K de dó
O que queremos? Aplacar nossas angústias indo às compras, ou abrindo mão de tudo, nos transformando em sadhus urbanos pseudossustentáveis?
É verdade que milhões de pessoas têm questionado um dogma que resistiu a gerações. A ideia de ter um carro, espécie de representação fálica de êxito e potência, é percebida cada vez mais como algo tão contemporâneo e útil quanto adquirir um aparelho de fax. Até mesmo ter uma bicicleta própria, anteontem um símbolo de posse com significados mais nobres, lúdicos e libertários, vai perdendo o sentido frente à possibilidade do uso compartilhado de milhares de bikes oferecidas por corporações financeiras gigantes em qualquer esquina das grandes cidades do mundo. E assim se dá também com espaços de trabalho, casas, apartamentos, computadores e até peças de vestuário e acessórios, como bolsas, malas e joias. A economia do compartilhamento vai comendo de forma consistente um naco cada vez maior da coluna de sustentação do capitalismo, marcado pelo consumo inconsciente e excessivo.
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Enquanto isso, numa calçada qualquer de São Paulo, um sujeito munido de um celular com câmera potente aperta a tecla rec para que pré-adolescentes e jovens reunidos em um evento expliquem para sua lente os trajes que ostentam e revelem o quanto pagaram por cada peça.
Os vídeos Quanto custa o outfit? lacraram a internet com seus personagens e diálogos improváveis e perturbadores. Expressões como “Quantos K de dól?” ganharam rapidamente as ruas, mimetizando a linguagem dos moleques esquisitos que descrevem sem qualquer tipo de sentimento os altos preços supostamente pagos na aquisição dos tênis, bonés, carteiras e relógios “grifados”, que exibem com certa indiferença para a câmera.
São os autodefinidos hype beasts.
Como um SUV desgovernado na contramão, gordinhos de bochechas rosadas e magrelos com bigodes finos vão destruindo a golpes duros e frios de machadinha de grife, uma a uma, as máximas dos defensores da sustentabilidade, do consumo consciente e de uma vida que teria mais significado à medida em que conseguíssemos deixar de lado os desejos de acumulação material.
O que queremos, afinal? Aplacar nossas enormes e intermináveis angústias abrindo a caixa de um par de tênis e sentindo os aromas da cola, do couro, a textura incomparável do papel de seda, sorvendo os prazeres produzidos pelos olhares de admiração e de inveja que ele provocará nos outros, ou abrir mão de tudo, nos transformando em sadhus urbanos pseudossustentáveis?
Entrevistada por um jornalista a propósito da enorme repercussão dos vídeos, uma das “bestas-feras do hype” deixa escapar, enquanto compara suas motivações com as da namorada: “O negócio dela é ter, o meu é conquistar. Depois, não quero mais”.
E aí? Vamos mergulhar de cabeça nas compras desenfreadas ou desfilar pelas ciclovias numa bike compartilhada com a sensação de que “estamos fazendo a nossa parte”, porém ostentando uma placa com o símbolo de um dos principais sustentáculos da sociedade do consumo inconsciente e ícone máximo daquele triste chavão: “O ter é o novo ser”?
Vire a página e tire suas próprias conclusões.