Sem conserto
O trem do apocalipse vai acelerando e carregando cada vez mais passageiros
Uma das duas geladeiras de casa, com não mais do que cinco anos de existência, passou a não fechar bem a porta. Chamado, o técnico explicou que para esse modelo não há mais a troca da borracha de vedação, que fica embutida. “Ah, então tem que substituir a porta inteira?”, perguntamos, já meio incrédulos. “Sim, teoricamente”, ele respondeu, “mas como este modelo é antigo (cinco anos!!!), não existe mais a porta. Não tem conserto. Vai ter que...” “Trocar de geladeira???” E então, passado o susto, nos lembramos do tempo de nossos avós, quando geladeiras (e relógios, fogões, canetas etc.) eram bem duráveis, preciosos, que passavam de pai para filho.
Sim, nós consumimos demais. Não só porque somos vorazes (e somos), mas porque toda a economia está voltada para nos levar a isso. Ao jogar fora uma geladeira relativamente nova, que está funcionando bem, exceto por uma porta que não fecha direito, estou ajudando a mover as engrenagens da economia, a elevar o PIB e os índices de emprego. Mas, por outro lado, estou desperdiçando recursos naturais e fazendo lixo. E a conta não é só minha, mas do planeta. Com juros de cartão de crédito.
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O trem do apocalipse vai acelerando e carregando cada vez mais passageiros. Foram centenas de milhares de anos para chegar, em 1802, à marca de 1 bilhão de seres humanos sobre a Terra. Daí até o segundo bilhão, em 1928 (com a Primeira Guerra e a Gripe Espanhola no meio), passaram-se apenas 126 anos. Para atingirmos o terceiro bilhão, em 1961 (com a Segunda Guerra no caminho), 33. O quarto bilhão chegaria 13 anos depois, em 1974. Hoje somos 7,6 bilhões, e crescendo. E não é só muita gente, é gente que consome de tudo, e de tudo muito, de alimentos a petróleo, de aparelhos eletrônicos a pares de tênis. Claro que há muita miséria por aí e que nem todos consomem da maneira exagerada como os norte-americanos, os europeus ou as classes médias dos países emergentes. A tragédia é que, se todos atingissem tais padrões (uma justíssima aspiração para quem vive na miséria), o descalabro ambiental seria ainda mais grave.
Mar de lixo
Recursos naturais estão sendo usados, além da capacidade de reposição planetária, para nos manter, assim como os animais que comemos (a população mundial dos frangos, por exemplo, já é três vezes superior à nossa). E ainda nos damos ao luxo de retribuir a natureza com poluição, lixo e esgoto. Cada vez mais espécies correm o risco de desaparecer. No mar, a única coisa cada vez mais abundante são os detritos dispensados pelos seres humanos: no oceano Pacífico foi descoberto, há alguns anos, boiando, um “lixão” com área equivalente à dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo somadas. Não é impossível que pedaços de minha antiga geladeira acabem por lá, disputando espaço com canudinhos de plástico e garrafas PET. Peixes e outros animais marinhos vão rareando, espremidos entre poluição de um lado e sobrepesca do outro. Enquanto isso, vamos adiando, em casa, a compra de uma nova geladeira. Mas a cada vez que, para fechar a dita, sou obrigado a calçar a porta com um cabo de vassoura, sabendo que ela logo será sucata, me vem à mente a certeza de que, ao prosseguirmos com nosso padrão de consumo, em breve os animais mais ameaçados de extinção seremos nós mesmos.
Créditos
Imagem principal: Barbara Krueger