O que faz bem não precisa vir de longe
Quando penso em quem está transformando o país, penso em mulheres como a dona Nena, que colhe cacau no Pará, e como a Flávia, na foto acima, embaixo desta sumaúma na ilha do Combu
Ontem eu estava em Las Vegas, a cidade mais deprimente e com o pior clima que já visitei na minha vida. Só passamos uma noite lá, a música incrivelmente alta de manhã cedo, gente bêbada por todo canto com os olhos vitrificados nos caça-níqueis a toda hora. Até no aeroporto tem a porra desses caça-níqueis. Tem lugar em que dá para alugar metralhadora para se divertir. Tem um prédio do Trump. Mas em volta tem o deserto, um vazio de paz e magia, e tem estradas que vão até a Califórnia, Utah, Montana e outros paraísos do meu país.
Estamos em um momento frágil nos Estados Unidos, existe um clima de desespero, do lado conservador – frustrado e vitorioso –, do lado liberal – triste e revoltado – e também do outro lado dos Estados Unidos, o lado apático, o lado que não vota, que não vê futuro na nossa política, que não vê espaço para ter voz própria. O voto nos Estados Unidos não é obrigatório, e metade da população não vota. Temos um sistema eleitoral antiquado: agora, pela quinta vez na história, o candidato que ganhou na votação popular não vai ficar no poder.
Passei a noite da eleição num bar com um amigo brasileiro, assistindo às notícias na TV e chorando. Uma semana depois, fomos para o Grand Canyon, esse cartão-postal, rachado no meio do deserto, um vale sagrado que é exatamente tão mágico e imponente como falam – mesmo estando cheio de turistas com botas práticas e mochilas ergonômicas. Ali, conheci a única espécie de pessoa que me parece mais feliz com o próprio emprego do que eu: os Park Rangers, a polícia florestal dos parques nacionais dos Estados Unidos. A minha terra ainda tem magia, a terra em si é abençoada, somos enormes, independentes, e às vezes valentes.
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À procura
Tudo isso para dizer que vejo muitos paralelos entre os Estados Unidos e o Brasil. É muito complicado organizar esse tanto de pessoas, tantas paisagens tão diferentes, tudo misturado numa terra só, com tanta frustração com a política, tanta coisa para explorar e aproveitar, tanta gente que não tem educação suficiente para se autogovernar.
Hoje estou em Belém do Pará, um mundo completamente oposto de Las Vegas. Vim com uns amigos da cozinha, para fazer uma pesquisa gastronômica e ver os produtos da terra daqui. Passamos essa noite na ilha do Combu, dormindo em rede no deque da dona Nena, uma mulher empreendedora que colhe os frutos do cacau com as filhas e faz o próprio chocolate artesanal.
No Brasil, às vezes dizem que tudo que vem de fora é melhor. Que o produto nacional sempre vai ser inferior. Mas, em lugares como o Combu, as mulheres não têm porquê comer algo que não seja da terra. Chocolate industrializado é muito doce para o gosto delas. Hoje em dia tem um moço que passa de barco duas vezes por semana vendendo pão, mas elas ainda preferem comer a fruta da pupunha cozida. A comida favorita é o que se come todos os dias.
O que faz bem não precisa vir de muito longe. Quando penso em quem está transformando o país, penso em mulheres que nem a dona Nena, que está fazendo uma vida melhor para ela e as filhas, abrindo negócio próprio, fabricando um produto de qualidade e com ingredientes que vêm do próprio quintal. E ela vai expandindo de forma orgânica, trabalhando com chefs que se interessam por uma cozinha mais profunda. E mulheres que nem a Flávia, aqui embaixo desta sumaúma na ilha do Combu, que foi até o Belém do Pará comigo à procura de frutas.