadas em breve para assinarem um termo de Ajustamento de Conduta. O objetivo é que elas orientem os seus pastores e fiéis para que não promovam nenhum incitamento de ódio religioso. “Talvez seja a primeira medida religiosa não policial que possa colaborar para diminuir essas ações. Aqueles que se negarem a assinar, obviamente estarão confessando que irão continuar promovendo a intolerância religiosa”, declarou o deputado estadual Átila Nunes (PMDB-RJ), que tem participado de reuniões com membros do MPF.

De acordo com dados da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, as denúncias de intolerância religiosa aumentam a cada ano. No primeiro semestre de 2016, no Rio de Janeiro, o Disque Denúncia computou 196 chamadas sobre casos de intolerância religiosa. Em 2015, tivemos 179. O Rio de Janeiro é líder nessa terrível estatística: de agosto até o início de novembro, foram 42 casos ataques, a maioria, como sempre, contra religiões de matriz africana.

“Há alguns anos, traficantes que diziam ser evangélicos, do Morro do Dendê, na Ilha do Governador [zona norte do Rio] perseguiram os terreiros. Minha irmã à época morava lá. Eles não se convertem de verdade, voltam para as suas facções e reproduzem um discurso de ódio que aprenderam na igreja. Temos também a questão de classes, a má distribuição de renda e o racismo. E agora um prefeito [Marcelo Crivella –PRB] que está institucionalizando na Prefeitura a igreja dele [Igreja Universal do Reino de Deus], realizando cultos no local”,  ressalta a mãe de santo, Conceição.

De longa data

Um caso marcante de intolerância religiosa que teve repercussão nacional e que ainda permanece no inconsciente coletivo ficou conhecido como o “chute à santa”. O caso ocorreu em 12 de outubro de 1995, feriado nacional, dia de Nossa Senhora Aparecida, quando o bispo Sergio Von Helde, da Igreja Universal do Reino de Deus, a Iurd, chutou uma imagem da santa diante das câmeras da TV Record.

Entrevistado dias depois pela revista Veja, ele foi perguntado a respeito do que costumava ler além da Bíblia. “Não leio nada. Nunca gostei muito de ler. Antigamente, lia um pouco os jornais. Hoje, nem isso”, frisou. “ O senhor já leu algum livro na vida que não seja a Bília”?, insistiu o repórter. “Que eu me recorde, não.”

Diante do quadro em tela, sem nenhum estofo cultural, sem consciência crítica da sua função pastoral, o bispo jamais poderia dimensionar a consequência do seu ato insano, que obrigou o dono da igreja, bispo Edir Macedo, a pedir publicamente desculpas aos católicos.

A Lei 9.459, de 15 de março de 1997, considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões. No entanto, nos últimos cinco anos, aumentaram em quase 5000% os crimes desse tipo no Brasil. A lei, que completou 20 anos neste ano, precisa agora começar a ser percebida longe dos livros de direito. E os crimes, espera-se com a criação da Decradi, precisam ser investigados mais profundamente.

Créditos

Imagem principal: Fernando Frazão/Agência Brasil

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